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quarta-feira, 3 de março de 2010

Uma crônica de Rubens da Cunha

Publicada no jornal A Notícia em 03/02/2010
GESTOS-METADE

O olhar dura dez segundos. Ao redor a vida estável, encaminhada noutros relacionamentos. A nós dois só coube a amizade de longos anos. Aos poucos fui percebendo nela um comportamento que misturava medo e distância, havia ali qualquer coisa que alterava a funcionalidade das nossas relações. Minha mulher, o marido dela, outros casais que formavam nosso círculo de amigos, eram peças nesse xadrez que ela estava insistindo em jogar comigo. Eu deveria jogar? Eu queria jogar? O estranhamento entre nós dois se tornou palpável. Ela movimenta as mãos, o pescoço, vejo seu sorriso e percebo nisso tudo um traço de nervosismo, como se fosse uma represa prestes a estourar. E ela olha-me, tenta manter o olhar, mas é sempre interrompida, ora por alguém, ora por si mesma. Estamos numa fronteira. Talvez não tenhamos coragem ou paixão suficiente para atravessá-la, ficamos então nas pequenas provocações, nos flertes invisíveis para os outros, ficamos construindo um diálogo de dúvidas, em que as palavras certas não cabem. Falar diretamente é matar o jogo, é atravessar de remorsos e culpas não apenas nós dois, mas os outros a quem amamos. Devo confessar que o jogo é viciante. No começo eu apenas respondia seus acenos, agora parece que estou eu acenando também, pedindo também um contato silencioso, disfarçado, feito apenas pela metade do gesto, pela metade do olhar, e retribuo em metades também. Se ela fala frases soltas, sabendo que eu adivinharei um sentido implícito, retribuo com palavras mais soltas ainda, e a vejo catando os sentidos pelo ar, e a vejo remontando minha pequena provocação, meu breve lance nesse nosso jogo. Talvez o que nos mantenha seja a sensação de medo. Temos muito a perder caso sejamos descobertos. O pior é que não ganhamos nada em troca, pois não se trata do amor clássico, da paixão fulminante, mas de uma relação-névoa, dessas que o não concretizar-se é a alma, o cerne. Dar um passo além seria lançar-se num abismo inócuo, oco de sentido, pelo menos para mim. Dela recebo apenas breves sinais, mas pouca certeza de suas ações, tudo pode ser apenas criação da minha cabeça. Onde vejo provocação, talvez seja constrangimento, onde vejo jogo, talvez seja apenas defesa ou timidez. Já nem sei mais o que pensar. Quando nos encontramos a névoa assume meu olhar, e eu fico apenas articulando disfarces. Ou seria essa minha elucubração apenas covardia? E se ela solarizasse a névoa, colocasse sobre mim luz e calor e me impusesse uma atitude mais aguda, menos curva? O que eu faria? Como reagiria diante de um encaminhamento natural desse nosso flerte, desses nossos olhares escusos? Por outro lado, e se eu acabasse o jogo? Um xeque-mate, um agora ou nunca, um dá ou desce? Não tenho a resposta, tenho apenas a sensação de que permaneceremos seguros atrás dos nossos tabuleiros, atrás de nossas aparências. Permaneceremos com nossos gestos-metade trazendo um pouco de aventura a nossas vidas. Nossas vidas-metade?

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