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segunda-feira, 30 de novembro de 2009

Aproximações de um espantalho


Báçira - segundo estudo



um espantalho em jazz diz

“What is there to say?”

my eyes lie like that. digo.

campo aberto à luz de arado

silhuetas distantes dos lavradores

carpem folhas na lembrança

o Báçira

entre cópulas de algodão amarelo

tem olhos multiplicados pelo sol

nas quadraturas de algodão por dentro

centenas de dias

diferentes em uma só

polegada quadrada de pano

neste tempo sequer papel gravado

presa ao cepo a letra segue no espantalho

dançando ao redor antes ,

o espantalho parece o texto dum livro.

______________________________________________[ na imagem, Hugo Ball no

Cabaret Voltaire,1917.

sábado, 28 de novembro de 2009

Fritz Henle, 1975



Se não se escutam as folhas do arvoredo, Lucana gasta os olhos numa página avulsa do poeta Almafuerte: yo soy un palmar plantado sobre cal e pedregulho. Os vocábulos lidos na frase anterior já estão mortos, derrotados, e unicamente a retina do leitor pode trazê-los à vida com um sopro. Se o vocábulo é sopro e o sopro é vida, sopramos em yo, sopramos em soy, sopramos em un, sopramos em palmar, sopramos em plantado, sopramos em sobre, sopramos em cal, sopramos em e, sopramos em pedregulho. Lucana confessa ao palmar plantado: “Eu sou uma daquelas víboras descascadas junto à fonte fria. Com pinças curvas eu arranco o cérebro dos fariseus – gruta com lesmas – pelas fossas nasais. Eu, com um garfo de ouro, faço um talho na cara da prosódia sonolenta e, debaixo do chuveiro, tento captar, apesar da água torrente, o sentido das palavras em Fernando Pessoa: ‘Atinjo a força de palavras, não para realizar a obra que eu nunca poderia realizar, mas ao menos para dizer com simplicidade por que razões não a realizei’. No espelho, enquanto me enxugo, verifico que na alma continuo sendo uma daquelas gueixas com neve no negro cabelo. Escuto a balada de Narayama e, com a colherinha de açúcar, faço nevar no espírito do chá”.

Fernando José Karl,

um animal impossível do Espírito



Shirin Neshat, 1993



Escutar os poemas

de Marize Castro

pronunciados por ela mesma.

http://www.mudernage.com.br/

Rubens da Cunha e Enzo Potel
Neste dia 26 participei como autor convidado do encerramento da 2ª Oficina da Palavra Cidade-rio, orientada pelo Enzo Potel no sebo Casaberta, em Itajaí, durante todo o mês de novembro. Foram discutidos textos dos meus livros "Aço e Nada" e "Casa de Paragens".

Como tenho obsessão por poemas finais, eis o último de Casa de Paragens

Desusado, abuso os céus da noite caída. Um
anjo pintado na parede. A verdade traça móveis
e livros. Destroça-os. O que não li argumenta-se
se espera. Espúria conexão com o sonho. Nos
rins, um álcool recém filtrado esmorece a
oração. Raspo a pintura até chegar no osso.
Era um anjo suicida e sem coragem, pediu que
eu o matasse. Então, eu fiz a sua morte.


Rubens da Cunha

Dennis Radünz lança seu primeiro livro de prosas




sexta-feira, 27 de novembro de 2009

Um grafismo de Fernando José Karl



Escutar Prelude Cello Suite No. 1

http://br.youtube.com/watch?v=LU_QR_FTt3E&feature=related

Intérprete: Rostropovich.



Arthur Tress, 1987



Ler a novela Senhora do gelo,

de Fernando José Karl

http://www.germinaliteratura.com.br/booksonline_karl1.htm



Shânkara Lis Martins Karl, minha filha


CARTA À MINHA FILHA

Adorei tua carta, Shân.

Breve comentarei, em minúcias,
tudo o que escreveste nela.

O que posso te dizer, agora, é o seguinte:
eu e o Algo (ou o Deus) somos um;
tu e o Algo (ou o Deus) são um.

Nossa origem é celeste: nossa origem é muito profunda.

Quando se fala do Algo, está se falando do quê?

Perceba que, em vez da costumeira palavra Deus, a palavra que se está usando agora é Algo, que é a mesma coisa que dizer x ou mistério. Quando se diz Algo está se afirmando a liberdade, sim, o livre-arbítrio de termos consciência de que somos muito mais que pó.

