O gramofone, o colar de pérolas
e o frasco com água benta
Cada um de nós terá
tido dessas noites insones, quando se escuta apenas a chuva.
Penso
durante a chuva e na minha decisão de amanhã ir ver, vinte anos depois, se ela
ainda vive no sobrado rente ao mar.
Tudo
o que eu tenho na vida cabe numa caixa de sabonete, por isso preciso saber se
ela ainda pisa as tábuas da varanda do sobrado onde costumávamos, deitados em
redes de embira nova, passar os verões de nossa mocidade.
Aqueles dias agora
parecem frios, como se tivessem sido cavados na pedra. Acordado, mas de
pálpebras fechadas, escuto passos sobre as carcomidas tábuas da varanda que
estalam. Na verdade, não há tábuas da varanda, porque eu imagino o ruído, e o
ruído desenha as tábuas da varanda do sobrado, desenha igualmente cada recanto
do sobrado de velha madeira, circundado por ventos apressados.
Eu
não sou nada ou sou um jarro vazio sem aquela que, talvez, ainda viva no
sobrado rente ao mar. Eu, sem ela, sou apenas uma dor que desemboca nos ossos.
Ela que, há vinte anos, possuía voz tão de gaze como essas mulheres que, no
bosque anoitecido, anunciam que os deuses devoram a cabeça dos que se recusam a
sonhar. Suas palavras de algodão se dissolviam nos meus tímpanos à maneira de
fios de rebuçado na concha da língua. Ela era muito pálida, com certo quebranto
nos olhos machucados, um ar de romance e de languidez em toda sua pessoa, e a
sua maior beleza estava nos cabelos negros, muito pesados, que deixava cair
soltos sobre as costas num desalinho de nudez.
Dizia-se
que tinha literatura e fazia frases.
Não
suporto mais o excesso de solidão e de silêncio que vincam os meus dias de
amargura, por esse motivo é que amanhã irei ver se, vinte anos depois, ela
ainda respira no sobrado rente ao mar.
Um
hálito perfumado de capinzal me invade quando chego perto das janelas
escancaradas do sobrado enorme, com jardim, com piscina, com a escultura de
mármore na entrada.
A
mulher que está no banco de pedra ante o mar, com os cotovelos pousados na mesa
de madeira, essa mulher, cansada pela salsugem marinha, morreu
ontem, mas como – se morreu – ainda pode estar com os cotovelos na mesa de madeira? É que estou
imaginando que a mulher que morreu ontem está ali com os cotovelos na mesa de
madeira e espia o mar, flagra a canoa levando embora a sua respiração.
Se
a canoa retornasse, mas a canoa não retornou.
Recebo
dos homens da agência funerária uma espécie de caixa onde enfiaram as cinzas
que foram dela. Remexo as cinzas com o garfo, mas nas cinzas nada de nada:
nenhum sopro de voz, nenhum osso, nenhum resquício de memória, nenhuma presença
contínua.
Vou até o mar deitar as cinzas e respiro entre as árvores, porque é só
o que posso fazer agora. Ainda não sei porque permiti que queimassem, além de
seu corpo, também o gramofone, o colar de pérolas e o frasco com água benta.
Fernando José Karl