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sexta-feira, 30 de julho de 2010

Anônimo, 1855

A pálpebra da banhista

encostou na pele do jarro,

porque fazia 40 graus à sombra do cipreste.

O real, o um do jarro,

é antecedido pela palavra jarro,

pelo que em Deus já é jarro,

mesmo sem jarro ser ainda.

Enquanto jarro-coisa, o jarro é irreal,

e a pálpebra da banhista

continua encostada na pele do jarro.

Agora, para que respire,

o inexistente jarro-coisa

converte-se no uso do jarro-palavra,

onde a banhista encosta a pálpebra.

Fernando José Karl

Honoré Daumier, 1862

A pitonisa pronuncia que está nevando no outro lado do nada

Sonho que sou uma tempestade perfeita lá no alto, mas, cá embaixo, próximo do cotidiano de um copo d'água e de uma folha que cai, sei que pareço mais a um pequeno sopro de chuva na vidraça e aprendi, nesses dias em que reverencio uma planta bravia que eu chamo de A., aprendi que de ar sou e me interessa muito o que a pitonisa pronuncia perto da veneziana, e ela pronuncia que está nevando do outro lado do nada, e também me diz que posso, ainda, espiar a restinga, sim, eu aqui nesse hotel Continental à beira do azul-mar-grosso-de-sal, em pleno século V dos leões transparentes, eu, durante a sagração dos oráculos, sou aquele que escuto atentamente a pitonisa consagrada, a mesma que pronuncia tudo e tudo sabe e devasta um quarteirão com apenas um suspiro seu ou um andar pelas tábuas do quarto. E, quando anoitece nas grutas, nos pulmões e nos sentimentos indecisos, a pitonisa se desnuda até da pele nua e, agora, a planta bravia que eu chamo A. tem uma cútis de Palmolive e sonha que a tempestade guarda entre as coxas uma claridade que não é desse mundo nem do outro. Ela enche os terraços de músicas, de buracos, de árias, de legiões: sua língua não passa de ar, mas um ar que deleita até mesmo aqueles que sorvem cianureto porque eles têm nostalgia das noites molhadas quando um corpo penetra num corpo alheio: água na areia. Mesmo se eu tivesse a alma rasa e inquieta, a pitonisa viria pra chorar uma estrela em meu tímpano, e também ela viria pra revelar que a única coisa que existe nesse mundo é uma sereia de cabelo azul, e esse cabelo azul traz à tona um saber vasto e profundo, para enfim aprendemos que só escapamos do pó se estivermos atentos à respiração da planta bravia A.: porque diante dela curva-se o que em nós apodrece e, se o desejo for mais fundo no escurento, e se nada temermos da tempestade, a tempestade estará em nós sonhando, e quanto mais no alto formos a chuva, mais acordamos do sonho e penetramos no hall do hotel Continental pra descansar naquela cama com aquela pitonisa agarrada à planta bravia A. que pronuncia o oráculo delicado: não somos nada — as palavras — mais fortes que cada um de nós!

Fernando José Karl

quinta-feira, 29 de julho de 2010

Seção POEMA SINGULAR

A seção POEMA SINGULAR começa com a poeta polonesa WISLAWA SZYMBORSKA. A seleção é de Dennis Radünz. Na próxima quinta-feira Raquel Stolf nos apresenta um poema de sua predileção. A ideia/provocação para que cada poeta escolha um poema que lhe seja significativo foi do singular Antonio Carlos Floriano. Então nasce a seção POEMA SINGULAR. Boa leitura!

Żona Lota

Obejrzałam się podobno z ciekawości.
Ale prócz ciekawości mogłam mieć inne powody.
Obejrzałam się z żalu za miską ze srebra.
Przez nieuwagę – wiążąc rzemyk u sandala.
Aby nie patrzeć dłużej w sprawiedliwy kark
męża mojego, Lota.
Z naglej pewności, ze gdybym umarla,
nawet by nie przystanąl.
Z nieposłuszeństwa pokornych.
W nadsłuchiwaniu pogoni.
Tknięta ciszą, w nadziei, że Bóg się roznmyślił.
Dwie nasze córki znikały już za szczytem wzgórza.
Poczułam w sobie starość. Oddalenie.
Czczość wędrowania. Senność.
Obejrzałam się kladąc na ziemi tobolek.
Obejrzałam się z trwogi, gdzie uczynić krok.
Na mojej ścieżce zjawiły się węże,
pająki, myszy polne i pisklęta sępów.
Już ani dobre, ani złe – po prostu wszystko, co żyło,
pełzało i skakalo w gromadnym popłochu.
Obejrzałam się z osamotnienia.
Ze wstydu, że uciekam chyłkiem.
Z chęci krzyku, powrotu.
Albo wtedy dopiero, gdy zerwał się wiatr,
rozwiązał włosy moje i suknię zadarł do góry.
Mialam wrażenie, że widzą to z murów Sodomy
i wybuchają gromkim śmiechem, raz i jeszcze raz.
Obejrzałam się z gniewu.
Aby nasycić się ich wielką zgubą.
Obejrzałam się z wszystkich podanych wyżej powodów.
Obejrzałam się bez własnej woli.
To tylko głaz obrócił się, warcząc pode mną.
To szczelina raptownie odciela mi drogę.
Na brzegu dreptał chomik wspięty na dwóch łapkach.
I wówczas to oboje spojrzeliśmy wstecz.
Nie, nie. Ja bieglam dalj,
czołgałam się i wzlatywalam,
dopóki ciemność nie runęła z nieba,
a z nią gorący żwir i martwe ptaki.
Z braku tchu wielokrotnie okręcałam się.
Kto mógłby to zobaczyć, myślałby, że tańczę.
Nie wykluczone, że oczy miałam otwarte.
Możliwe, że upadłam twarzą zwróconą ku miastu.


A mulher de Lot

Dizem que olhei para trás de curiosa.
Mas quem sabe eu também tinha outras razões.
Olhei para trás de pena pela salva de prata.
Por distração – amarrando a tira da sandália.
Para não olhar mais para a nuca virtuosa
do meu marido Lot.
Pela súbita certeza de que se eu morresse
ele nem diminuiria o passo.
Pela desobediência dos mansos.
Alerta à perseguição.
Afetada pelo silêncio, achando que talvez Deus mudou de ideia.
Nossas duas filhas já sumiam para lá do cimo do morro.
Sentia em mim a velhice. O afastamento.
A futilidade da errância. Sonolência.
Olhei para trás enquanto punha a trouxa no chão.
Olhei para trás de medo de dar mais um passo.
No meu caminho apareceram cobras,
aranhas, ratos silvestres e filhotes de abutres.
Já não eram bons nem maus – simplesmente tudo que vivia
serpenteava ou pulava em pânico consorte.
Olhei para trás por solidão.
De vergonha de fugir às escondidas.
De vontade de gritar, de voltar.
Ou então foi quando um vento bateu e
despenteou meu cabelo, levantou meu vestido.
Tive a impressão de que me viam dos muros de Sodoma
e caíam num riso retumbante, de novo e de novo.
Olhei para trás de raiva.
Para me saciar de sua enorme ruína.
Olhei para trás por todas as razões mencionadas acima.
Olhei para trás sem querer.
Foi somente uma rocha que virou, roncando sob meus pés.
Foi uma fenda que de súbito me podou o passo.
Na beirada uma ratazana trotava nas duas patas.
E foi então que ambas olhamos para trás.
Não, não. Eu continuei correndo,
me arrastava e me erguia,
enquanto a escuridão não caiu do céu
e com ela o cascalho ardente e as aves mortas.
Sem poder respirar, rodopiei várias vezes.
Se alguém me viu, por certo achou que eu dançava.
É concebível que meus olhos estivessem abertos.
É possível que ao cair meu rosto fitava a cidade.

