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terça-feira, 14 de maio de 2013

Mar Power, 1983

 
No "Romance grego ainda sem nome", do escritor Cavaal Saféris, que sabe um capítulo de outro capítulo? Nada, mas Cavaal, que já leu todos os capítulos, liga-os e conclue que, se neles há páginas melancólicas e grotescas, há outras de candura e fecundadas pelo acaso. 
Enquanto remexe as brasas com o caco da ânfora, e arruma entre as pedras achas de sicômoro seco, Cavaal tem sérias dúvidas se, depois que for enterrado na tumba escura, encontrará algum dia a criatura da sua solidão.
Logo no primeiro capítulo de "Romance grego ainda sem nome", ele escreve: “Li em algum lugar que apenas o mundo espiritual existe. O que chamamos de mundo físico é o mal do mundo espiritual. O fato de que existe apenas o mundo espiritual priva-nos da esperança e nos propicia a certeza. E mais: é uma lei do espírito só encontrar o que não procurou”. 
Se não esquecemos, não nos tornamos humanos.
A esse Cavaal Saféris não é a chuva, mas o rumor da chuva que o lava. A língua dele, ao se comover com a extinção dos ossos e das árvores, abana-se com o vazio da boca.
Para entoar o Cântico dos Cânticos, Cavaal Saféris faz ablução com areia debaixo do baobá africano, depois anota no capítulo primeiro do seu “Romance grego ainda sem nome”: “Olho o mar através das fissuras da parede e vejo as barcas e os peixes, os ventos e o sal nos velames, as crianças à sombra das árvores no verão, e não posso deixar de me comover com a única deusa que respira nessa praia – deusa ou música – música que detém as palavras e as impele, até que elas acordem o cristal de rocha”.
No último capítulo de seu livro "Romance grego ainda sem nome", Cavaal escreve: “O que quero dizer é que procuro um lugar no qual eu esteja deitado, sem risco de inundações e, se for possível, à sombra das árvores no verão. Não consigo desviar meu pensamento do fato de que toda a história do mundo não é mais que um livro de imagens refletindo o mais violento e mais cego dos desejos humanos: o desejo de esquecer”. 
 
Fernando José Karl 

segunda-feira, 11 de março de 2013

vento morno da meia hora
soprando no meu almoço
enquanto ouço de longe
marcos sacramento e zé paulo becker
tocando um samba antigo e moderno

apesar de ter olhos de led
meu coração é valvulado
esquenta

segunda-feira, 4 de fevereiro de 2013


SEQUÍSSIMA

Por Marco Vasques

Publicado no jornal Notícias do Dia [04/02/2013]

Após a divulgação da Lei Sequíssima, Dona Lindomar tem tomado para si a tarefa de vigiar os sobrinhos, netos e bisnetos. Ela mesma batizou o “aperto” feito na Lei Seca com o superlativo sequíssimo. A recomendação dela é simples e beneficia todos os bares do Córrego Grande. Ela propôs aos parentes que fossem as suas casas, deixassem os carros e escolhessem qualquer bar do bairro em que moram para tomar aquela cervejinha tranquilamente. Depois é só voltar, tomar um café, comer, dormir e pegar o volante são e sem bafo de álcool.
Sim, sem bafo. Porque daqui a pouco um bombom de licor poderá colocar qualquer cidadão numa situação terrível: multa, apreensão do carro, cadeia, fiança. É claro que Dona Lindomar condena peremptoriamente os malucos que bebem feito porcos e saem por aí colocando em risco não só a sua vida, mas a vida dos outros. No entanto, não sejamos hipócritas. Quem nunca bebeu aquele vinho, aquela cerveja ou caipirinha e depois foi, lentamente, para casa.
O que Dona Lindomar contesta na Lei Sequíssima não é propriamente a lei, mas a vulnerabilidade em que ela coloca o condutor. Vejamos, explica a velhinha à sua prole. Sem ar professoral, ela argumenta que Aristóteles, no livro A Ética a Nicômaco, já trata do assunto com alguma prudência. Ao criar o conceito de mediania, o filósofo grego esclarece que cada pessoa possui um meio diferenciado. Vamos à prática, diz, e aponta para o neto Bernardino e depois para sobrinho Roneslildo.
Ambos são homens, fortes e bonitos; no entanto, se Bernardino tomar uma taça de vinho ficará completamente embriagado. Já o Roneslildo começa a tontear somente após uma garrafa. Isto é, uma taça de vinho pode matar mais que uma garrafa, argumenta a pensadora. E nisso cria argumento para os que defendem o “aperto” da dita lei, a Sequíssima. 
            Não nos precipitemos, segue ela. O problema não é exatamente este. A questão é que uma lei, por suposição, tem que ser, no mínimo, isonômica e justa. Embora a Lei Seca, em seu princípio, pareça ter essas características, agora, com a alteração, está bastante vulnerável, pois coloca nas mãos da polícia, via de regra intolerante e despreparada, a decisão de prender e punir, no mesmo grau de severidade bêbados incapazes de dirigir e o cidadão que tomou uma taça de vinho no almoço e foi levar a mulher ao trabalho. Em Bundópolis, as leis são criadas sem meios fiscalizadores e o próprio governante vive as descumprindo. Para evitar a desobediência generalizada da família, colocou, no maior quarto da casa, uma placa com a inscrição: repouso dos bêbados. 

