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domingo, 28 de outubro de 2012



Milton faz 70 anos. Por causa de Milton Nascimento eu sou uma outra pessoa. Quando eu tinha 16 anos eu descobri sua música. Depois disso. Bem depois disso, só sobrou o que sou. Fiz um show com ele em Itajaí. Em Itajaí, quando eu ouvia Milton, meus irmãos não entendiam. Coisa estranha. Aquilo ainda hoje está perdido dentro de mim. Se eu fechar os olhos até ilumina. canção do sal é uma dessas músicas que nos fazem mais parecidos com Deus. Se Deus existisse, teria a voz de Milton Nascimento.

sábado, 13 de outubro de 2012

quinta-feira, 4 de outubro de 2012

Traduzir-se


Uma parte de mim
é todo mundo:
outra parte é ninguém:
fundo sem fundo.

Uma parte de mim
é multidão:
outra parte estranheza
e solidão.

Uma parte de mim
pesa, pondera:
outra parte
delira.

Uma parte de mim
almoça e janta:
outra parte
se espanta.

Uma parte de mim
é permanente:
outra parte
se sabe de repente.

Uma parte de mim
é só vertigem:
outra parte,
linguagem.

Traduzir uma parte
na outra parte
— que é uma questão
de vida ou morte —
será arte?

De Na Vertigem do Dia (1975-1980)
Ferreira Gullar

segunda-feira, 1 de outubro de 2012

Bia Góes pra quem não conhece


VALENTINO, O INCLEMENTE

POR MARCO VASQUES

Publicada no jornal Notícias do Dia [01/10/2012]

Valentino é negro, carioca, torce para o Flamengo e tem no olhar aquele jeito malandro de sambista que sabe quando o pandeiro está para batucada e, sobretudo, quando o berimbau desafina. É preciso dizer, antes de tudo, que Valentino não é chegado em ostra, ou seja, ele não come mesmo o crustáceo que abunda pelas bandas do Ribeirão da Ilha e Santo Antônio de Lisboa. Mais sortudo que urubu em dia de festa no matadouro, costuma se dar bem com as mulheres. É alto, inteligente e bonito. Não poderia dar em outra coisa. É colocar a camisa do Flamengo, uma roupinha mais ou menos e sentar sob o sol de Santo Antônio de Lisboa, que é batata. Sempre aparece uma marisqueira com desejos suspeitos.
Suspeitíssimo foi o desinteresse dele por Maria dos Prazeres. Ele fotografava o horizonte quando ela apareceu, verticalíssima. Chegou exuberante, perfumada e pediu ao Valentino uma opinião sobre suas medidas: a cor do cabelo, enfim, queria era mostrar o quanto o desconcertado homem, que já olhava para os amigos com aquela cara de parafuso sem furadeira, estava perdendo. Resumindo, ela estava mostrando o material e disparou artilharia pesada sobre os olhos do negão. Meio sem jeito e sem saber o que dizer, voltou para mesa. Ao ser indagado sobre o motivo da moleza e do desinteresse por tanta fartura, ficou em silêncio.
Em seu íntimo, sabia que o berimbau desafinara. Quando instrumento de apenas duas notas desanda, a coisa sobe ou desce. O negócio agora era suportar as piadas dos amigos, que não perdoaram sua inclemência com a moça. Não satisfeita com a recusa (mulher quando coloca algo na cabeça, não tem jeito), comeu uma dúzia de ostras ao bafo, empinou os já agudos seios, balançou a cabeleira longa e negra, pegou uma garrafa de água, meio que avisando que sua especialidade era apagar incêndio, fogo, fogueira e toda sorte de centelha masculina e se dirigiu à mesa do inclemente Valentino.
Na primeira palavra já colocou todos no riso. Constantino, pode abrir a garrafa de água para mim? Olha a minha mão, está toda vermelha de tanto fazer força! Ele, vendo os amigos na maior gozação, tratou de abrir logo a água e mergulhar o olhar no decote da morena. Mais algumas palavras e, de súbito, a deusa dos prazeres se esvai com o vento Sul. Valentino (agora Constantino, o inclemente) largou logo a frase: meu santo não erra, mas me coloca em cada situação. A moça, ignorada mais uma vez, tratou logo de tirar o time de campo para jogar, titularíssima, em outra área. Com Valentino a bola bateu na trave; com o novo ataque, agarrou bola, trave e... chuva na rede.