(Tradução de Regina Przybycien)

quarta-feira, 28 de julho de 2010

Uma crônica de Rubens da Cunha

ÁGUA MINERAL

Eu e essa minha mania de ler rótulos! Eu vivia bem na ignorância sobre a água que bebia. Insípida, incolor e inodora. O que valia era os três adjetivos aprendidos na escola e que toda água deveria ter, ou ser (no nosso tempo já não há muita separação entre uma coisa e outra). Pois eu estava bebendo uma água mineral, na mais pura inocência, quando comecei a ler o rótulo da dita cuja que a classificava como: “água mineral fluoretada, litinada, radioativa e hipertermal na fonte”. Cadê os três adjetivos clássicos? Comecei a pensar nos adjetivos que acompanham essa água. Aliás, o que é água mineral? Segundo o Google, pai de toda a sabedoria, são as águas que conseguiram atingir profundidades maiores e que, por isto, se enriqueceram em sais, adquirindo novas características físico-químicas, como, por exemplo, pH mais alcalino e temperatura maior. Dizem também que são mais benéficas à saúde. Não vou discutir isso, mas e os outros quatro adjetivos? Sem consultar o pai da sabedoria, olho para eles e penso sobre cada um: o fluoretada deve vir de flúor, aquele elemento que protege os dentes, deve ser bom. O flúor sempre foi um dos mocinhos na tabela periódica. Litinada, provavelmente vem de lítio, outro elemento químico. Mas na hora penso no lítio, aquele remedinho indicado para maníaco-depressivos. O hipertermal, não tenho nem ideia, hiper pode ser lido como muito, grande, já o termal deve vir de termas, talvez seja algo a ver com a temperatura. Mas o que me chamou a atenção foi mesmo o adjetivo radioativa. Toda aquela coisa de Hiroshima, de Nagazaki, Chernobil, bomba atômica, guerra fria, acidentes nucleares, “O dia seguinte”: aquele impactante filme da década de 80 sobre guerra nuclear, o apocalipse. Eu não precisava saber que a água que bebo é radioativa. Deve ser algo controlado, até benéfico, mas as imagens que essa palavra me traz não tem nada de controladas e benéficas. Outra coisa que eu não entendi foi a instrução de não expor o produto à luz do sol. Acontece o quê? Isso o rótulo não explica, só ordena. Novamente fico imaginando as possibilidades: há uma combustão natural? O mocinho flúor vira um monstro quando atingido por raios solares? Olhando mais de perto no rótulo, descubro que a água também contém bicabornato, sódio, cálcio, potássio, cloreto, borato, magnésio, sulfato, fluoreto, nitrato, e estrôncio. Parece um exército de elementos químicos, vai que eles perdem as propriedades positivas à luz do sol. Bom, mas isso é bobagem claro. Vamos a ele, nosso pai que tudo sabe, tudo responde, para saber por que a água mineral não pode ser exposta ao sol: “O produto não pode estar exposto a luz solar direta ou fonte luminosa. A exposição do produto nessas condições pode acarretar a proliferação de algas alterando a cor da água que se torna amarelada ou esverdeada”. Algas? Mas algas não são aqueles bichos que ficam lá no fundo do mar? Melhor mesmo era ter ficado na ignorância...

terça-feira, 27 de julho de 2010

Revisitar Drummond

CASO DO VESTIDO

(Carlos Drummond de Andrade)


Nossa mãe, o que é aquele
vestido, naquele prego?

Minhas filhas, é o vestido
de uma dona que passou.

Passou quando, nossa mãe?
Era nossa conhecida?

Minhas filhas, boca presa.
Vosso pai evém chegando.

Nossa mãe, dizei depressa
que vestido é esse vestido.

Minhas filhas, mas o corpo
ficou frio e não o veste.

O vestido, nesse prego,
está morto, sossegado.

Nossa mãe, esse vestido
tanta renda, esse segredo!

Minhas filhas, escutai
palavras de minha boca.

Era uma dona de longe,
vosso pai enamorou-se.

E ficou tão transtornado,
se perdeu tanto de nós,

se afastou de toda vida,
se fechou, se devorou,

chorou no prato de carne,
bebeu, brigou, me bateu,

me deixou com vosso berço,
foi para a dona de longe,

mas a dona não ligou.
Em vão o pai implorou.

Dava apólice, fazenda,
dava carro, dava ouro,

beberia seu sobejo,
lamberia seu sapato.

Mas a dona nem ligou.
Então vosso pai, irado,

me pediu que lhe pedisse,
a essa dona tão perversa,

que tivesse paciência
e fosse dormir com ele...

Nossa mãe, por que chorais?
Nosso lenço vos cedemos.

Minhas filhas, vosso pai
chega ao pátio. Disfarcemos.

Nossa mãe, não escutamos
pisar de pé no degrau.

Minhas filhas, procurei
aquela mulher do demo.

E lhe roguei que aplacasse
de meu marido a vontade.

Eu não amo teu marido,
me falou ela se rindo.

Mas posso ficar com ele
se a senhora fizer gosto,

só pra lhe satisfazer,
não por mim, não quero homem.

Olhei para vosso pai,
os olhos dele pediam.

Olhei para a dona ruim,
os olhos dela gozavam.

O seu vestido de renda,
de colo mui devassado,

mais mostrava que escondia
as partes da pecadora.

Eu fiz meu pelo-sinal,
me curvei... disse que sim.

Sai pensando na morte,
mas a morte não chegava.

Andei pelas cinco ruas,
passei ponte, passei rio,

visitei vossos parentes,
não comia, não falava,

tive uma febre terçã,
mas a morte não chegava.

Fiquei fora de perigo,
fiquei de cabeça branca,

perdi meus dentes, meus olhos,
costurei, lavei, fiz doce,

minhas mãos se escalavraram,
meus anéis se dispersaram,

minha corrente de ouro
pagou conta de farmácia.

