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segunda-feira, 22 de novembro de 2010

Ensaio publicado no Caderno IDEIAS [Jonal A Notícia] 21/11/2010


SOB A FACA GIRATÓRIA: SENTIDOS MÚLTIPLOS

Por Marco Vasques e Rubens da Cunha

A poética de Péricles Prade é conhecida por seu hermetismo, sua ligação com temas alquímicos e obscuros, a ponto de, na orelha do livro, Ronald Augusto afirmar que “não há concessão à sentença compreensível”. Sem dúvida, são poemas que não se deixam “compreender” facilmente, por isso é preciso encarar essas facas giratórias com os olhos racionais fechados e deixar a visão interna decifrar o mundo de imagens. É preciso acolher os meandros das palavras naquilo que elas têm de mais abissal, mais oculto, e entrar no mundo pradeano como um sujeito cego à “verdade”, ao “certo”, ao “poder denotativo”, ao “fazer sentido”, é preciso conquistar cada palavra e fazer com que elas revelem seus lados baixos, seus dentros.
Trata-se de um exercício denso de leitura, que pressupõe um leitor descansado e apto ao trabalho de invadir as memórias, as infâncias, os passeios, as mortes, as vidas. Se esse leitor tiver o aporte de leituras que envolvam o ocultismo e o esoterismo, em suas variâncias como a cabala, a gnose, a alquimia, se conhecer mitologia, religiões, artes plásticas, filosofia, seu trabalho de invasão pode ser mais fácil. Caso não tenha tanta informação, o leitor pode entrar na linguagem de Péricles Prade pela intuição, pelo acariciamento que suas imagens tortas, viscerais, delicadas fazem por dentro de quem as lê.
Sob a Faca Giratória tem 10 capítulos com 5 poemas cada um, os quais vão ganhando formas díspares, ora um haicai, ora um poema em prosa, depois apenas aforismos, e lá no meio, um soneto desvirtuado em estrofes no esquema 6-2-4-2. Tantas formas servem para trazer à luz a linguagem, na mesma medida, precisa e misteriosa do poeta: ”No palco convivem cupins-gêmeos, salamandras excitadas, gaivotas anãs, línguas vegetais, figos magros, unhas de vidro, cera pagã, caleidoscópios falantes, rãs carentes, canibais felizes, bailarinas grávidas, sacos de aninhagem, clérigos castrados e pragas de todo o gênero. E nem por isso desfaleço.”
Em Métodos, Francis Ponge desejava criar descrições-definições-objetos de arte literária que estabelecessem correspondências inéditas, que atrapalhassem as classificações habituais, e se apresentassem mais sensíveis, mais tocantes, e mais agradáveis. O livro de Prade cumpre o desejo de Ponge e segue pela via tortuosa da poesia fazendo aproximações, não apenas entre canibais e bailarinas, ou rãs e clérigos, mas na sua contundente qualificação dos elementos que surgem sob a faca giratória. Assim, no preciso “Louvor à perna que falta” sabemos que “Câncer não dá em fêmur de bicicleta” ou que “Isidoro enlouquece a tribo esfaqueando seu lábio leproso”.
De descrição em descrição, de definição em definição, os poemas vão se perfazendo, vão se dizendo, vão pulsando em seus espectros de sombra e hermetismo. Vez ou outra o sentido está na primeira camada, desmentindo um pouco a afirmação do poeta e crítico Ronald Augusto.

Tudo é mais limpo
no campo.

Laranjas podres
sob árvores mirins, tudo
é mais limpo no campo.

As gamelas continuam imundas.
Tudo é mais limpo no campo.

Vacas e as fezes generosas
nos galpões,
tudo é mais limpo no campo.

