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quarta-feira, 31 de março de 2010

Uma crônica de Rubens da Cunha

A MEIA-IDADE

Os olhos doem. Dentro: pelo que veem. Fecha-os. Não adianta: doem pelo que pensa. Sobre os ombros o cansaço, a solidão, aquele sem-sentido na vida. Crise da meia-idade, dizem os mais chegados. Meia-idade? Mas o que é isso? Uma perspectiva, uma estatística, um 50% off, como nesses cartazes nas lojas? E qual é a idade inteira de um homem? A pessoa vai adquirindo idade ou perdendo-a? Tem algum ódio desse negócio de meia-idade porque ela retira do nascimento o poder e o dá a morte. Parece-lhe que um homem com meia-idade é um homem com meia vida. A idade completa ele alcançará no dia em que morrer? Tentam lhe explicar que não é bem assim, que é um período de mudanças, em que o homem não é mais jovem, mas também não é velho, está na meia-idade. Os olhos doem. As perguntas não param de nascer e abocanhá-lo. As paredes brancas do apartamento, a vida exigindo uma mudança. O trabalho, o casamento, os amigos, a mesma coisa de sempre. “Te assenta, homem!” parece ouvir a alma dizer. “Te espraia nesse sofá confortável que o teu trabalho comprou, assiste uma inutilidade nessa televisão pregada na parede, fica quieto, dorme, toma uns comprimidos, esquece”. Obedece à alma, o sofá é realmente confortável, quase metade do salário, a televisão vomita salafrarices em todos os 160 canais. Fica quieto, os olhos doem, além das costas. Não dorme, muito cedo ainda. No armários de remédios, vê a vida da mulher em pílulas. Olha as roupas dela jogadas no quarto, a mulher deve estar sofrendo da crise da meia-idade também. Disse-lhe que iria ao shopping. Pensa na possibilidade de estar sendo traído. Pela quantidade de remédios no armário, não deve se preocupar. Ela está prazeirando-se nas compras. Logo chegará com uma roupa nova para ele, talvez uma calça, uma gravata. Ele sorrirá, dirá que não precisava, ela dirá que foi ele mesmo quem pagou e rirá da piada dita há mais de vinte anos. “Te assenta, homem!”, ouve a alma de novo. Talvez devesse sair. Talvez devesse resolver a crise de meia-idade à moda de alguns conhecidos, arranjando mulher mais nova, virando um tiozão de meia-idade, frequentando os puteiros da adolescência. Desiste, lhe falta pulsão, pulso. Tem meia-idade, os olhos doem, mas o senso de ridículo permanece intacto. Por outro lado, esse mesmo senso não lhe permitiu tantas coisas, tantas entregas, tantas idas à outra margem que não fosse aquela da segurança, da discrição, do recato. Engole um dos comprimidos da mulher. A ideia de engolir todos os comprimidos da mulher lhe provoca um pequeno sorriso de ironia. Viveu que nem homem a vida toda, se tivesse que se suicidar iria ser que nem homem: corda ou tiro. Nada de remedinhos, coisa de gente idiota. A mulher chega, faz o teatro esperado, ele também representa bem o agradecido pela camisa nova. As paredes brancas do apartamento. Os olhos doem. Ele tenta conversar. Ela liga a televisão, aumenta o volume. Convida-o para ver a novela. A sua meia-idade está sendo um tempo de poucas escolhas. “Te assenta, homem!”. Obedece à alma e à mulher.

terça-feira, 30 de março de 2010

Noite de poesia no Coisas de Maria e João




OS SINGULAR, RODRIGO DE HARO E LANÇAMENTO DA COYOTE


Ryana Gabech, Dennis Radünz, Cristiano Moreira e Rubens da Cunha falarão poemas DOS SINGULAR, no dia 4/4, às 19h no bar e espaço cultura Coisas de Maria e João. Na ocasião será dito dois poemas de cada um dos dez SINGULAR. Rodrigo de Haro lerá alguns poemas junto ao lançamento da revista de arte e cultura COYOTE, do Paraná, que traz nesta edição um dossiê sobre de Haro. O dossiê é assinado por Marco Vasques e Rodrigo de Haro. Coisas de Maria e João fica na geral do Sambaqui, 1172. Apareçam.

domingo, 28 de março de 2010

Poemas Experimentos

Em 2007 Éverton Almeida e eu iniciamos um trabalho a partir de poemas meus com intervenções sonoras elaboradas pelo Éverton. O projeto chamava-se A Carta Náutica do Corpo e apresentamos uma única vez em Concórdia. No último 19 de março participamos do projeto Via Poesia no SESC de Itajaí com uma leitura de poemas de Ferreira Gullar. Nesta ocasião, contamos com as participações de Patrícia Moreira, Jussara Nascimento e Elaine. Foi uma leitura com intervenções de corpos sonoros e varições de voz. A leitura de ROÇZEIRAL ( poema que é uma explosão do Sentido), foi inspirada nas leituras feitas por Hugo Ball no Cabaret Voltaire em 1916/17.

Para quem quiser ouvir, basta acessar a página no My Space.

http://www.myspace.com/seoverton


boa audição.

sábado, 27 de março de 2010

Da série "eu odeio certas verdades" I

O escritor que pretende fazer uma obra singular está condenado a inventar à medida que percorre a estrada pela qual caminha, a desconfiar de qualquer carreira previamente traçada. Não pode visar riqueza, pois visando-a, arrisca-se a se tornar um escritor medíocre. Pior: o sucesso é um sinal ambíguo, que muitas vezes revela uma conformidade inquietante a uma moda transitória e não garante glória sólida. Enquanto para a literatura comercial o sucesso é uma garantia de valor, para a criação verdadeira o sucesso imediato tem algo de suspeito. [...] Quaisquer que sejam a regularidade de seu trabalho, a quantidade de esforço e de tempo investido, o escritor não consegue programar o lucro que terá, principalmente quando se trata de um reconhecimento a longo prazo. O lucro conseguido com a literatura depende mais da decisão insondável de um acaso do que da gestão de um patrimônio.

