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quarta-feira, 30 de dezembro de 2009

Uma crônica de Marco Vasques


Infelizes anos novos

Umas mortes marcaram e marcarão os séculos XX e XXI: o filósofo Maurice Blanchot (2003), o filósofo Jacques Derrida (2007), a dançarina e coreógrafa Pina Bausch (2009), o ator Paulo Autran (2007), o teatrólogo Algusto Boal (2009), os cineastas Ingmar Bergman (2007) e Michelangelo Antonioni (2007), o grande poeta paraense Max Martins (2009), o poeta e pintor português Mario Cesariny (2006), o poeta Antonio Gancho (2005), o antropólogo Claude Lévi-Strauss (2009), ah! A perda do grande Patativa do Assaré (2009), e, é claro, a perda de uma senhorinha que morava aqui no Córrego Grande. Ela morava numa casa branca com um pé de roseira vermelha na janela. Tinha mais de 80 anos. A única coisa que sei é que nunca casou. A morte dela foi tão silenciosa quanto sua vida. Fiquei sabendo de sua partida semanas depois. Nunca falei com ela. Não precisava, nossos olhos eram da mesma geração. E tem um tio meu de nome Joaquim que surpreendeu ao se suicidar aos 82 anos agora em 2009. Se foram, também, nesses últimos 10 anos, o encenador Jerzy Grotowski (1999) e o poeta-arquiteto João Cabral de Melo Neto (1999). Pelas mortes que citei já dá para perceber que o século XXI é um século de diluição. Tudo o que foi pensado em arte na primeira década do século XX está, de algum modo, expresso nas obras e nas vidas dos mortos-vivos citados. As idéias originais contidas nas manifestações dos distantes primeiros anos do século XX foram tão marcantes que influenciaram toda essa gente graúda, cada um a seu modo. Talvez sejam necessários mais 300 anos para que tenhamos um novo Renascimento. A música, a literatura, a psicanálise e as artes plásticas tiveram suas maiores reflexões e indagações justamente naqueles primeiros anos. Mesmo toda a discussão da arte contemporânea não seria possível sem aqueles primeiros pensamentos primordiais. Aqui, em nosso estado alterado de consciência, na Satã Catarina, se fez mais nas artes nos últimos 10 anos que nas quatro primeiras décadas do século XX. Temos o grupo Cena 11 na dança; Fernando Lindote nas artes plásticas junto a uma gurizada que vem aí com tudo. O teatro, de longe, é a arte que mais ganhou expressão: André Carreira, Morgana Raitz (uma grande surpresa), Jefferson Bittencourt (que tem cometido mais acertos que erros), o Pedro Bennaton, a trupe do Teatro Sim! Por Que Não!!?, as meninas da Traço (outra adorável surpresa)... Na literatura temos as poéticas do Dennis Radünz, Fernando Karl, Rubens da Cunha e da Ramone Abreu Amado. A prosa do Péricles Prade. O experimento essencial da Raquel Stolf e uma safra de jovens poetas que marcarão as letras de Satã C. Ah! E sobre o futuro? E sobre o século XXI? Aposto que o século XXI continuará sendo o século da tecnologia, da medicina, da corrupção, da destruição do planeta, da individualidade e de assassinatos grotescos que não causam mais reflexão, apenas notícias que serão substituídas por outras com os mesmos requintes de crueldade, enfim, será conhecido como o século em que a humanidade não esteve no mundo.
Quadro de Kasimir Malevich

Matisse (1869-1954)




Tudo isso acontece em Villa da Concha – esse lugar no mundo perto do Atlântico. K. recolhe das linhas de água e sal o marulho e o amargo da espuma que espicaçam o interior de sua pálpebra, porque sabe que falta dizer a língua antiga com o sopro natural dos ventos. Começa a considerar, como parte do ritual, esse tempo articulado com molas de relojoaria --- a hora --- e bebe no fólio o ditame bíblico: “Pois serão todos salgados com fogo. O sal é bom. Mas se o sal se tornar insípido, como salgá-lo? Tende sal em vós mesmos e vivei em paz uns com os outros”. Águas do céu deixam mais pesadas as oliveiras à sombra de oliveiras. No casarão, exposto às chuvas, K. aprende que a língua das nuvens é a dos ventos e não a língua curial da fealdade. As nuvens arrastam sombras por cima dos vastos telhados do casarão. “Passar”, diz K. “da palavra tosca à palavra clara é sereno purificar-se com água de Alladin, que não deixa no lençol mais do que esta marca simples”. No casarão colonial a voz do orago K.: aragem nas trepadeiras da cisterna.