Vosso pais sumiu no mundo.
O mundo é grande e pequeno.

Um dia a dona soberba
me aparece já sem nada,

pobre, desfeita, mofina,
com sua trouxa na mão.

Dona, me disse baixinho,
não te dou vosso marido,

que não sei onde ele anda.
Mas te dou este vestido,

última peça de luxo
que guardei como lembrança

daquele dia de cobra,
da maior humilhação.

Eu não tinha amor por ele,
ao depois amor pegou.

Mas então ele enjoado
confessou que só gostava

de mim como eu era dantes.
Me joguei a suas plantas,

fiz toda sorte de dengo,
no chão rocei minha cara,

me puxei pelos cabelos,
me lancei na correnteza,

me cortei de canivete,
me atirei no sumidouro,

bebi fel e gasolina,
rezei duzentas novenas,

dona, de nada valeu:
vosso marido sumiu.

Aqui trago minha roupa
que recorda meu malfeito

de ofender dona casada
pisando no seu orgulho.

Recebei esse vestido
e me dai vosso perdão.

Olhei para a cara dela,
quede os olhos cintilantes?

quede graça de sorriso,
quede colo de camélia?

quede aquela cinturinha
delgada como jeitosa?

quede pezinhos calçados
com sandálias de cetim?

Olhei muito para ela,
boca não disse palavra.

Peguei o vestido, pus
nesse prego da parede.

Ela se foi de mansinho
e já na ponta da estrada

vosso pai aparecia.
Olhou pra mim em silêncio,

mal reparou no vestido
e disse apenas: — Mulher,

põe mais um prato na mesa.
Eu fiz, ele se assentou,

comeu, limpou o suor,
era sempre o mesmo homem,

comia meio de lado
e nem estava mais velho.

O barulho da comida
na boca, me acalentava,

me dava uma grande paz,
um sentimento esquisito

de que tudo foi um sonho,
vestido não há... nem nada.

Minhas filhas, eis que ouço
vosso pai subindo a escada.

segunda-feira, 26 de julho de 2010

Revisitar Drummond

A Morte do Leiteiro

(Carlos Drummond de Andrade)

A Cyro Novaes

Há pouco leite no país,
é preciso entregá-lo cedo.
Há muita sede no país,
é preciso entregá-lo cedo.
Há no país uma legenda,
que ladrão se mata com tiro.
Então o moço que é leiteiro
de madrugada com sua lata
sai correndo e distribuindo
leite bom para gente ruim.
Sua lata, suas garrafas
e seus sapatos de borracha
vão dizendo aos homens no sono
que alguém acordou cedinho
e veio do último subúrbio
trazer o leite mais frio
e mais alvo da melhor vaca
para todos criarem força
na luta brava da cidade.

Na mão a garrafa branca
não tem tempo de dizer
as coisas que lhe atribuo
nem o moço leiteiro ignaro,
morados na Rua Namur,
empregado no entreposto,
com 21 anos de idade,
sabe lá o que seja impulso
de humana compreensão.
E já que tem pressa, o corpo
vai deixando à beira das casas
uma apenas mercadoria.


E como a porta dos fundos
também escondesse gente
que aspira ao pouco de leite
disponível em nosso tempo,
avancemos por esse beco,
peguemos o corredor,
depositemos o litro...
Sem fazer barulho, é claro,
que barulho nada resolve.


Meu leiteiro tão sutil
de passo maneiro e leve,
antes desliza que marcha.
É certo que algum rumor
sempre se faz: passo errado,
vaso de flor no caminho,
cão latindo por princípio,
ou um gato quizilento.
E há sempre um senhor que acorda,
resmunga e torna a dormir.


Mas este acordou em pânico
(ladrões infestam o bairro),
não quis saber de mais nada.
O revólver da gaveta
saltou para sua mão.
Ladrão? se pega com tiro.
Os tiros na madrugada
liquidaram meu leiteiro.
Se era noivo, se era virgem,
se era alegre, se era bom,
não sei,
é tarde para saber.


Mas o homem perdeu o sono
de todo, e foge pra rua.
Meu Deus, matei um inocente.
Bala que mata gatuno
também serve pra furtar
a vida de nosso irmão.
Quem quiser que chame médico,
polícia não bota a mão
neste filho de meu pai.
Está salva a propriedade.
A noite geral prossegue,
a manhã custa a chegar,
mas o leiteiro
estatelado, ao relento,
perdeu a pressa que tinha.


Da garrafa estilhaçada,
no ladrilho já sereno
escorre uma coisa espessa
que é leite, sangue... não sei.
Por entre objetos confusos,
mal redimidos da noite,
duas cores se procuram,
suavemente se tocam,
amorosamente se enlaçam,
formando um terceiro tom
a que chamamos aurora.

Revisitar Drummond

A Máquina do mundo

(Carlos Drummond de Andrade)

E como eu palmilhasse vagamente
uma estrada de Minas, pedregosa,
e no fecho da tarde um sino rouco

se misturasse ao som de meus sapatos
que era pausado e seco; e aves pairassem
no céu de chumbo, e suas formas pretas

lentamente se fossem diluindo
na escuridão maior, vinda dos monte
se de meu próprio ser desenganado,

a máquina do mundo se entreabriu
para quem de a romper já se esquivava
e só de o ter pensado se carpia.

Abriu-se majestosa e circunspecta,
sem emitir um som que fosse impuro
nem um clarão maior que o tolerável


pelas pupilas gastas na inspeção
contínua e dolorosa do deserto,
e pela mente exausta de mentar

toda uma realidade que transcende
a própria imagem sua debuxadano
rosto do mistério, nos abismos.

Abriu-se em calma pura, e convidando
quantos sentidos e intuições restavam
a quem de os ter usado os já perdera

e nem desejaria recobrá-los,
se em vão e para sempre repetimosos
mesmos sem roteiro tristes périplos,

convidando-os a todos, em coorte,
a se aplicarem sobre o pasto inédito
da natureza mítica das coisas,

assim me disse, embora voz alguma
ou sopro ou eco ou simples percussão
atestasse que alguém, sobre a montanha,

a outro alguém, noturno e miserável,
em colóquio se estava dirigindo:
"O que procuraste em ti ou fora de

teu ser restrito e nunca se mostrou,
mesmo afetando dar-se ou se rendendo,
e a cada instante mais se retraindo,

olha, repara, ausculta: essa riqueza
sobrante a toda pérola, essa ciência
sublime e formidável, mas hermética,

essa total explicação da vida,
esse nexo primeiro e singular,
que nem concebes mais, pois tão esquivo

se revelou ante a pesquisa ardente
em que te consumiste... vê, contempla,
abre teu peito para agasalhá-lo.”