Dominique Maingueneau in: O Contexto da obra literária

quarta-feira, 24 de março de 2010

Uma crônica de Marco Vasques

BONS DIAS I


Bons dias. Aqui as coisas vão como sempre: saudades de você, algumas praias bonitas, outras totalmente destruídas. Uma caminhada por dia. Uma noite de sono a cada 24 horas. Os carros cruzando as mesmas ruas, furando os mesmos sinais. Uns morrendo nos hospitais, outros fazendo sexo. Muita gente passa fome. “Um dia chove, outro faz sol”. Amores nascem e morrem a cada minuto. Uma criança se perde e outra é raptada. Duas velhinhas solteiras me olham pela janela. Um cachorro late na casa do vizinho. Alguns vão à escola. Muitos homens e mulheres sem emprego mordem a sorte nas latas de lixo. Um bêbado dá discurso em plena avenida. Um homem estupra sem pudor sua filha e bate na mulher. A polícia continua batendo em mendigos e crianças. As filas sempre aumentando. Importante lembrar que não há ônibus e, quando há, circula vazio pelas avenidas. Não há pão e nem remédio para todos. Alguns atropelamentos. Uma morte súbita por dia (ou mais). Terremotos já não são mais raridades. Ciclones nos visitam para o café da tarde. Televisão ligada quase 24 horas por dia. O lucro e o sexo permeiam todas as relações. Os políticos continuam políticos: sempre atrás de lucro e sexo. Os padeiros não fazem mais pães (ninguém descobre o motivo). Os pássaros se tornaram mudos da noite para o dia. As cores não mais são distintas. A tristeza e a alegria são sentimentos amorfos. Aqui tudo continua assim. Os pedófilos? Cada vez mais requintados na arte da crueldade. Continuamos sabendo que o corpo se deteriorará, mas continuamos dando valor excessivo a ele. Todos continuam a fingir que a morte não baterá na sua casa. Uma moça nua arranca a pele, ao vivo, dentro de uma jaula dependurada num desses caixotes de muitos andares. Tenho uma prima que coleciona as caixas de remédios que tomou durante toda a vida: são sacos e sacos dentro de um quarto escuro. Uma multidão de homens, mulheres e crianças sobem os riachos secos, cheios de seixos, à procura de uma fonte. Uns meninos mordem facas e vendem pedaços de suas línguas a preços muito baixos. Vagões e vagões de mortos atrapalham minha memória. Há doces, nesta quarta-feira de chuva, espalhados por cima de uns cadáveres insepultos. Eles estão nus. Um tem até um sorriso verde. Os meninos que pisam os mortos emolduraram o sorriso verde da moça de cabelos de fogo. Não poderia esquecer de dizer que uns vivos estão mortos na própria respiração. Eles não enxergam os outros, não têm desesperos, são retos como uma régua de 30 centímetros. Também não posso esquecer que estamos tendo umas noites de poesia. Luiza fala poemas como se todo o corpo fosse um olho vivo nesta terra mórbida e insossa. A terra come uns olhos e consome cor e luz. Assim somos: um voo no olho que queima imagens. Saudades de você. Aqui, as coisas: vão. Sempre.

Um texto de Ryana Gabech

Alice fora da Casca

Alice encontra a Lagarta no terminal de ônibus de Florianópolis:
- Você nunca vai trabalhar, menina? Sempre neste mundo da fantasia, crescendo e encolhendo....Só falta a cestinha de maçãs da bruxa! Ara!
-Mas eu sou uma criança! Estou indo para o Alaska, encontrar o Alce Dourado!
-O que você vai ser quando crescer? A propósito que tecido péssimo para uma garota com a pele tão fina, Alice. Você não tira esse vestido azul ha séculos!
A Lagarta pega a mala antiga, a alça de metal emperra, ela abre a mala, tira o que tem dentro e coloca numa sacola plástica. Joga a mala na rua, caximba e diz:
-Adoro ver os carros desviarem seus cursos. Caximba três vezes.
-Às vezes eu queria ser aeromoça ou professora. Alice fala insegura.
-Vocês jovens sempre com sonhos tão distantes. Porque não pensa em ser uma cabeleleira em Tagaçaba? Ou ainda, a cozinheira predileta de um posto de estrada em São Luís do Maranhão?
-Mas posto de estrada é sujo. E eu odeio cigarro. Eu prefiro trabalhar em...Alice começou a ficar nervosa, pois não conseguia pensar em algo diferente, já que estava condicionada a escolher entre ser professora ou aeromoça..Até que lembrou:
-Em um orfanato...Isso! Eu preferia trabalhar em um orfanato!
-Para quê? O destino é cheio de seres desovados e sem casco.
-Mas eu gosto de ajudar as pessoas. Eu adoraria contar histórias para as crianças abandonadas de...Israel!
-Você diz isso porque é jovem, mas o fogo sempre abranda. Essa mania de pensar tão longe me irrita!
-Como eu devo agir então? Dona Lagarta ofendida?
-A vida é cheia de magia Alice. E eu não estou ofendida, apenas tenho algo que você não têm - casca!
E a Lagarta foi entrando no ônibus lentamente, Todos os passageiros tinham entrado,o cobrador já estava bufando.
Alice queria ir embora mas esperou o último degrau, como se soubesse que a Lagarta ia falar mais alguma coisa:
-Não queira muito Alice. Lembre-se de doar alguns caramelos, mas não o último. Dar é feminino de dor, Alice!
-Mas...
-Não queira muito Alice!
E a lagarta foi-se embora deixando um rastro de fumaça.