Fernando José Karl,

um sopro na canoa



Thomas Smillie, 1906



K. escreve uma carta ao filósofo Hervum: “A Jarra de Heidegger (Das Ding/A Coisa) é uma imagem e imagem não tem enigma. Não custa nada frisar que a Coisa existe em sua exata natureza e persevera – atua – desprendida da figuração, e é provável que tenha dado origem ao deus babilônio Shamash; às cocléias, homares e conclins; à peônia que pende rente à neve; ao bate-bate de atabaque do batuque; ao acaso que impera. A Coisa – o Outro em exclusão interna. Escavar na ilusão este ponto (.) – quantum – em que a ilusão mesma se transcende, se arrasa, confessando que aí está apenas como significante: um exemplo – a palavra ‘Jarra’ –, de ‘A Jarra de Heidegger’, é significante enquanto essência daquilo que não contém nada. Outras jarras significantes: casca de laranja, de lagosta, de cebola, de crustáceo, de réptil, de sequóia, de tartaruga, de caracol, de ovo, de pão. A jarra de Heidegger – casca de vidro – é um objeto que circunda o Vazio e tenta aclarar a existência deste Vazio no centro do real. Quanto mais o objeto – a Jarra – é presentificado, mais ele nos abre esta dimensão na qual a ilusão se destroça e aspira a outra Coisa – menos a letra do que o espírito do escritor”. A Coisa é babel, bárbara, balbuciante. A Coisa existe mesmo quando não há. As palavras sopraram antes da Coisa e cada sopro delas é um ramo de sutis idílios. A palavra neve: sônica, nívea.



Fernando José Karl,
não mais que o vento na cortina

Uma crônica de Rubens da Cunha

Crônica publicada no jornal A Notícia no dia 30/12/2009

O RISO DAS GAIVOTAS


O sol esmaga a manhã, mas custa a vencer a camada de névoa sobre o mar. Duas gaivotas descansam na praia do Gravatá. Silenciosas, brincam com as ondas, beliscam pequenos peixes, voam e pousam pacíficas de si, nada mais fazem senão serem gaivotas. Olhando-as à distância, parece tão fácil também ser gaivota, também nada mais fazer senão cumprir o instinto. Lá no alto, urubus brincam de serem nuvens, doces nuvens negras. Nas suas costas de homem nenhuma asa, nenhum voo efetivo se molda. O mar gelado lhe aflige as canelas. Tenta um mergulho, tenta outro, sente frio num dia muito quente. As gaivotas observam. Aquele olhar oblíquo, aquele bico empinado seria um riso de deboche? Andam uma em direção a outra, estariam comentando sobre esse espantalho humano que veio “banhar-se” em suas águas. Sai da água, dá pequenos pulos para secar-se. As gaivotas observam. Pequenos insetos rastejam assustados sobre as pedras. Parecem também feitos de riso. A névoa sobre o mar se dissipa aos poucos. Vê ao longe a outra praia cheia de gente, cheia de iguais. Deveria estar lá, confraternizando, conhecendo gente nova, vendo e sendo visto, e não aqui, sozinho, sendo observado e sofrendo o deboche de insetos e de duas gaivotas. Assusta-se, num canto da praia um lagarto. Chegar de manhã numa praia deserta parece chamar muita atenção dos habitantes do lugar. Estrangeiro aqui, como nunca foi em outro lugar. Incapaz de comunicar-se. Mas sabe também que naquela praia badalada ele também é um estrangeiro, ele também é uma excrescência do lugar. Seja entre os bichos da praia do Gravatá, seja entre os humanos da outra praia, sempre será o de fora, não o que visita, mas aquele que invade, que transtorna o cotidiano, que desmantela o ciclo natural das coisas. A manhã avança. A névoa não existe mais. Pelo menos aquela que estava sobre o mar. As gaivotas continuam gaivotas. O lagarto desapareceu entre as rochas. Encontra numa pedra marcas com cicatrizes de tempos remotos. Homens sentaram ali e amolaram suas ferramentas. Talvez fossem homens mais próximos das gaivotas, sem datas, sem horários e obrigações, que não fossem exatamente as obrigações da gaivota: comer e reproduzir. Entre uma coisa e outra, sobreviver a uma intempérie, a um predador. Nada como agora em que quase tudo se resume a sobreviver ao olhar do outro. A cumprir o jogo da aparência. Está tão preso a isso, que o olhar dos bichos desse lugar parece que está cobrando justamente o que sempre lhe cobraram: parecer ter, parecer ser, parecer. Ilhado, pensa em ficar. Ri de sua ingenuidade. Na verdade, acompanha o riso das gaivotas e do lagarto que resolveu aparecer para se despedir. Os urubus continuam nas alturas. Ele retornará ao asfalto, à vida comezinha de sempre. O sol terminou o esmagamento da manhã. Mergulha de novo. Talvez pudesse ir a nado até o outro lado. Desiste. O Ano-novo se aproxima. Não seria bom para aparência um suicídio por essas horas. As gaivotas continuam rindo. Ele esboça um riso de retorno e retorna pelo mesmo caminho em que chegou à praia do Gravatá.