As mais soberbas pontes e edifícios,
o que nas oficinas se elabora,
o que pensado foi e logo atinge

distância superior ao pensamento,
os recursos da terra dominados,
e as paixões e os impulsos e os tormentos

e tudo que define o ser terrestre
ou se prolonga até nos animais
e chega às plantas para se embeber

no sono rancoroso dos minérios,
dá volta ao mundo e torna a se engolfar,
na estranha ordem geométrica de tudo,

e o absurdo original e seus enigmas,
suas verdades altas mais que todos
monumentos erguidos à verdade:

e a memória dos deuses, e o solene
sentimento de morte, que floresce
no caule da existência mais gloriosa,

tudo se apresentou nesse relance
e me chamou para seu reino augusto,
afinal submetido à vista humana.

Mas, como eu relutasse em responder
a tal apelo assim maravilhoso,
pois a fé se abrandara, e mesmo o anseio,

a esperança mais mínima — esse anelo
de ver desvanecida a treva espessa
que entre os raios do sol inda se filtra;

como defuntas crenças convocadas
presto e fremente não se produzissem
a de novo tingir a neutra face

que vou pelos caminhos demonstrando,
e como se outro ser, não mais aquele
habitante de mim há tantos anos,

passasse a comandar minha vontade
que, já de si volúvel, se cerrava
semelhante a essas flores reticentes

em si mesmas abertas e fechadas;
como se um dom tardio já não fora
apetecível, antes despiciendo,

baixei os olhos, incurioso, lasso,
desdenhando colher a coisa oferta
que se abria gratuita a meu engenho.

A treva mais estrita já pousara
sobre a estrada de Minas, pedregosa,
e a máquina do mundo, repelida,

se foi miudamente recompondo,
enquanto eu, avaliando o que perdera,
seguia vagaroso, de mãos pensas.

quinta-feira, 22 de julho de 2010

sábado, 17 de julho de 2010

Eduardo Galeano

A televisão/2

A televisão mostra o que acontece? Em nossos países, a televisão mostra o que ela quer que aconteça; e nada acontece se a televisão nao mostrar. A televisão, essa última luz que te salva da solidão e da noite, é a realidade. Porque a vida é um espetáculo: para os que se comportam bem, o sistema promete uma boa poltrona.
Eduardo Galeano in O livro dos abraços

quinta-feira, 15 de julho de 2010

László Moholy-Nagy, 1930



Absorta em si mesma, intacta planta viva n’água, Dora Maar percorre o sonho mau dos mortos e os puxa, com os cabelos, por cima de ondas grossas de sal. Uma deusa Dora Maar? Apaguem seu nome, a pele, a respiração e dela só pode restar um mantra consciente da realidade.

Se deseja grafismos de oleandros e sargaços, também deseja a primeira respiração da sereia branca e aguarda embaixo do guarda-sol o sopro do paraíso. Dora Maar duramente verte algumas palavras, para sempre tecendo o corpo com asas acima do areal, e dá rasantes pelas quinas dos terraços suspensos de Málaga. Dora Maar aceita que Picasso a proteja, na praia, com aquele guarda-sol.

Com o desconcerto habitual, Dora Maar vê sua cabeça ser arrancada dos ombros pelo vento e passar rente à torre da igreja de San Isidro, por baixo do céu a cabeça de Dora Maar e as nuvens entre as nuvens.

Aqui, na paia de Málaga, em estado de óbvia distração, Picasso contempla puramente os objetos: samambaias, conchas, coqueiros. Os dois entram no casarão plantado rente às águas. Ele passa a língua no salitre perfumado do pequeno bosque dela. Dora Maar abandona-se num dos recantos do hall desta edificação à beira-mar e sabe que, soprada além das vãs águas molhadas, há ondas, ondas, ondas.

Na cozinha ou deitada no quarto, recolhida de uma pronúncia de brisa inacabada, Dora Maar espia pela grande janela a luz que irradia sons de ouro – enquanto jasmineiros fervem no quintal – a luz adormece para sempre no ondular vazio de longas folhas das bananeiras.

No piso de uma das salas do casarão, caído um livro. À página 61, a linha de frase: “Encosto o raio no tímpano e o cântico opressivo se desvanece”.

Na piscina, na noite, ou agora singrando com a barca o rio azul de Sabalquivir, Dora Maar e Picasso já sabem que a pedra é uma fonte de água viva e que a siriringa é água tremente pela passagem dos peixes. A tempestade fincada no ponto de orvalho, não fere o orvalho. Nem chifres de rinoceronte machucam esse ponto aquático nem o mal fere a chama de Dora Maar sentada à escrivaninha. Preguiçosa e indiferente, ela cobre o rosto com véu de estrelas e, com ele, adoça a língua e o chá.


Fernando José Karl


Da série GUARDADO DE SALVADOS (1996) Dennis Radünz

BOLETIM DE OCORRÊNCIA

compareceu nesta delegacia de polícia,
a vítima,
relatando que ao cruzar o limbo
de linguagens, sentido motins-cela,
foi rendido por elementos em fúria,
anônimos, na mudez do ermo,
os quais o jogaram ao solo,
sob ameaça de revólveres de inventos
e, revirando-lhe sentidos,
furtaram:

nomes numes
germes de crimes
cais no caos
limo de leis
ruínas de rio
vaus

após, ordenaram
sussurros na antomia do urro,
enquanto fugiam em direção
à palavra fuga. era o relato.





ACTA DE LO OCURRIDO


compareció en esta delegación de policía,
la víctima,
relatando que al cruzar el limbo
de lenguajes, se le amotinaron los sentidos,
fue rendido por elementos furiosos,
anónimos, en el baldío,
los que lo echaron al piso,
bajo amenaza de revólveres falsos
y, trastocando los sentidos,
hurtaron:

nombres númenes
gérmenes de crímenes
muelles en el caos
limo de leyes
ruinas de río
vados

puesto que ordenaron
susurros en la anatomía del grito,
encuanto escapaban en dirección
a la palabra huida. era el relato.



(Tradução de Francisco Guzmán Burgos)



POLICE REPORT


the victim
appeared at this police precinct,
to report that upon crossing the limbo
of languages, from riots to cells,
he was overcome by anonymous elements in fury,
in the hermetic silence,
they threw him to the ground,
threatening with revolvers of inventions
and twisting his meanings,
stole:

numen names
crime germs
quays in chaos
legal slime
ruins of river
fords


then, they ordered
whispers in the anatomy of a howl,
while they escaped in direction
of the word escape.
end of statement.