Uma crônica de Rubens da Cunha

Crônica publicada no jornal A Notícia em 24/03/2010

A POESIA MARGINAL

A poesia é de todos os gêneros literários, aquele que fica mais à margem. É como se o terreno da poesia fosse uma terra de ninguém, um vasto campo de experimentações, e à medida que essas experimentações foram sendo feitas, a poesia foi se encastelando, ora em torres de marfim, como no simbolismo, ou no mundo misterioso e paralelo do surrealismo, ou no grande apreço que se deu à forma, ao objeto poema, do concretismo. Por se colocar, em sua maioria, tão à margem, por estar nesse campo entre a loucura e o sonho, entre a ousadia da linguagem e o hermetismo, a poesia foi reduzindo consideravelmente seus leitores, que nunca foram muitos, é bom que se diga. Um dos mais importantes movimentos literários recentes no Brasil foi a “poesia marginal”. O nome em si já me parece um pleonasmo, um “entrar pra dentro”, dada a condição marginal da poesia. O interessante é que o movimento poético surgido na década de 1970, tenta justamente sair desta margem, recomeçar um diálogo que já existiu entre o povo e os poetas. Era a poesia do momento e para o momento, sem pensar muito em perenidade. Os poetas marginais se apoderaram de uma linguagem não-poética, não elevada, totalmente cotidiana, para construir seus poemas aparentemente descartáveis, um reflexo do tempo descartável que estavam vivendo. Obviamente, esse movimento perturbou não apenas o sistema político vigente, mas o próprio sistema poético, pois parecia uma traição abandonar a margem segura onde a poesia estava instalada para se aventurar numa linguagem baixa, suja, misturada com a poeira das ruas. Mais do que marginais ao sistema, os poetas eram marginais à própria poesia canônica, clássica, talvez por isso adjetivo “marginal” colado a esse movimento, me pareça, sob o ponto de vista do sistema, algo pejorativo, mais associado à vagabundagem, à malandragem, à falta de seriedade. No entanto, os poetas assumiram a marginalidade e a consequente liberdade que ela proporcionava e fizeram disso matéria prima para a sua escrita, alterando a ordem vigente, preenchendo os espaços possíveis naquele período, justamente com a sua voz marginal, desregrada, não séria e fazendo da poesia aquilo que José Carlos Capinan disse que ela era: “a lógica mais simples” e por isso tão desarticuladora da ordem estabelecida. Passados mais de 30 anos, alguns dos poetas marginais já estão participando do cânone, já estão nas escolas sendo citados como exemplo literário a ser seguido. Apesar da aparência desleixada dos poemas, e dos próprios poetas, eles sabiam muito bem o que estavam fazendo. Além disso, é uma tendência natural, os movimentos artísticos surgem, rompem com o estabelecido e depois se estabelecem à espera da próxima ruptura. Nisso a arte não difere muito da vida.

domingo, 21 de março de 2010

Poema de Marco Vasques e desenho de Fernando Lindote


(si)


eu vi o tempo das águas
e os corpos expostos nas galerias
dormem na pele dos tempos

por isso

minha carne continua líquido
e minha alma se evapora

pedra

sexta-feira, 19 de março de 2010

Os Banidos - Poema 20 de "Anunciação e Encontro de Mira-Celi" de Jorge de Lima

Nunca fui senão uma coisa híbrida
metade céu, metade terra,
com a luz de Mira-Celi dentro das duas órbitas.
Até onde chega a doce abóbada divina não sei;
mas sinto muitas vezes os pés pisarem nuvens
e a boca com um saibro de terra escura.
Sou, portanto, decaído deste lume primitivo.
Basta olhar para os meus desgostos
para se reconhecer que uma estrela cadente
se esfarela dentro do meu destino.
Sou, como vês, um mestiço de Satanás
e de Eva redimida.
E onde podia descansar a fronte,
queima-a o lume estelar, iluminando a minha nudez.
Todavia nao me salveis, ó vós que inventais grandes reformas
para melhorar o mundo.
Prefiro ser este aleijão celeste,
possuir estes farrapos de Rei-Saudade
e este fígado golpeado e estes olhos
com seus pobres vidros mareados.
Prefiro que não me salveis, grandes reformadores,
nem vos compadeçais de meus andrajos,
que outrora foram esplendente nudez,
nem vos apiedeis desta humildade torpe,
que isto é um resto do orgulho que me perdeu.


Jorge de Lima

quinta-feira, 18 de março de 2010

Poema de Marco Vasques e desenho de Fernando Lindote


(lá)