Se quisermos achar que somos apenas pó, nada mais, é o que seremos: isto é livre-arbítrio: nós escolhemos se vamos ser babacas ou elegantes: nós construímos e despertamos nosso mundo interior, ali onde reinamos soberanos.

O filósofo alemão Nietszche disse: "Deus não nos quer como ovelhas, mas como co-criadores".

O Algo não é ação, mas sublime ação: ação que vem daquilo que é o mais alto em nós: e o que é o mais alto em nós move o Sol e as outras estrelas: o Algo é o amor (outra palavra um pouco gasta): por tudo e por todos: principalmente pelos mais humildes, pobres, fracos.

Quando se diz Algo, está se dizendo, simplesmente, que somos tudo o que nos cerca: somos a luz e a treva; o tigre e a lama; o podre e o vivo; a pedra e a flor; o vento e a chama; o mar e o peixe; a música e o nada; o medo e a força: o Algo em nós é tudo. Mas precisamos, sim, do livre-arbítrio para escolher se vamos ser o podre ou o vivo; a morte ou a vida; o egoísmo ou o amor. A escolha é nossa, Shân, porque o Algo não é palavra nem imagem, mas vida verdadeira, vida em estado puro: música em estado puro.

A palavra Algo nada quer dizer, mas o que o Algo é mesmo, isto faz toda a diferença.

O Algo é cada detalhe do mundo exterior, só que dentro de ti. E é dentro de ti, Shân, que pulsa teu mundo, com chuvas e músicas, delícias e funduras, mel e sono, tempestade e amor.

Devemos serenamente fechar os olhos e escutar a voz do silêncio que há em nós: esta voz é o nosso diamante sonoro.

Se estás infeliz, fecha os olhos e viaje por teu mundo interno, pois ali és uma deusa e és inteiramente livre, sim!

Se não despertamos pra nossa liberdade interior, não somos felizes; e não somos felizes se não reverenciamos o Deus que há em nós. E pode ser que o Deus (ou Algo) em nós seja a coisa mais simples deste mundo. E o que é a coisa mais simples deste mundo, então?

Namastê: o Deus que há em mim reverencia o Deus que há ti, Shân.

Um beijo, com amor

Fernando José Karl

quarta-feira, 25 de novembro de 2009

Mula de Deus - Poema Final de Hilda Hilst

Equus Mulus. A mula, o animal híbrido. A filha do jumento com a égua. Da mãe herda a força e o tamanho, do pai lhe resta a servilidade e a resistência. Nada transmitirá, estéril, incapaz de transcender, descender, eternizar-se. A mula, imanente em seu corpo “pardacim” e “fosco”. A mula escrava, carregadora de fardos, equilibrista, a mula sempre recebedora dos achaques, dos açoites humanos. Que outro animal melhor serviria de metáfora para o poema final da obra de Hilda Hilst? Que outro animal daria conta de ser a montaria de Deus, a possuída de um Deus cheio de escracho? Nem o cavalo com sua elegância, nem o asno com seu tamanho breve, nem o camelo com sua falta de sede, nem o elefante com seu gigantismo, é preciso que seja a mula, a bastarda, a degenerada da espécie, só ela, a vergonhosa mula, conseguirá carregar uma locução adjetiva tão extrema: de Deus.
Rubens da Cunha







Hilda Hilst


in: Estar Sendo. Ter Sido.


MULA DE DEUS

I

Para fazer sorrir O MAIS FORMOSO
Alta, dourada, me pensei.
Não esta pardacim, o pêlo fosco.
Pois há de rir-se de mim O PRECISO

Para fazer sorrir O MAIS FORMOSO
Lavei com a língua os cascos
E as feridas. Sangüinolenta e viva
Esta do dorso
A cada dia se abre carmesim.

Se me vires, SENHOR, perdoa ainda
É raro, em sendo mula, ter a chaga
E ao mesmo tempo
Aparência de limpa partitura
E perfume e frescor de terra arada.


II

Há nojosos olhares sobre mim
Um rei que passa
E cidadãos do reino, príncipes do efêmero.
Agora é só de dor o flanco trêmulo
Há nojosos olhares. Rústicos senhores.