(Tradução de Jeffrey Hoff)

quarta-feira, 14 de julho de 2010

Uma crônica de Rubens da Cunha

BRUNO E ELIZA
BRUNO E ELIZA
Bruno nasceu pobre. Vida complicada. A mãe tornou-se uma ausência. O futebol lhe deu fama, dinheiro, prestígio, festas, mulheres.Eliza nasceu pobre. Vida complicada. A família era uma inexistência. Tinha um corpo saudável e pronto para ser usado. As boas relações lhe colocaram dentro do festivo mundo dos jogadores de futebol.
Bruno nasceu pobre. Vida complicada. Sem pai. Mãe só de vez em quando. Catador de papel. Às vezes servente de pedreiro. Gasta o que ganha aumentando o barraco na invasão, mas também com festas e mulheres.Eliza nasceu pobre. Vida complicada. Abandonos desde sempre. Sempre teve um corpo saudável. Foi obrigada a usá-lo. As más relações a jogaram na esquina.
Eliza conheceu Bruno numa festa. Viu nele grandes possibilidades.
Eliza conheceu Bruno na rua. Ele a convidou para ir até a sua casa. Não tinha dinheiro para o motel. A princípio nada viu nele.
Eliza tratou bem Bruno. Ele voltou e voltou e voltou. Estavam quase íntimos. Ela estava feliz.
Eliza tratou bem Bruno. Ele voltou e voltou e voltou. Bruno disse que viver sozinho não era bom. Perguntou se ela não queria ficar por ali. Só teria que deixar a vida. Teria que catar papelão com ele. Estavam quase íntimos. Ela estava feliz.
Bruno bêbado. Eliza no período fértil.
Bruno bêbado. Eliza no período fértil.
Eliza e o filho. Futuro certo. Bruno não gostou nada da ideia. Teria que resolver essa situação de um jeito ou de outro.
Eliza e o filho. Futuro? Bruno não quis nem saber. Ela que fez, ela que criasse.
Eliza insiste. Ameaçou com polícia, justiça imprensa, escândalo. Usou todas as armas que tinha a disposição. Era o seu futuro em jogo.
Eliza insiste. Parte para cima de Bruno. Apanha. Se cala.
Eliza insiste mais. Bruno se desespera. Chama o amigo, o amigo do amigo, um conhecido do amigo do amigo para dar um jeito na chata. Bruno não quer mais incomodação.
Eliza desiste. Volta pra rua. Entrega o filho para doação. Depois de muito tempo, Bruno ainda se desespera com a gozação dos conhecidos. “Vou lá pegar a gostosa da tua mulher” ouviu de um. Teria que resolver essa situação.
Matam Eliza. O caso vai parar nos jornais, na TV. A mídia tem mais algumas semanas de alimento seguro. São horas debatendo, opinando, tornando a morte de Eliza um espetáculo. Show completo, com grandes reviravoltas, depoimentos surpreendentes. Bruno é preso. O espetáculo continua, ganha o noticiário do mundo. Todos comentam, alguns se compadecem de Eliza, de sua tentativa de futuro que não deu certo.
Bruno mata Eliza na calçada. O crime ganha uma nota tímida num canto de página do jornal da cidade e é anunciado na TV com um texto de duas linhas.
O filho de Eliza iria ficar com o avô, mas este está respondendo um processo por estupro, então o menino foi destinado à avó. Uma religiosa neurótica. Talvez sobreviva.
O filho de Eliza não é o que se pode chamar de criança linda. Ainda está no orfanato. Talvez sobreviva.

segunda-feira, 12 de julho de 2010

Henry Clarke, 1869


DURANTE A BARBA DA MANHÃ


A minha própria voz, sufocada de espuma durante a barba da manhã: a piscina vazia em que os ventos continuam a crescer.

Há muito que eu, Palma Bravo, morri de ascite (vulgo hidropsia, vulgo barriga d'água). Se, em boa justiça era essa a doença que me cabia por ter sido um monarca dos botecos onde eu era bebedor inveterado de gim.

Mesmo morto, ainda piso os azulejos rachados do casarão em que vivi durante trinta anos: morto e a lutar com a silhueta das coisas: mesmo assim, decido fazer a barba, para fingir que estou vivo.

Mesmo morto troco de camisa, conserto o ventilador, rego as plantas, gasto um vidro de perfume barato atrás da orelha e saio para o vasto quintal do casarão no momento em que o bolero na vitrola se cala, exausto de percorrer o sulcos negros do vinil

Como uma faca revira nas entranhas, eu não me acostumo com estar morto e aproveito para espiar o mar, o deserto de areia, enfim, a mata carrasquenta que se alonga por toda orla de vegetação rasteira, e pergunto a mim próprio porque aquele engenho que se chama respiração, que vencera a incerteza e os marouços, teve que cessar entre os corvos do mar, sim, pois foi entre os corvos do mar que eu morri de hidropsia há oitenta anos.

Mas isso não importa agora, posto que destampo a rolha da cachaça, e, embora um pouco carcomido pelo salitre e pela cinza das horas, me sento no velho sofá e a certeza do efêmero toca-me o coração.

Sorrio, como se a foice da morte de novo me fizesse cócegas. Tenho ciência que, apesar do frouxo alinhavo de minha prosa, há nela qualquer coisa com o sabor dos ventos e dos mares.

Mesmo morto e sentado nesse velho sofá do casarão, eu ainda sou esse voluptuoso espectador da mediocridade e analista das almas entorpecidas pelo hábito, das almas sem acesso a qualquer forma de renegeração moral.

Eu, Palma Bravo, morto há oitenta anos, não me queiram mal se retorno ao casarão vez em quando para colher das horas nuas uma última aragem de vida.


Fernando José Karl

domingo, 11 de julho de 2010

Thomas Smillie, 1906



K. escreve uma carta ao filósofo Hervum: “A Jarra de Heidegger (Das Ding/A Coisa) é uma imagem e imagem não tem enigma. Não custa nada frisar que a Coisa existe em sua exata natureza e persevera – atua – desprendida da figuração, e é provável que tenha dado origem ao deus babilônio Shamash; às cocléias, homares e conclins; à peônia que pende rente à neve; ao bate-bate de atabaque do batuque; ao acaso que impera. A Coisa – o Outro em exclusão interna. Escavar na ilusão este ponto (.) – quantum – em que a ilusão mesma se transcende, se arrasa, confessando que aí está apenas como significante: um exemplo – a palavra ‘Jarra’ –, de ‘A Jarra de Heidegger’, é significante enquanto essência daquilo que não contém nada. Outras jarras significantes: casca de laranja, de lagosta, de cebola, de crustáceo, de réptil, de sequóia, de tartaruga, de caracol, de ovo, de pão. A jarra de Heidegger – casca de vidro – é um objeto que circunda o Vazio e tenta aclarar a existência deste Vazio no centro do real. Quanto mais o objeto – a Jarra – é presentificado, mais ele nos abre esta dimensão na qual a ilusão se destroça e aspira a outra Coisa – menos a letra do que o espírito do escritor”. A Coisa é babel, bárbara, balbuciante. A Coisa existe mesmo quando não há. As palavras sopraram antes da Coisa e cada sopro delas é um ramo de sutis idílios. A palavra neve: sônica, nívea.


Fernando José Karl
Paul Megens



Ler a novela Senhora do gelo,
de Fernando JoséKarl.

http://www.germinaliteratura.com.br/booksonline_karl1.htm

"A moça do cabelo laranja", uma pintura de Fernando José Karl.