construo um castelo no corpo
e permaneço tonto até
que uma nota venha me musicar

sou o diapasão

sou o corpo que corre
no silêncio das águas
ainda que não nascido

quarta-feira, 17 de março de 2010

Uma crônica de Marco Vasques

UMA CONSULTA

_ Bom dia!
_ Bom dia!
_ Minha consulta está confirmada, certo?
_ Sim
_ Doutor Robert já está aí?
_ Aguarde um instante, vou comunicar que o senhor chegou.
_ Doutor, o senhor... senhor...
_ Aristides! Aristides!
_ Desculpe-me.
_ O senhor Aristides já está aqui.
_ Mande entrar!
_ Sim! O senhor pode entrar, pois ele lhe aguarda.
_ Bom dia!
_ Bom dia!
_ E então seu Aristides, como anda as coisas?
_ Nada bem doutor.
_ Como assim homem? Nada bem!
_ É o seguinte Doutor: eu ando meio atormentado. Sabe. Esta coisa de estar no mundo e daqui a pouco sumir! Essa coisa eu não consigo trabalhar. O Doutor já pensou que em 100 anos nenhum de nós, salvo raríssima exceção, estará aqui para ver no que desembocamos? Para onde conduzimos as coisas? Já pensou que tudo vai continuar andando sem as nossas presenças? Já pensou?
_ Hum...
_ E tem mais Doutor. Se estou caminhando pela manhã lá vem uma placa de carro AMS 0176. Aí eu já fico louco. Bem, aí tem alguma coisa. E já fico a ver sinais de minha morte naquela placa.
_Mas é só uma placa, Aristides!
_ Nem tudo é o que parece Doutor. Não é uma placa qualquer: MAS 0176. Pode muito bem ser um sinal, pois Aristides Morais da Silva, nascido em 76 tem só mais 01 ano de vida! Não pode? Um sinal do acaso! Uma luz para eu apressar meus projetos, para eu amar mais, para eu tentar me tornar mais humano, menos mesquinho!
_ Hum...
_ E se estou embaixo do poste, Doutor!
_ O quê?
_ É. Se estou embaixo de um poste penso logo que um fio pode rebentar e me matar. Aquela coisa da ACRONIA, sabe? Estar no lugar errado na hora errada. Já pensou! Tudo é tão fugaz. Eu posso tomar um suco infectado e morrer! Não viu aquele jovem! Ah! Uma picada de um bichinho minúsculo pode nos levar ao óbito! “Eu vejo morte em tudo que vejo”.
_ Hum... A música!
_ Sabe Doutor, quando ando pelas ruas e vejo um mendigo, ou um pedinte qualquer eu choro, porque minha imagem está refletida naquelas pessoas. Eu sou um mendigo! Eu sou a prostituta suja de sêmen!
_ Hum...
_ E se dou um mergulho no mar? Aí que é de arrepiar. Vejo todos os mortos que os mares do mundo já engoliram. Vejo todas as faces. É em lágrimas que estou mergulhado. Eu não sei mais o que fazer.
_ Hum...
_ Um noticiário da semana passada me deixa atormentado até hoje, dizia mais ou menos assim: uma mulher da cidade de Joaçaba, de apenas 25 anos, afogou seu filho, um bebê recém-nascido, num balde de água. Depois foi a um lago lavar roupas como se nada tivesse acontecido. Esfregou o bebê até desaparecer. Desapareceu nada! Está vivo comigo! Não consigo dormir. Fico pensando que aquele pouquinho de água, em minutos, virou toda água do mundo, Doutor!
_...
_ Vivo dizendo que nada importa porque vamos todos morrer mesmo, mas me importo com quase tudo que me cerca. Tudo me toca. O olhar daquela velhinha que passa as tardes na janela, aquele olhar não sai da minha pele. É uma fusão. Já cheguei a pensar que eu sou os olhos tristes daquela senhora de mais de 80 anos que insiste em me olhar todos os dias.
_... Hum... Manuel Bandeira! As pernas de Tereza! Os olhos de Tereza.
_ Doutor, que sociedade a nossa? Como pode o mundo se preocupar se alguém usa o não uma peça íntima e não ser apavorar por 500 crianças ficarem cegas, todos os dias, por imaginarem um prato de comida?
_ Hum...
_ Eu ouço os sonhos dos mortos quanto passo pelos cemitérios. Eu me apavoro com tanta voz emudecida. Onde foi parar o canto dos pássaros? E pela noite, na calmaria do mundo, minhas paredes choram. “Anjos escorem pelas paredes”. Um fogo me queima o estômago pela manhã.
_ Hum... Nelson Rodrigues! Camões, talvez!
_ Doutor...
_...
_ E então Doutor?
_ Então o quê, Carla?
_ Que tal esse seu Aristides, sujeito meio estranho, não?
_ Um coitado, Carla. Um coitado!
_ O que ele tem?
_ Doença rara, incomum e sem tratamento.
_ Coitado! E o que é exatamente?
_ SENSIBILIDADE! SENSIBILIDADE!

Uma crônica de Rubens da Cunha

Crônica publicada no jornal A Notícia no dia 17/03/2010
A VIDA EM BRANCO
A vida em branco. Tinha medo disso, medo de nada acontecer, ou acontecer tão devagar que nem desse para perceber. A vida em branco. Assistia a novelas, filmes. Ouvia músicas, relatos das vizinhas, fofocas das companheiras de trabalho, todos envolvidos em casos, confusões, armistício sentimentais, intrigas paralelas, altos e baixos e ele nada. Branco, pureza completa. Passou a vida tentando resolver essa situação. Na juventude, converteu-se à Igreja Deus É Provedor da Sua Essência Cristalina. Cultos, preces, orações gritadas, milagres e exorcismos, tudo para encontrar a essência cristalina providenciada por Deus. Ficou lá o tempo de ser exorcizado, batizado, cobrado, e de nada acontecer. A sua fé não conseguia ser despertada. Havia sempre um riso por dentro, sempre uma ironia da qual ele não conseguia se livrar, por achar tudo aquilo um teatro irresponsável. Abandonou a igreja. Pensou em viciar-se. Perambulou pelas ruas atrás dos viciados. Viu seu estado lastimável, morrendo aos poucos, alucinados nas calçadas, debatendo-se com visões às sete horas da manhã. Ficou com medo. Não queria a vida em branco, é certo, mas a noite em pleno dia também não queria. Foi procurar algo que alternasse mais os momentos, que fizesse dele um homem experiente, vivido, que cumprisse a famosa canção de Roberto Carlos: “o importante é que emoções eu vivi.”Amor sempre dá dor de cabeça e prazer. Decidiu apaixonar-se. Espalhou sua solteirice de homem sério e disposto a compromisso também sério. Rolaram pretendentes, escolheu aquela que lhe pareceu a mais perigosa, saia curta, maquiagem espalhada sobre a cara numa tentativa de esconder a idade, os gestos e a fala resvalando na vulgaridade. Parecia a mulher certa, em pouco tempo estaria envolto em intrigas, traições, ciúmes, quem sabe até uma tentativa de assassinato. A sua vida amorosa seria um filme. Deu errado. A dona revelou-se sóbria, caseira, abnegada dona-de-casa e esposa prestimosa. Abandonou a vulgaridade, a maquiagem, rejuvenesceu até. Teve de traí-la. Ela, nada fez, disse que o aceitava assim, que era sua função de mulher. Teve de abandoná-la. Voltou a ser solteiro, mas um pouco mais desconfiado das mulheres. E as personagens estressadas, loucas, psicopatas dos filmes? Por que ele não merecia alguém assim, até a amante que arranjou domesticou-se para estar com ele. Largou o emprego. Achou outro melhor. Fez alpinismo, rapel, paraquedas, viagens a países em guerra, devastados por terremotos. E sempre dentro a sensação da vida passando em branco. Outros diziam que não, que ele olhasse em torno, o quanto tinha feito, o quanto de sorte possuía, de como a sua vida tinha sido melhor e maior do que a maioria das vidas, que ele deveria escrever um livro. Iria dar um grande livro e depois um grande filme. Por fim, convenceu-se a escrever, e ao lembrar-se do que viveu foi percebendo que a sua vida era igual a tela do computador: o fundo branco pontilhado por palavras negras. Nem tudo branco, nem tudo escuro. Vida pontilhada de vida.