terça-feira, 22 de janeiro de 2013


MÁRIO FUGITIVO

Por Marco Vasques

Publicado no jornal Notícias do Dia [21/01/2013]

Sempre carregou na memória a frase que encerra o livro Memórias Póstumas de Brás Cubas: “Não tive filhos, não transmiti a nenhuma criatura o legado da nossa miséria”. Usava a frase a cada relacionamento que iniciava. Já se vê que nosso personagem é afeito à vida moderna. Vai da frase sofisticada, retirada das leituras colegiais, ao mais reles clichê televisivo. Dia desses, ao ser interpelado por uma ex-namorada se ainda continuava com a Luiza, foi logo dizendo que a Luizinha era coisa do passado e que figura repetida não completa albinho.
Assim mesmo leitores, bem à moda do nosso tempo, ou seja, tudo é descartável e fugaz. E quando Luiza indagou se com Amária o relacionamento tinha ultrapassado os três meses, foi logo dizendo que a fila anda. Que o mundo está muito veloz. Que faz pouco tempo era Natal e já estamos terminando janeiro. Que quem dorme no ponto perde o ônibus. Que perdão não se pede ao prazer e coisa e tal. Despediu-se de Luiza, sem afeto algum, e torceu para não dar de cara com mais uma de suas conquistas.
Mais instável que trepada de coelho, Mário Fugitivo seguiu pensando se a frase do romance era realmente do personagem ou do próprio Machado de Assis. Parece ter lido em algum lugar que o autor da obra citada não teria tido filhos também; no entanto, como é de sua característica, resolveu não afirmar nem a si mesmo, já que a certeza é coisa de homens de ações contínuas e ideias fixas. Fugitivo, o habitante mais despreocupado de Bundópolis, jamais se deteria em tais elucubrações.   
Como coelho, de precocidade em precocidade, Fugitivo não cria raízes e detesta tudo que é gênero de arte. Dia desses disse à Diana, sua nova conquista, que não gostava de arte e nem de artista porque vê muita empáfia nesse mundo, porque não entende as obras que vê, porque não acha necessário nada disso para a sua vida e, sobretudo, porque hoje qualquer coisa é arte. E se tudo é arte, o melhor é se despreocupar dos conceitos e olhar o mundo, as pessoas, a vida, a morte e cada ato como um processo artístico. Foi até aí e não deu mais conta do raciocínio. 
Ele até já foi afeito à literatura, mas quando descobriu que tinha talento incomum para o namoro, tornou o ato da conquista sua única arte. E para ele a coisa era simples, sem complicação: não importa a idade, o tamanho, o peso, a cor dos olhos, o tamanho dos cabelos ou a classe social. O que não admite é ver mulher alguma desabrigada de abraços e carinhos. Dizem até que a frase “copo de água e beijo na boca não se nega a ninguém”, atribuída a um alto intelectual de Bundópolis, é de sua autoria. 

INTERROGATÓRIO
Quem o senhor pensa que é para postar poesia no facebook?
Eu não postei nada
Como assim nada? O senhor tem um perfil la dez anos e não posta nada?
Às vezes?
Como às vezes.
Teve um aniversário há oito anos
Oito anos?
Mas o senhor escreveu uns livros de poesia no século passado  ? Encontramos no seu perfil
Foi um equívoco?
Se  foi um equívoco, porque colocou na sua time-line?
Um momento de fraqueza. Um arroubo nostálgico
(Escrivão,  faça uma busca rápida pela palavra nostalgia)
O senhor um velho,  não tem vergonha de contrariar o credo do facebook,
os mandamentos de postar todas as coisas importantes e sua vida, de compartilhar, curtir
com  seus face-semelhantes  suas pequenas conquistas diárias?(dando um  tapa na cabeça)
Se a gente te pegar novamente postando poesia a gente te mata.