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quarta-feira, 17 de novembro de 2010

Festival Catarinense de Teatro

por marco vasques

O SILÊNCIO, UM METÓDO DE FALA

Teatro é ato único. Teatro é devir. O teatro apresenta sempre um resultado único [Artaud]. Por isso Peter Brook afirma que teatro é vida. A vida é devir; constante transformação. Ainda que tentemos pasteurizar os dias. Ainda que tentemos coisificar o mundo, elaborar nossas crueldades mais e mais e embrutecer os sentidos. Sempre haverá uma fratura, um fragmento ou um deslocamento para provocar a reabertura do sentido. O Festival Catarinense de Teatro começou ontem, aqui na cidade de Brusque, com o espetáculo Agreste da companhia Cia Razões Inversas de São Paulo. Um espetáculo que usa o silêncio como método de fala, como ato de agressão. Fique claro que o termo agressão aqui é usado como sinônimo de fogueira no sentido, espanto [Aristóteles] e a abertura de uma clareira [Heidegger] no meio de cada espectador. Agreste é a história de um casal que foge à procura de uma morada. Abrigam-se no árido, isto é, numa comunidade onde impera a seca [geográfica e humana]. Após 30 anos de casamento o inexorável, o inevitável acontece: a morte leva Etevaldo. Sua esposa a partir daí sofrerá uma série de abusos cometidos por uma sociedade intolerante, hipócrita e brutal. Etevaldo, seu esposo, é uma mulher [Diadorim às avessas]. Mais Agreste é muito mais. Agreste é carnação da palavra. Um poema orquestrado pela epiderme. Uma elegia moderna. Sal na saliva. Sol na retina. Teatralidade-vida. Agreste, escrito por Newton Moreno, é o mundo. Agreste dialoga com Guimarães Rosa [Grande Sertão: Veredas], Graciliano Ramos [Vidas Secas] e João Cabral de Melo Neto [Morte e Vida Severina]. Dialoga, também, com o dia-a-dia dos centros urbanos. Mas é preciso dizer que o diálogo é feito pela via da originalidade, pela construção autônoma de forte pulsão poética. Agreste tem poesia na palavra, no movimento, na luz, na música, nas interpretações dos atores e no silêncio. É um espetáculo que arrebata. Interpretado por João Carlos Andreazza e Paulo Marcelo e com direção de Marcio Aurélio o espetáculo nos diz que agreste é a existência, o sal de estar em si sendo outro. O trabalho está contextualizado num ambiente de seca, mas é de todas as securas, de todas as arrogâncias, de todas as intolerâncias e todo o cinismo de nossa sinistra civilização que ele fala. É neste ambiente de seca [criado pelo cenário e pela iluminação] que aparece a metáfora do esvaziamento da cor. É universal na sua regionalidade [Tostoi]. Agreste é uma bofetada nos amorfos de sentido, nos atrofiados e nos que insistem em erigir um mundo de atrofias e preconceitos. Sobretudo quando os atores saem da narração, do apresentar a fábula, do prólogo inicial para a ação dramática propriamente dita. É aí que a teatralidade aparece por inteira com seu tempo e ritmo próprios. Heidegger disse que o homem mora na linguagem. Agreste é pura linguagem. Partitura poética urdida pela arte teatral. Espetáculo que alegra a minha arte de ser espectador.

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