Conto e imagem de Antonio Carlos Floriano


O AGIOTA

Tinha no bolso doze mil euros para pagar o ladino. Parou bem no final da rua. O sol dourando as fachadas dos sobrados. Tinha que pagar. E se não pagasse? Gastaria o dinheiro e esperaria uma reação do sovina. Mas o velhote tinha salvado seu noivado com a moça mais bonita do rio do Ouro e isso tinha uma valia para todo o sempre. Iria pagar. Subiu as escadas e viu, pela fresta da porta janela, o casaco desfigurado do agiota. Bateu com o toco do dedo e nada do velho virar a cabeça. Pediu licença e aproximou-se. O cristão novo com a cabeça emborcada na xícara de café tinha no rosto lilás um encarnado nos lábios. Uma torrada sufocava a garganta e entupia a boca. Morto por um pedaço de pão. Não pensou duas vezes, correu na mesa estante e buscou com grande sucesso seu caderno de notas. Procurou e ali estava: José Arimateu, doze mil euros. Rasgou a página e sumiu pela noite já quando os últimos lojistas fechavam suas vitrines. Semana seguinte voltou até a padaria em frente e perguntou se sabiam onde morava o agiota. Precisava de um empréstimo e ouvira boas recomendações sobre um senhor distinto que ajudava todos por ali naquela freguesia. Morreu com uma fatia de torrada no pomo de Adão, respondeu aliviado o padeiro em tom de galhofa com um enorme sorriso entre os imensos bigodes.

sábado, 13 de março de 2010

Poema de Cristiano Moreira

O que há de certo em uma língua mínima:



gramíneas


sexta-feira, 12 de março de 2010



(sol)


minha morte move-se nos dias
multiplica relógios
ao som de um silêncio surdo
absurdo

irônico os círios luzindo
a velar o desejo
alheio

apaguem os meus sóis

quinta-feira, 11 de março de 2010

Ser Tanto. Ser Tato.




O vento lhe sopra a nuca. Gosta dessa intimidade com o invisível que só pode ser sentido pelo tato. Estranho, dão tanto valor aos olhos, à visão, mas o que realmente enxerga o que não pode ser visto é o tato. O vento mais forte, fechando o dia, a brisa amena das 9 horas da manhã, o calor dos meio-dias de dezembro, os invernos-infernos de julho, ou ainda as coisas do alto, do outro lado. Um arrepio, uma premonição, o corpo recolhendo para si o fluxo, o trânsito, a linha densa, mas, ao mesmo tempo, tênue entre o real e a superstição, entre a ciência e a fé, entre o que existe aqui e lá e é só dúvida de muitos e certeza de muitos. Lembra sempre de um trecho do poema de João Cabral, “Escrito com o Corpo”, como ele o chamou: “Porém de perto, ao olho perto, sem intermediárias retinas, de perto, quando o olho é tato, ao olho imediato em cima, descobre-se que existe nela certa insuspeita energia”. Quando o olho é tato, igual nos cegos que andam firmes, certos da visão de pele, e mão e pé. Igual quando as pessoas se amam no escuro, e tudo se resume a experimentar caminhos, um no corpo do outro, com as mãos, o peito, as pernas, o queixo, a boca e até mesmo a língua, que antes de ser terreno do sabor, é pele para ser encostada sobre outra. O beijo é mais do que um encontro de bocas, é um encontro de corpo, sem “intermediárias retinas”, sem o império do olhar. Acredita que a natureza fez o homem mais que um bicho sem pelo, fez de nós depósito de sensações. Por isso, o tato é do tamanho do corpo, talvez por isso tivemos que cobri-lo com roupas, negar seu poder, concentrá-los nas mãos, no rosto, escamotear a dimensão do toque, ficarmos restritos aos olhos, ao que se molda apenas na distância. O tato exige a perigosa proximidade, só ele capta a “insuspeitada energia”. Só ele confirma o que os olhos não conseguem. Por que será que apertamos sempre as frutas, sentimos a maciez e a firmeza de um tecido, desobedecemos sempre as plaquinhas de “por favor, não tocar”. Só pode ser porque, antes de ver, de ouvir, de cheirar, de degustar, era o tato quem determinava, quem dizia o que gostávamos ou não. Lembra-se de Adão e Eva antes de romperem as fronteiras, antes de conhecerem o resto do corpo, de como andavam inocentes, de como eram insuspeitos, tato puro nos inícios. Quando romperam, quando deram poder aos olhos foram expulsos. Perderam o tato, perderam o jeito. Por pensar em tudo isso, sem saber mesmo quem é, por se sentir vítima de um sistema intransponível, por saber que terá que conviver dentro dos padrões visuais imperativos, vez ou outra fecha os olhos, despe-se e deixa-se ser. Nada mais, sem subterfúgios, sem cascas, sem medo, sem as agruras da vaidade ou da estética. Apenas ser tanto. Ser tato.

