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domingo, 14 de novembro de 2010

Festival Internacional de Teatro de Objetos 4

FESTIVAL INTERNACIONAL DE TEATRO DE OBJETOS
POR MARCO VASQUES

Poesia é privilégio da vida. Poesia é privilégio da razão que cambia a perturbação humana, a fratura, o deslocamento, o impacto de estar no mundo, o fantasma, a abertura de sentindo, a criação de sentido, o silêncio e rumor. A poesia é a própria vida. E é a vida, ou melhor, a reanimação do objeto pela vida que permeia o Festival Internacional de Teatro de Objetos, que acontece na Universidade Federal de Santa Catarina até amanhã. O Dicionário do Teatro Brasileiro define o conceito de Teatro de Objetos: “é um teatro em que os protagonistas são os objetos tomados do cotidiano, sejam eles artesanais, industriais ou naturais, isto é, sem interferência formal em suas partes”. É mais que isso. É antropomorfização (atribuir a objetos inanimados a anima humana) dos objetos. No Teatro do Objeto é necessário muito mais que objetos e bons atores. É necessário que a plateia acredite. Que mergulhe na fabulação, na alegoria. Os espetáculos A Criação, Volta ao Mundo em 80 dias e Pequenos Suicídios nos levam à magia da crença, no levam ao encontro da poética dos objetos-iluminações. É pela poética, pelo ritmo da manipulação dos objetos e pela construção de imagens absurdamente transbordada de energia, tensão, silêncio, ternura e agressão que estes espetáculos nos afetam. O poeta Novalis já alertou que a poesia é “a religião original da humanidade”. Portanto, quem quiser viver um impacto poético (poesia de impacto) e experimentar o deslocamento/sabor tem até segunda-feira para assistir aos espetáculos, todo gratuitos, no Festival Internacional de Teatro de Objetos.

A CRIAÇÃO
O espetáculo A Criação é uma elegia moderna. Um coro de imagens que cantam no coração do espectador as mais cruas e bárbaras ações que o humano é capaz de executar contra seu semelhante. Não é por acaso que o ator Onofre, em uma de suas falas disse: “cabe a nós, atores de La Balestra, rir dos costumes na terra e falar sobre a estupidez e a grandeza da humanidade.” O grupo consegue fazer com que o público possa fazer múltiplas leituras do espetáculo, cria uma espécie de camadas/acessos. A guerra entre os palitos de fósforos ganha inúmeras dimensões. Para criança, ainda protegida das agruras do cotidiano, o confronto não passa de mais uma guerrinha, mais uma brincadeira de soldadinhos de chumbo. Para os adultos o choque do genocídio, a consciência de nossas sujeiras apresentadas cruamente. A Criação é abandono. É estar aí. É conviver com todas as impurezas que geramos contra nosso mundo. É, também, sarcasmo puro. Humor negro. Divertimento e bofetada. Um espetáculo perturbador e alegre ao mesmo tempo. Contraditório como cada linha da palma de nossas mãos. Varia entre a ternura de um flerte e o absurdo de uma guerra. Vai do expressionismo ao realismo imersos na atmosfera gótica. Um canto para incendiar os olhos e permanecer na memória.

VOLTA AO MUNDO EM 80 DIAS

O espetáculo Volta a Mundo em 80 Dias é baseado no romance homônimo do escritor francês Júlio Verne (1828/1905) que narra a história de Phileas Fogg, um cavalheiro britânico, que aposta com um grupo de amigos que fará a volta ao mundo em oitenta dias. Fogg e seu criado Passepartout, um malandro escolado, partem mundo a fora. O ator argentino Fernán Cardama manipula inúmeros brinquedos (barcos, trem, bonecos) enquanto narra a passagem de Fogg e Passepartout pelos continentes revelando suas crenças, características e culturas. O espetáculo tem uma variação entre o cômico e o lírico. É uma boa dica para este sábado: entrar na nave de Fernán Cardama e mergulhar na fantasia deste clássico da literatura infanto-juvenil. Como já afirmei, no início destas meditações, Volta ao Mundo em 80 dias nos pega pela meditação poética da condição humana, pelo ritmo das manipulações, pelas imagens-mundos, pela urdidura de atmosfera de encantamento que o ator sabe, muito acuradamente, tranpor para os objetos em cena.

PEQUENOS SUICÍDIOS

O amor, a solidão, o abandono, a morte e o tempo são as temáticas que permeiam o espetáculo Pequenos Suicídios. Estamos na verdade diante de um arauto da delicadeza. O ator Carles Cañellas é um mensageiro da delicadeza. Seu espetáculo é uma adaptação da montagem original de Gyula Molnár, que para os especialistas se trata da primeira montagem de Teatro de Objetos. O trabalho está dividido em três atos. Dois suicídios declarados e um genocídio anunciado. No primeiro ato um comprimido, brilhantemente animado, tenta se aproximar de um grupo de balas. O comprimido chega mesmo a abandonar sua natureza e vestir a “roupagem” das balas, contudo as diferenças são evidentes. Ao ser hostilizado pelo grupo de balas ele comete suicídio se jogando dentro de um copo de água [ao executar esta cena Cañellas nos faz lembrar das melhores cenas com objetos de Buster Keaton e de Chaplin] . No segundo ato o suicídio ocorre por conta de um amor não concretizado entre um fósforo e um grão de café. Ao perder seu amor o fósforo se consome em chamas por não suportar a ausência de sua amada. O terceiro ato é uma reflexão sobre a passagem inexorável do tempo que traz a metáfora incômoda de nossa transitoriedade, de nossa condição de passageiros no mundo e dos genocídios constantes tramado pelo tempo. As manipulações dos objetos, a iluminação, a música e a atuação de Carles Cañellas faz com que o público se afogue com o comprimido, queime com o fósforo e reflita sobre a nossa condição de meros hóspedes no mundo. Um espetáculo brilhante. Um espetáculo para ser aplaudindo com a alma.
FOTOS DOS ESPETÁCULOS ABAIXO

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