O lirismo da paisagem exposta no poema “No Campo” é sua grande facilidade de leitura, há nele os trâmites da infância quando laranjas, gamelas, vacas, tudo se fazia ao contato direto com a vida. Outro poema em que a infância reverbera na primeira camada de leitura é “Melancolia”, em que a “memória nela própria se esvai / cortada e recortada em fatias, / como as melancias do pai.” Entre dormir e acordar, viver e sonhar, o traço preciso de um tempo findo no passado, que pode ser lido como um “fantasma”, título de breve poema mais a frente: “quanto mais / não quer vê-lo, / aparece como sombra / grudada à pele.” Abre-se ao leitor o confronto de tempos: a infância é memória ao passo que o presente é permeado pelo esquecimento, pelo apagamento do corpo.
A infância também aparece no poema “Resistência”, mas dessa vez uma infância arcaica, ancestral, que vai de Mozart até Alexandria, suplantando tempo e espaço convencionais e estabelecendo num tempo e espaço ideal o nascimento ideal: “Alexandria, onde ter nascido eu deveria”.
Em “Outra Confissão” o embate fatal entre juventude e velhice, os contrastes, os paradoxos, as imagens de cada fase da vida se contorcendo sobre o poema, em sua verve de suor, verme, agulha de cristal, vaga-lume de chumbo, Reino e ponte quebradiça. O tratamento dado aos resíduos do passado e sua presença deslocada recebe tratamento distinto pelo poeta. Ora temos o lirismo, ora a ironia aliada ao sarcasmo. A morte é galvanizada pela linguagem.
A Poética de Prade vai se construindo sobre o signo da vida efêmera, do “Verbo enfermo” de tudo aquilo que perece, mas ao mesmo tempo tenta uma transcendência, ou melhor, uma permanência no mundo da palavra e do mistério, como cantam os versos finais: “Perfeito no salto triplo, hospedo-me no centro da mandala, grato por ter saboreado a parte invisível do fruto podre.” Assim, em Sob a faca giratória, Péricles Prade nos convida a um banquete para dividir com ele o perene ato de saborear a parte invisível de tudo o que é perecível. É preciso, também, um leitor que se veja no mundo dos espelhos, pois o duplo é a carnação hierofânica de Sob a faca giratória. As epígrafes de Trakl, Eliot, Montale, Quasimodo e René Char delimitam parte do campo semântico do duplo: o olho, o ouro, a sombra, o vidro, a água, o corpo. Péricles Prade não orquestra o mar como fez Tadeusz Kantor, ele vai além no mundo de suas hierofanias aquáticas, mergulha no mar para domar a linguagem e capturar o silêncio do tempo transfigurado e elevado em mundo líquido. A água é elevada à categoria de tempo, assim como a faca giratória metaforiza o esvaziamento, a fratura, o escorrer das horas (v. pintura Persistência da Memória, de Salvador Dali). Rodolf Otto e Mircea Eliade se debruçam sobre a sacralização da matéria, ou objetos cósmicos, como ambos conceituam. E aí retornamos aos duplos do mundo semântico de Sob a faca giratória e entramos no “poder denotativo” da obra de Prade para fruí-la a partir de sua força simbólica. É bem verdade, para nós, que Sob a faca giratória apresenta um poeta mais complacente com o leitor, porque o livro tem maior porosidade lírica e encanta, no momento da leitura, pela força que imprime no ritmo, nas imagens, no uso da ironia e pela linguagem-fragmento-imagem. Fiquemos com a declaração do poeta:


Sou a outra mancha
na imagem, o avesso
da fera, o espelho
partido, o princípio
e o fim.

Sou o som
da memória
aquela que provoca
os animais no paraíso
sob a faca giratória.

Temos na fala do poeta esta visão dupla de si mesmo. Uma visão espiral. Nos versos acima Prade nos dá caminhos diversos para fruir sua poética, mas deixa sempre claro que estamos diante de um poeta que parece ver a poesia do modo como queria Paul Valéry: “A Poesia forma-se ou comunica-se no abandono mais puro ou na espera mais profunda: se a tomarmos como objeto de estudo, é por esse lado que se deve olhar: é no ser, e muito pouco nos seus ambientes.” Então cabe ao leitor abandonar-se ou entrar profundamente nos giros das facadas giratórias de Péricles Prade.

Sob a faca giratória de Péricles Prade
Poemas, 2010
86 páginas
Editora Papa-terra

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