Rubens da Cunha

Imagem. Nudo Disteso, de Franco Gentilini

quarta-feira, 10 de março de 2010

Uma crônica de Marco Vasques

DOS ENCONTROS

A noite começou assim: dois mundos. O cenário: corriqueiro. Numa mesa quatro mulheres com feições exuberantes e belezas singulares. Uma morena, uma loira, uma morena clara e uma acastanhada. Elas compunham o retrato completo de nossa miscigenação. Ao lado, noutra mesa, quatro rapazes. Quatro gajos, já que um deles era um legítimo português. Um loiro, dois morenos claros e um europeu careca. As moças riam abertamente. Uns risos de varar a alma. A comida relegada a um segundo plano. Enquanto a comida dormia sobre a mesa, construindo uma espécie de natureza-morta, os olhares esquentavam a atmosfera. E tudo começou:
_ Vejam! Aposto que são dois casais.
_ Será!
_ E se eles estiverem pensando o mesmo de nós?
_ São dois casais sim. Não vê aquele de camisa verde?
_ Ah, não! O de camisa verde não é. Com aquela cara de sem-vergonha! Duvido!
_ Mas olha como ele experimenta vinho?
_ Querida, existem muitos sem-vergonhas refinados por aí. Não lembra do Oscar não?
_ Que homem o Oscar!
_ Você também saiu com ele?
_ Ora, ele não era um sem-vergonha? Por que a surpresa!
_ Não se acha mais homem como o Oscar.
_ É possível deduzir.
_ Calma!
_ O que foi?
_ Sei lá. Eles estão rindo tanto. E aqueles dois que não param de olhar.
_ Bem, não são exatamente homens bonitos.
_ Mas...
_ Mas o quê?
_ Na situação em que estamos.
_ Que situação?
_ Estou falando da falta de homem, é claro!
_ É verdade.
_ Sim! E é a falta de homem que leva a outra situação.
_ O quê?
_ É a falta de homem que nos leva a falta de sexo.
_ Cruzes!
_ Cruzes!
_...
_...
_?
Enquanto a conversa se desenrolava na mesa feminina, ao lado, o papo assumia outra direção.
_ Conhece a poeta Selva Casal?
_ Não.
_ Emprestarei o livro dela. Estou traduzindo. Chama-se El infierno es uma casa azul. Existe mais que o Benedetti e Juan Carlos Onetti no Uruguai. Muito mais.
_ Estás a falar de mulher? Temos as poéticas de Maria Grabriela Llansol e a da Luiza Neto Jorge.
_ O Brasil não pode reclamar: Hilda Hilst vai à veia.
_ Clarice então.
_ Mas não estamos somente de poetas?
_ Mas a Clarice é uma poeta...
O garçom aparece com mais uma garrafa de vinho e o papo seguia em torno das mulheres que revolucionaram a linguagem literária acompanhada de alguma concordância em torno do que define os gêneros literários. Até que as mulheres ao lado, uma a uma, começaram a sair do restaurante. Ao vê-las sair um apavoro toma conta da mesa dos gajos. Uma a uma saem balançando ancas e perfumes. Um ar de desespero surge na mesa até que o português avança o sinal. E antes que a última mulher deixasse o ambiente ele segura seu braço esquerdo:
_ Como te chamas?
_ Helena.
_ Helena de Tróia, minha deusa!
_ ah!
_ Helena de Tróia, do poeta grego Homero. Helena era a mulher mais linda do mundo. Você confirma a tese do poeta.
_...
A essa altura a moça já estava com vontade de dar o fora, pois percebeu que aquilo era coisa de maluco ou de conquistador barato. Pensou que se tratava de mais um daqueles que decoram quatro ou cinco versos, vinte frases e saem por aí pensando que é um pensador legítimo. Mas a moça resolve investigar:
_ O que vocês fazem?
_ Somos escritores!
Ela continua sua investigação e resolve provocar:
_ Todos nós somos escritores. É só sentar na frente de computador e escrever!
A conversa não ia acabar bem, pois um dos escritores já estava pronto para dar xeque-mate. Estava para soltar a frase fatal, quando a moça replicou a pergunta:
_ o que você fazem?
_ Somos poetas, escritores. Pessoas que estudam a literatura, a poesia, a língua.
_ Ah? Como! Poetas!
_ Escritores, Helena.
_ Vocês querem dizer que vocês são principalmente escritores? Não fazem mais nada? Vocês são principalmente escritores?
_...
_...
E saiu ao encontro das três amigas.
_ E então?
_ São ou não são dois casais?
_ Então Helena?
_ São poetas!
_ Apenas poetas?
_ Não, não são apenas poetas, só poetas. Eles são principalmente poetas!