Coisa: aquilo que de algum modo é: assim coisa pode ser o Deus, uma linha de Paul Klee, um piano de Thelonius Monk, o areal, a xícara, o pão, o medo, o ventilador, a moeda persa, a clavícula, o aqueduto, a música de Mozart, o calabouço, o demônio, o vento, o abismo, a salgada branca espuma, o mantra, o astrolábio, o senhor Buddha.


Nenhuma coisa é quando falta a palavra. Somente quando se encontra a palavra para a coisa, a coisa é coisa. Não será essa coisa, o que e como ela é, algo em nome de seu nome?


Não se trata de agarrar com a palavra o que já está vigorando, nem de a palavra ser instrumento para a apresentação do que é dado. A palavra nasce no instante em que está sendo respirada: o uso é sua respiração.


A coisa: o Deus, uma linha de Paul Klee, um piano de Thelonius Monk, o areal, a xícara, o pão, o medo, o ventilador, a moeda persa, a clavícula, o aqueduto, a música de Mozart, o calabouço, o demônio, o vento, o abismo, a salgada branca espuma, o mantra, o astrolábio, o senhor Buddha: só começa a respirar quando usamos a palavra.


A palavra é que dá viço à coisa que, de algum modo, é. A pedra preciosa some quando a palavra falta. A palavra é um nada e esse nada é a voz do silêncio: a voz insonora. A voz do silêncio: aquilo que se ouve e não tem som. Aquilo que se ouve e não tem som, o que é? É nossa alma construída durante o tempo: e alma é dessa matéria indizível: diamante sonoro ou perfume de mulher.


Fernando José Karl


Photo: Delilah Montoya, 1997



A propósito de algumas caligrafias de Georgia O’Keeffe, tive agora um pressentimento do pó que sou. Eu quis me fazer monja no convento das Carmelitas e tive que aprender muito sobre jarros e hidráulica. Jarros valem o mesmo que nada e a retina onde se molham, menos ainda. Uma sereia, tornando a escutar aquelas ondas de grosso mar sob a embarcação, encontraria nela Ulisses amarrado ao mastro e remadores com cera nos ouvidos. O filósofo naturalista colheria da cena elementos para desvelar a loucura. Um que seja furioso bate a cabeça no muro e descobre que mais vale andar pela varanda do que fincar no peito um arpão, e observa que as linhas da chuva que se espalham contra a vidraça também escreveram, em grego aquático, pelas calhas, a ode que ninguém pode ler.Nesse ano entrei para o Clube dos Vencidos da Vida. Nos encontros dominicais é costume bater o martelo e vociferar: “Os olhos vão ver o paraíso, sim, mas serão olhos apodrecidos”.Uma noite, como saísse do conservatório – fui escutar um quinteto de Brahms – encontrei com a senhorita Chuva e fomos tomar chá. Imagine: chá na boca de chuva da senhorita Chuva. Era aquática figura de ninfa: os cabelos, os olhos de água. Já foi possuída nos terrenos baldios: os brutos todos penetraram as ancas da senhorita Chuva, chuparam laranjas em seus flancos, e um pouco daquele ar distante que tinha, perdeu-se. Ninguém mais viu sua inocência exilada.Ao chá conversamos sobre como assassinar aqueles que a violaram e, pouco depois, de Hidráulica aplicada, o que me assombrou bastante; o usual nos encontros era conversarmos sobre louças, abismos.Depois do encontro com Senhorita Chuva, uma lufada de vento me ergue do chão e sobrevôo os casarios com pomares e um coro de anjos, com mais de cem asas, grita que os imperadores antigos não encontraram o alimento que procuravam e, só por isso, morreram.Água da chuva nos olhos mortos, senhorita Chuva.


Fernando José Karl

TRADUÇÕES DE CIORAN

Eu e a vida somos duas linhas paralelas que se encontram na morte.
*
Todo homem é seu próprio mendigo.
*
A vida é etérea e fúnebre como o suicídio de uma mariposa.
*
A lucidez é uma vacina contra a vida.
*
O suicídio, como qualquer outro intento de salvação, é um ato religioso.
(Tradução de Marco Vasques do livro EL OCASO DEL PENSAMIENTO)

quinta-feira, 8 de julho de 2010

Dennis Radünz



Da série GUARDADO DE SALVADOS - poema EXUMAÇÃO (1991)








Uma crônica de Rubens da Cunha

AOS NOVOS CRONISTAS

Fui falar com alunos da Escola Municipal Pedro Ivo Campos, de Joinville, sobre a crônica. Eles estão participando das olimpíadas de português, cuja meta a ser cumprida é a escrita de uma crônica. O tema é o lugar onde vivem. Adolescentes no auge da agitação parecem não combinar muito com a necessidade de observação, de atenção a detalhes insignificantes que se exige de um cronista. Alguns me pediram quase que uma receita sobre como escrever crônicas. Percebi que receitas são falhas, mas alguns métodos podem ser válidos quando se quer enveredar pelo caminho da crônica, mesmo que seja para cumprir um dever como no caso dos alunos. O que, muitas vezes, não é diferente do caso de cronistas, pois temos um compromisso semanal que cumprimos, com vontade ou sem vontade, com assunto, ou sem assunto. Talvez o procedimento mais tradicional do cronista seja a observação da vida, do cotidiano mais ínfimo, menos espetacular e isso, sem dúvida, me parece o mais difícil, tanto para adolescentes, quanto para qualquer pessoa presa ao ritmo frenético a que estamos submetidos. Observar pequenezas é trabalho árduo e inútil, dois adjetivos que parecem não combinarem entre si, mas que formam a base tanto de um cronista, quanto de um poeta. Árduo, porque temos que ficar atentos, (ou desatentos, poeticamente falando) aos desvios da normalidade, às surpresas breves que nos acontecem, aos espantos, aos comportamentos diferentes, às belezas mínimas como um rastro de formigas na parede, uma folha quase caindo da samambaia, um pássaro que entra em casa de repente, uma criança que nos diz algo desconcertante, um andarilho, um artista de rua, uma mulher grávida, um homem sem as mãos etc. etc. Essa observação é inútil justamente porque não altera radicalmente a vida: não é um acidente, um suicídio, uma catástrofe, uma festa gigantesca, um casamento. É apenas a banalidade da vida diária se colocando na frente das pessoas. A maioria passa batida. Não dá nenhuma importância. O cronista é o sujeito que se detém. Que por profissão tem que arrancar beleza, delicadeza, espanto dos acontecimentos. Quanto mais insignificante o acontecimento, mais o cronista se esforça para torná-lo grande, para retirar dele uma reflexão qualquer que possa dividir com seu leitor. Sem dúvida, esse olhar sensível para o mundo ao seu redor deve ser o mais difícil para um adolescente que está tendo que escrever uma crônica. Parece que essa contemplação é algo adquirido com a idade, tem muito a ver com memória, com olhar a vida de um ponto de vista menos urgente, ou menos adolescente. Talvez o caminho para os novos cronistas que estão nascendo nas escolas seja justamente trazer para a crônica seu mundo urgente, rápido, internético, virtual. Estabelecer o contato com a vida por esse caminho e aí desenvolver seu texto. A crônica já não é somente aquele texto com linguagem simples que pretende ser uma conversa com o leitor, mas ainda se mantém firme no cotidiano, ainda é o meio mais eficaz de fotografar acontecimentos desimportantes e de trazê-los à luz e fazer com que o leitor perceba que geralmente é no ínfimo que habita a grandeza da vida.