Açoites, fardos, vozes, alvoroço.
E há de mim um sentir delicioso.
Um tempo onde fui ave, um outro
Onde fui tenra e haste.

Há alguém que foi luz e escureceu
E dementado foi humano e cálido.
Há alguém que foi pai.E era meu.



III

Escrituras de pena (diria mais, de pêlos)
De infinita tristura, encerrada em si mesma.
Quem há de ouvir umas canções de mula?

Até das pedras lhes ouço a desventura.
Até dos porcos lhes ouço o cantochão
E por que não de ti, poeta-mula?

E ornejos de outras mulas se juntaram aos meus.
Escoiceando os ares, espumando de gozo
Assustando mercado e mercadores

Alegrou-se de mim o coração.



IV

Um dia fui o asno de Apuléius.
Depois fui Lucius, Lucas, fui Roxana.
Fui mãe e meretriz e na Betânia
Toquei o intocado e vi Jeshua
(Ele tocou-me o ombro aquele Jeshua pálido).

Um tempo fui ninguém: sussuro, hálito.
Alguém passou, diziam? Ninguém, ninguém.

Agora sou escombros de um alguém.
Só caminhada e estio. Carrego fardos

Aves, patos, esses que vão morrer.
Iguais a mim também.


V

Ditoso amor de mula, Te ouvir murmurando
Ó Amoroso! Ditoso amor de mim!
Poder amar a Ti com este corpo nojoso
Este de mim, pulsante de outras vidas
Mas tão triste e batido, tão crespo.
De espessura e de feridas.


Ditoso amor de mim! Tão pressuroso
De amar! (E de deitar-se ao pé
De tuas alturas). Corpo acanhado de mula.

Este de mim, mas tão festivo e doce.
Neste Agora
Porque banhado de ti, ó FORMOSURA.



VI

Tu que me vês
Guarda de mim o olhar.
Guarda-me o flanco.
Há de custar tão pouco
Guardar o nada
E seus resíduos ocos.


Orelhas, ventas
O passo apressado sob o jugo
Casco, subidas
Isso é tudo de mim
Mas é tão pouco...

Tu que me vês
Guarda de mim, apenas
Minha demasiada coitadez.



VII

Que eu morra junto ao rio.
O caudaloso frescor das águas claras
Sobre o pêlo e as chagas.

Que eu morra olhando os céus:
Mula que sou, esse impossível
Posso pedir a Deus. E entendendo nada
Como os homens da Terra.
Como as mulas de Deus.



VIII

Palha
Trapos
Uma só vez o musgo das fontes
O indizível casqueando o nada.

Essa sou eu.

Poeta e mula.
(Aunque pueda parecer
Que del poeta es locura).


terça-feira, 24 de novembro de 2009

Um poema de Octavio Paz traduzido por Marco Vasques



Refranes

Una espiga es todo el trigo
Una pluma es un pájaro vivo y cantando
Un hombre de carne es un hombre de sueño
La verdad no se parte
El trueno proclama los hechos del relâmpago
Una mujer somada encarna siempre en una forma amada
El árbol dormido pronuncia verdes oráculos
El água habla sin césar y nunca se repite
En la balanza de unos párpados el sueño no pesa
En la balanza de una lengua que delira
Ena lengua de mujer que dice sí a la vida
El ave del paraíso abre las alas


Sentenças

Uma espiga é todo o trigo
Uma pluma é um pássaro vivo e cantando
Um homem de carne é um homem de sonho
A verdade não se divide
O trovão anuncia os feitos do relâmpago
Uma mulher sonhada encarna sempre a imagem do amor
A árvore adormecida pronuncia verdes oráculos
A água fala sem parar e nunca se repete
Na dança dumas pálpebras o sono é nada
Na dança da boca é a língua que delira
A língua de uma mulher dizendo sim à vida
A ave do paraíso abre as asas


(Tradução: Marco Vasques)

segunda-feira, 23 de novembro de 2009

Francine Canto

Clic de Pedro Revilion

Michael Kenna, 1999




ENTREGA

digo:

beberei toda água da cisterna

a cisterna:

não te iludas

que sou infinda

nos dentes:

me lavarei então

toda imersa nesta água

para esquecer caramujos

unir-me

ao que na claridade é cisterna

francine

Convido a todos pra conhecer o blog de Francine Canto:

www.poemasdefrancinecanto.blogspot.com