Uma crônica de Rubens da Cunha

AS PULSEIRAS

A onda das últimas semanas foi a polêmica em torno das pulseirinhas do sexo. Polêmica suscitada em muito pelos vereadores de Navegantes, que resolveram proibir o uso das pulseiras nas escolas. Obviamente, os vereadores de outras cidades, Joinville inclusive, já se asseveraram donos da verdade, da moral, dos bons costumes e estão criando projetos de lei que proibirão o uso das pulseiras. Como sempre, os políticos (assumo aqui a perigosa generalização) usam da tática de matar a vaca para combater o carrapato. Dão provas que sabem muito pouco da vida real, de como ela caminha bem mais embaixo do que pensam suas cabeças encasteladas nos gabinetes. Adolescentes vivem criando e destruindo moda. As pulseiras seriam apenas mais uma dessas modas que não resistiria ao primeiro semestre, mas que graças aos vereadores ganha ares de proibição. Pronto, criou-se um fato, criou-se um acontecimento que poderia ser resolvido no âmbito de cada escola, de acordo com as peculiaridades de cada escola que agora serão obrigadas a cumprir uma lei inútil e já datada, pois mesmo com toda a polêmica, essa brincadeira não irá muito longe. E quando os adolescentes criarem outros códigos, outros caminhos para comunicarem os seus desejos, o que farão os vereadores? Farão um upgrade da lei? No entanto, agora me limito a esse fato específico e me pergunto qual a funcionalidade de uma lei como essa? Quem fiscaliza? Quem pune? Qual a punição? Arrancar o braço fora? Prender o pai, a mãe, o professor que não conseguiu fazer com que os adolescentes parassem de usar tão ‘pernicioso’ objeto? Além de tudo, me parece que essa lei fomenta a hipocrisia: os adolescentes guardarão as pulseiras na bolsa e ao sair do colégio as colocarão de novo. Ou os nobres vereadores acreditam que as relações acontecem somente no pátio da escola? Que basta proibir o uso e num passe de mágica eles voltarão a ser meninos e meninas muito bem comportados? Haja paciência. Se os políticos são movidos a hipocrisia, a maioria das pessoas não é. Obviamente, não nego que temos um problema a ser enfrentado diante dos jovens que estão se relacionando sexualmente cada vez mais cedo de forma inconsequente. Mas é uma questão que envolve, sobretudo, a família. Se a família está desestruturada, individualizada, na mais profunda falta de diálogo, transferindo para a escola o seu papel fundamental de educar os filhos, não será com leis inúteis, que atacam um modismo, que a situação será resolvida, ou amenizada. Lembrando, que essa onda das pulseiras nasceu na Inglaterra, a rica e educada Inglaterra, o que demonstra que o problema é mundial e ultrapassa a condição finaceira ou educacional. É algo muito mais ligado ao comportamento da sociedade, algo que está em constante mutação e que político nenhum no mundo vai conseguir parar, por mais que eles queiram. Além disso, questões muito mais prementes, tais como o alcoolismo, as drogas, a falta de segurança nas escolas, não estão recebendo a devida atenção. Desencastelem-se senhores políticos, venham ver a vida real aqui embaixo e percebam que ela anda num compasso diferente daquele que vocês imaginam.

segunda-feira, 8 de março de 2010

Poema de Marco Vasques e desenho de Fernando Lindote


(fá)


braços e pernas de concreto
se fundem ao meu corpo
eu não sou mais eu

sou aquela pedra
que dorme

em forma de corpo
mas que ainda se sonha
e se solidifica

até a ternura morder-se

Poema de Marco Vasques e desenho de Fernando Lindote


(mi)


minha fronte dorme em frontispícios
todas as notas nas águas
sempre surdas

a vomitar o soluço mudo
dos meus eternos afogados

eu mesmo me mordo

sábado, 6 de março de 2010

O Reparador - Rubens da Cunha

O reparador

Amor novo. Mentiu-se reparador de tudo. Ela, claro, aproveitou: lâmpadas, chuveiros, pias, bacios de banheiro, portas, janelas e paredes. Ele, no começo, não reclamava, pois ela sempre o amaciava antes com um amor de coxas, uma boca mais atenta, um gemido mais dentro. Reparou a casa da sogra, da madrasta, da tia com parkinson, da vizinha virgem e de quem mais ela pediu. Um dia disse que estava cansado, que não queria atravessar a cidade para reparar a casa da prima em terceiro grau. Ela, claro, amuou. Salgou demais a comida, manchou sua melhor camisa, negou-lhe os gemidos de que tanto gostava. Por fim, ele atravessou a cidade para reparar as coisas da prima. Não voltou mais. Eulália, a prima, tinha artimanhas bem mais intensas e não lhe cobrava pelos serviços. Dizia que homem seu não iria fazer coisas inúteis. Até onde se sabe continuam se amando sob as goteiras.

sexta-feira, 5 de março de 2010

foto e poema de Antonio Carlos Floriano


nesse inverno de dois mil e nove
o sol nos trouxe
um calor de primavera
e Izi cortou o cabelo

dessa luz de seus olhos
eu vi um oceano de vida
ela é mesmo assim

minha filha
com seu novo rosto
uma nova fotografia revelada
neste poema de memória

quinta-feira, 4 de março de 2010

Poema de Marco Vasques e desenho de Fernando Lindote


(ré)

sou pedra poste ou mesmo terra
carne petrificada em teu prédio
minha fome não tem predileção

a comida

pouco me sustenta

pois o horror das horas me basta

Poema de Marco Vasques e desenho de Fernando Lindote


(dó)

sou aquele que nasceu dentro de águas turvas
que guarda todas as sombras dos mortos
e que ouve o silêncio de cada afogado