segunda-feira, 5 de julho de 2010

Um poema de Antonio Carlos Floriano para PIVA


CONSELHEIRO MAFRA

Para Roberto Piva

rua sequestrada de olhares
mapas e plantas
originais de planos de fuga

o fio como pista
decifrável desta geografia
tecido insular provincial

a lua nasce no mercado
na boca descarnada
da cortesã sem face

nasce no branco dos olhos
do cão do inferno
IMAGEM: Lucian Freud

domingo, 4 de julho de 2010

Homenagem a Roberto Piva


Por Marco Vasques



Morre, em São Paulo, o poeta Roberto Piva

Roberto Piva é uma das figuras centrais da poesia brasileira. Em torno de 1960 um grupo de poetas amigos (Claudio Willer, Rodrigo de Haro, Bicelli, Sérgio Lima, De Franceschi e Roberto Piva) se reunia para ler poemas, ouvir música… Esse grupo provocou uma releitura do modernismo, a reafirmação do surrealismo e, sobretudo, introduziu a beat generation nas rodas literárias brasileiras. Roberto Piva, que faleceu ontem, sábado 03/07/2010, foi uma das figuras mais importante desse grupo. Ele acabara de ter sua obra completa reunida e publicada pela editora Globo em três volumes: Um estrangeiro na legião (2005), Mala na mão & asas pretas (2006) e Estranhos sinais de Saturno (2008). Após uma negociação iniciada pelo amigo e poeta Claudio Willer chego à residência de Roberto Piva, no bairro Santa Cecília, São Paulo, para entrevistá-lo. Já na entrada ele mostra um carimbo com o gavião de penacho. E diz: “O Oswald de Andrade, no Manifesto da poesia pau-brasil, disse que esquecemos o gavião de penacho, eu não esqueci, aqui está o meu”. Fala certeira! Mesmo lutando com o mal de Parkinson, Roberto Piva continuava um poeta agressivo ao bundismo que tomou conta da poesia brasileira. Ele não suportava os poetas preguiçosos. Nesta entrevista ele nos fala um pouco sobre sua trajetória, sobre poesia, xamanismo, literatura, política. Resta-nos agora celebrar o poeta lendo, discutindo e escrevendo sobre seu trabalho. Wilson Bueno, Saramago e, agora, Roberto Piva. O mundo fica menos. Reproduzo o meu último encontro com Piva. Foi numa manhã agradável de novembro de 2008 nossa última troca. O diálogo abaixo foi publicado na revista Agulha e no caderno IDEIAS do jornal A Notícia.


Fale um pouco sobre o grupo dos anos 1960. Você, Rodrigo de Haro, Claudio Willer...

Nós éramos um grupo de amigos. O nosso grande trunfo era a leitura. Líamos muito. O Oswald de Andrade, no “Manifesto da poesia pau-brasil”, diz que esquecemos o gavião de penachos. Eu não esqueci, fiz um carimbo em que coloco o gavião de penacho. Eu não esqueci. Voltando ao encontro que tivemos naquela década, posso dizer que foi um encontro muito proveitoso, muito rico em farras, em leituras, em trocas de experiências, de bibliografias, de discos. Eu, por exemplo, ouvia muito jazz, ainda ouço. Então trocávamos todo tipo de informação. Aproveitávamos o saber do outro. Esse é um grupo, podemos dizer assim, que enriqueceu pela troca, pelo apreço ao outro e pelo apreço exacerbado à vida. Vivíamos intensamente. Foi uma belíssima junção de pessoas de espírito de escrever diferente, mas que congregaram a partilha da poesia.

Vocês fizeram uma releitura do modernismo brasileiro e trouxeram o surrealismo para o centro da discussão poética.

O surrealismo está presente em toda a minha obra. A linha mestra da minha poesia passa pelo surrealismo, contudo não podemos esquecer do futurismo italiano e do futurismo português, sobretudo Fernando Pessoa, Sá-Carneiro e Almada Negreiros.

Seus dois primeiros livros, Paranóia e Piazza, já apontam um poeta maduro. O mesmo ocorre com o Willer de Jardins das provocações e do Rodrigo de Haro de Amigo da labareda. Contudo, nos últimos anos é que vocês vêm recebendo uma melhor acolhida da crítica e das gerações de novos poetas.

Octavio Paz já disse que a poesia é uma arte minoritária. E nesse sentido a força do que escrevíamos atingiu porque tem dinamite própria. Nunca fizemos concessões. Tínhamos como referência, além dos surrealistas que você já apontou, a Beat Generation que nos marcou profundamente tanto pela poesia ácida e voraz quanto pela atitude em relação ao mundo da experiência.


No livro Ciclone você diz que “os poetas têm que deixar de ser brocha para ser bruxos”. Qual o real significado desse trocadilho?

É a minha rechaça ao racionalismo absoluto que se instituiu na poesia brasileira. Tem poeta que disputa o título de mais racional, pode? Veja o que o Pasolini nos diz sobre isso:

Grido, nel cielo dove dondolò la mia culla:
Nessuno dei problemi degli anni cinquanta
Mi importa più! Tradisco i lividi
Moralisti che hanno fatto del socialismo um cattolicesimo
Ugualmente noioso! Ah, ah, la provincia impegnata!
Ah, ah, la gara a essere uno più poeta razionale dell’altro!
La droga, per professori poveri, dell’ideologia!
Abiuro dal Ridicolo decennio.

Ou seja:

Grito no céu onde embalou o meu berço:
Nenhum dos problemas dos anos cinqüenta
Me importa mais! Traio os lívidos
Moralistas que fizeram do socialismo um catolicismo
Igualmente tedioso! Ah, ah, a província empenhada!
Ah, ah, a competição para ser o poeta mais racional que o outro!
A droga para os professores pobres da ideologia!
Renego o ridículo do decênio.

Sou aquele que bebeu em Rimbaud, Artaud e Blake. Quero dizer que bebi do delírio do verbo de cada um para estremecer a estrutura da minha própria poesia. George Bataille também alerta sobre o lugar de onde vem a verdadeira poesia: “a verdadeira poesia se encontra fora das leis”.

Podemos voltar à questão dos poetas bruxos X brochas?

Nós, por exemplo, somos bruxos e não brochas. Você falava há pouco sobre o nosso grupo. Aquele foi um momento muito forte da poesia e da literatura. Os bruxos estão soltos aí.

Embora o misticismo esteja presente em outros livros seus, é em Ciclone que o Piva místico mais se revela.

Ciclone é um livro que me impressionou porque, depois que eu publiquei, começaram a existir ciclones em algumas partes do Brasil. Parece que a poesia se fez profecia e saiu do livro para devastar a terra. Essa desordem chegou mesmo a me apavorar. Mas você tem razão, porque nesse livro está o pacto da minha experiência com o xamanismo. Eu estudei muito o xamanismo e vivenciei experiências xamânicas. Eu fiz parte de grupo junguianos. Eles, inspirados em mim, organizaram a Fundação Paz Geia, da Carminha Levy. Fiz parte de outros grupos também e ainda fundei um grupo só para mim. No meu último livro Estranhos Sinais de Saturno, eu começo com a seguinte epígrafe: “Xamãs de todo o mundo, espalhem-se”.

Como você definiria um bom poeta? O que um bom poema tem que ter?


Um bom poema só vai ser bom se aliar emoção à poesia vivida. O Vinícius de Moraes já dizia que “nenhuma concessão à poesia não vivida”. “A poesia é subversão do corpo”, diz Octavio Paz. Então um bom poeta é aquele que ilumina a vida via verbo.

Sua poética reflete essa visão da poesia vivida. Há de algum modo a busca por trazer para o poema a primeira pessoa singular, o “eu” poético.

A poesia na primeira pessoa do singular é uma influência do Whitman, do surrealismo e da Beat Generation. Eu tinha uma tia que morava nos Estados Unidos. Então eu mandava uma carta com o nome de alguns livros e ela me enviava. Eu pedia também discos do Miles Davis, do Coltrane. O surrealismo é de uma importância fundamental para o nosso grupo. O surrealismo é tão importante para história da literatura que o Octavio Paz, antes de ganhar o Nobel, declarou na ONU que o século não será conhecido como o século do marxismo, mas como o do surrealismo.

Graciliano Ramos disse que todo escritor acaba escrevendo sobre si mesmo. É assim com você?

Claro, essa era a visão do Nietzsche também. Todo mundo no fundo está escrevendo sua própria biografia. Vai e volta e ele acaba caindo no imenso poço que é a existência. Minha obra é, sim, o meu espelho.

Por que tanta bronca com o socialismo?

Sou monarquista desde 1958.

Mas o que o incomoda tanto no socialismo?

Incomoda o fato de ele ter se transformado num catolicismo tedioso, repetindo Pasolini. Como isso não me atrai nem um pouco, eu pesquiso outras realidades políticas.

O que o atrai tanto no monarquismo?

Na monarquia me atrai a extrema hierarquização da cúpula, porque ela permite a maior anarquia das bases.

A editora Globo acaba de reunir a sua obra completa em três volumes. Como você recebe a acolhida?

Eu mereço. Afinal de contas estou na batalha, na guerrilha poética, faz muitas décadas. Eu recebo a acolhida como uma consequência natural do meu trabalho.

Você ainda se comunica com muitos poetas daquele grupo de 1960?


Eu falo muito com o Claudio Willer e com o conde de Haro, por telefone. Temos muitas lembranças daquela época. Eu conheci pessoas brilhantes naquele período, pessoas excepcionais. Uns morreram. Outros desapareceram. Nós estamos firmes.

Se você tivesse que escrever uma carta a um jovem poeta à maneira de Rilke, o que diria a ele?

Tenho muita coisa a dizer, seria necessário muito tempo. Simplificando: leiam Blake, Álvaro de Campos, os futuristas, os surrealistas, Artaud bastante Artaud. Porque Artaud seguiu à risca a proposição do Rimbaud de que um poeta se torna vidente. Ele foi um verdadeiro bruxo, um vidente. Ele fez um longo e sistemático desregramento de todos os sentidos.

Quais os novos poetas que você lê e recomenda?

A poesia brasileira é muito promissora e múltipla. Posso falar apenas por aqueles que acompanho. Sérgio Cohn, Danilo Monteiro...

Você gostaria de dizer algo mais?

Quero agradecer a tua vinda aqui a São Paulo. O teu Estado vive uns momentos difíceis, catastróficos [enchente de novembro de 2008, em Santa Catarina]. Espero que o povo catarinense possa se reerguer e que depois mergulhe na poesia. Estou grato pelo teu interesse pela minha poesia. Espero que possamos nos encontrar outras vezes. Eu estou fora de forma, pois o mal de Parkinson me afeta mais em alguns dias do que em outros.
POEMAS DE ROBERTO PIVA

I

As mãos invisíveis dedilham a canção sinistra
vibrando as fibras nervosas da medula
Os dentes mastigam o sem fim de peripaques nostálgicos
enquanto o mistério corre pela rua em chamas.
Aonde andará o poeta de pijama que escorrega e cai,
enquanto distraído sonha um mundo de estrelas?
Já não há céu, nem solo firme. Silencie-me! Silencie-me!
Sigo as labaredas memoráveis dos dias de luto e melancolia.
Quero a forma perfeita, o beijo, o cheiro do Apolo ruivo.
Sei da impossibilidade das horas, da complementaridade ilusória.
Olho o monte de esterco apodrecendo na vidraça entreaberta.
Janelas, penhascos, arranhásseis e corpos voadores de pedra.
Se a noite persegue minha vida, deposito monstros no aquário.
Os peixes caminham no asfalto e as mulheres usam gravatas.
Minha alma, meu desejo, minha imobilidade. Apenas eu!
Danço a quimera dos solitários e o presságio dos carecas.
Um poema, um segmento refratário. Não sei de mim.
As idéias são espasmos, e as palavras, coisa inútil.
Seria senil e insano se acreditasse no amanhã.
Vivo esse segundo que se arrasta, devorando-me.
II
O estrangeiro da legião de insetos
arrancou o grito de cólera e loucura
da boca arreganhada, não percebida,
do paranóico que mora nos ciclones
A bailarina, uma mulher pálida,
engole o último pedaço de vidro
arrebentado com a explosão atômica
de meus sonhos avulsos transtornados.
O erotismo atrapalhado do anão
que não mais se agüenta neste intervalo
de memórias e areias, noite e chamas.
Diminuindo cada vez mais, bactéria.
O uivo caminhando sobre a ponte imóvel.
O castelo e o muro dedilhados no quadro azul.
Sinto a introdução e o posfácio deste rio
que golpeia as paredes com mãos nuas.
O mínimo. O minúsculo. O quase nada.
Dedilhai as últimas notas vagas
que recordam a imagem deformada
do psicótico que caminha sobre o fio dental.