por isso

pouco me banho

pois a placenta ainda me é mórbida

quarta-feira, 3 de março de 2010

Uma crônica de Marco Vasques



DA UNIÃO

Andréa encontra a amiga Márcia, que caminhava em sentido contrário, e param para trocar algumas palavras:
- Como vai o Ronaldo?
- ...
- Vamos, Andréa, como está o Ronaldo?
- ...
- Tudo bem! Não quer falar, certo? Eu soube de tudo. Como ele teve coragem? Depois de tanto tempo. Os filhos já formados e casados. Ela era bonita, pelo menos? Logo você! A nossa princesa do colegial, a nossa garota do bairro! Como ele pode fazer isso?
- ...
- Deve ser triste uma separação. E os filhos? Quem fica com a Júlia? E o Marcelo? Coitado do Marcelo. Um doce de menino. O que vão dizer na escola? Você também... Quem diria! Há quanto tempo vocês estavam casados?
- Estamos casados faz 35 anos!
- Então quer dizer que você não deixou aquele malandro? Eu não poderia conviver com a ideia da traição. Se Carlos me trair, vai parar no olho da rua, pode acreditar. E tem mais: eu mato aquele desgraçado. Se um dia eu souber! Ele que não se atreva. Agora o Ronaldo! Quem diria. Um homem tão sério, bom profissional e excelente pai...
- Há de se pensar muito antes de deixar um homem como o Ronaldo.
- O quê? Eu não estou acreditando no que ouço. A liberação das mulheres nos possibilita viver sozinhas, sentar numa mesa de bar e beber o quanto quisermos, escolher os homens com quem queremos transar... Nossa... Muita coisa mudou. Somos mulheres livres!
- Márcia, querida, Ronaldo é um engenheiro bem-sucedido. Tem um padrão de vida superior ao de praticamente 95% dos homens de nosso país.
- Eu não acredito! Você tem sua carreira!
- Márcia, aprenda uma coisa... Eu tenho 55 anos. Ele, 59. Traiu-me com uma pistoleira. Estamos na fase em que a carne arrefece. Tenho pouco mais de 25 anos de vida. Você acha mesmo que vou deixar o BC para uma putinha qualquer?
- Ele ainda é Bom de Cama?
- Não! Quer dizer... BC não é Bom de Cama!
- Então... O que vem a ser BC?
- Banco Central, sua tola. O meu ganho é periférico, sou um cofre estadual. - Ele é o da União, entendeu?
- União... Ah! Da União... Entendi!

Uma crônica de Rubens da Cunha

Publicada no jornal A Notícia em 03/02/2010
GESTOS-METADE

O olhar dura dez segundos. Ao redor a vida estável, encaminhada noutros relacionamentos. A nós dois só coube a amizade de longos anos. Aos poucos fui percebendo nela um comportamento que misturava medo e distância, havia ali qualquer coisa que alterava a funcionalidade das nossas relações. Minha mulher, o marido dela, outros casais que formavam nosso círculo de amigos, eram peças nesse xadrez que ela estava insistindo em jogar comigo. Eu deveria jogar? Eu queria jogar? O estranhamento entre nós dois se tornou palpável. Ela movimenta as mãos, o pescoço, vejo seu sorriso e percebo nisso tudo um traço de nervosismo, como se fosse uma represa prestes a estourar. E ela olha-me, tenta manter o olhar, mas é sempre interrompida, ora por alguém, ora por si mesma. Estamos numa fronteira. Talvez não tenhamos coragem ou paixão suficiente para atravessá-la, ficamos então nas pequenas provocações, nos flertes invisíveis para os outros, ficamos construindo um diálogo de dúvidas, em que as palavras certas não cabem. Falar diretamente é matar o jogo, é atravessar de remorsos e culpas não apenas nós dois, mas os outros a quem amamos. Devo confessar que o jogo é viciante. No começo eu apenas respondia seus acenos, agora parece que estou eu acenando também, pedindo também um contato silencioso, disfarçado, feito apenas pela metade do gesto, pela metade do olhar, e retribuo em metades também. Se ela fala frases soltas, sabendo que eu adivinharei um sentido implícito, retribuo com palavras mais soltas ainda, e a vejo catando os sentidos pelo ar, e a vejo remontando minha pequena provocação, meu breve lance nesse nosso jogo. Talvez o que nos mantenha seja a sensação de medo. Temos muito a perder caso sejamos descobertos. O pior é que não ganhamos nada em troca, pois não se trata do amor clássico, da paixão fulminante, mas de uma relação-névoa, dessas que o não concretizar-se é a alma, o cerne. Dar um passo além seria lançar-se num abismo inócuo, oco de sentido, pelo menos para mim. Dela recebo apenas breves sinais, mas pouca certeza de suas ações, tudo pode ser apenas criação da minha cabeça. Onde vejo provocação, talvez seja constrangimento, onde vejo jogo, talvez seja apenas defesa ou timidez. Já nem sei mais o que pensar. Quando nos encontramos a névoa assume meu olhar, e eu fico apenas articulando disfarces. Ou seria essa minha elucubração apenas covardia? E se ela solarizasse a névoa, colocasse sobre mim luz e calor e me impusesse uma atitude mais aguda, menos curva? O que eu faria? Como reagiria diante de um encaminhamento natural desse nosso flerte, desses nossos olhares escusos? Por outro lado, e se eu acabasse o jogo? Um xeque-mate, um agora ou nunca, um dá ou desce? Não tenho a resposta, tenho apenas a sensação de que permaneceremos seguros atrás dos nossos tabuleiros, atrás de nossas aparências. Permaneceremos com nossos gestos-metade trazendo um pouco de aventura a nossas vidas. Nossas vidas-metade?

Poema de Cristiano Moreira

Fotografia de um homem

segurando o tambor.



Para Fernando Karl



Não sei não aquela fotografia

grafava em tanto pouca imagem

que não eu sabia o que procurar.


Procurava o que não havia lá

na imagem perdida em alto mar:

Tinta automarinha feita de corais.


Cor submersa na palavra que ele

repetia com um bater de tambor,

eis talvez o que havia na foto


da portada do sitio onde morava.

Assim da imagem eu procurava

a palavra que fundisse à gravura


um sopro verde de epoméias.

E a palavra veio na onda seguinte

e era a palavra alegria que girava


na água da imagem por trás

da imagem que foto- grafava

tambor firme na mão do poeta.

terça-feira, 2 de março de 2010