Rodney Smith, sem data



Em lugar de olhos, dois nuncas. A noite é palavra unida à noite essencial. Um diamante iça, em lugar da morte, e da cisterna sombria acordo alado: sem amada, capinzal, mãe, pedra ou labirinto. Em lugar de respirar, a música me vela. A eternidade é o silêncio das tigelas de arroz. Em lugar de estar vivo eu sou um canto, enlouquecido por discordar do roteiro. É desconcertante morrer sem acariciar o pomo dourado da própria voz, e a lenda da pele, que acende com o toque dos dedos. É sempre absurdo não ter direito a um nome, a um quintal com pequenos pássaros intensos. Os erros são todos meus. A luz é toda tua. Quando eu não existir mais, eu também virei recolher os domingos que não passei à beira-mar.


Fernando José Karl
,
não mais que um vento na cortina

Allan Sieber

Talk to Himself Show é o divertidíssimo blog de Allan Sieber, que entre outras coisas traz uma lista com dicas para um 2010 melhor...

DICAS PARA UM 2010 MELHOR:

- Distribuir armas e munição na saída dos estádios;

- Permitir o aborto até os 21 anos do feto;

- Imposto para quem avisa via twitter/facebook/facefuck que vai almoçar, jantar ou tomar um chopp na esquina;

- Castração obrigatória de quem é eleito;

- Criar bares com entrada exclusiva para fumantes;

- Azulejar as praias
- Prisão sem direito a fiança para quem falar "Noooossa, você NÃO provou o iogurte com sorvete???" e "Caaaara, você TEM que provar o cone de salmão!!!";

- Execução sumária do cidadão/cidadã que começar a tocar violão em festas;

- Extradição imediata de todas integrantes do brazilian lesbo folk;

- Impostos brutais para novos poetas.


quarta-feira, 23 de dezembro de 2009

Uma crônica de Marco Vasques



O Itinerário

O sol bateu em suas costas de forma quase delicada. Não fossem a mancha de algumas lágrimas e o vômito existente no colchão, diria que sua noite tinha sido perfeita. Ela mesma acordou com a sensação de que seu caminho seria diferente. Não pegaria o mesmo ônibus e nem olharia nos mesmos olhos de sempre. Fugiria da mesmice instalada em seu cotidiano. Almejou inventar um modo distinto de cortar o pão, porém, quando pegou a faca, uma força a arrebatou dizendo que isso também já era neurose. Ela não poderia mudar todas as coisas da sua vida em um único dia e, sobretudo, se censurou por querer iniciar uma nova vida logo com um simples corte de pão. Abandonou o intento e comeu seu pão como fazia há anos. Foi ao banheiro. Encontrou o bacio cheio de sangue, mas também não se importou. Na pia, o sangue também se espalhara. Tudo parecia dentro da normalidade. Quando colocou seu corpo na rua, uma nova realidade se apresentava. Todas as mulheres que via carregavam um bebê recém-nascido no colo. Quase chorou, pois seu desejo materno se aflorava ao ver uma multidão de crianças ao colo de suas mães. Estranhou apenas não ter encontrado nenhum homem durante todo o trajeto. Só mulheres. As crianças, mesmo sem a vitalidade da visão, a olhavam. Ela mesma quase enlouqueceu com aquela multidão de olhares a sua volta. Aos poucos os olhos foram ganhando outra forma. Uns eram facas que cravavam suas mãos, outros socos no estômago. Encontrou uma multidão de olhos com pedaços de pau na mão a correr em sua direção. Se não fugisse, certamente seria linchada. Na esquina em que se escondera, dois pares de olhos azuis traziam chicotes de fios elétricos. Foram duas fortes chibatadas e ela de pronto sumiu. Não sabia mais onde se esconder. Tentou chegar ao seu apartamento, no entanto, ao colocar os pés na escadaria, percebeu que muitos olhos, com agulhas espetadas na retina, estavam deitados por todos os degraus. Mesmo machucando os pés, subiu. Entrou direto no banheiro. Olhou para o feto que boiava na água do bacio e deu a descarga. Foi até a sala, pegou o telefone e ligou para a delegacia pedindo ajuda, pois seu filho recém-nascido estava se afogando no bacio do banheiro, e a água já estava atingindo seu pescoço.

Uma crônica de Rubens da Cunha

Crônica publicada no jornal A Notícia no dia 23/12/2009

BALANÇO NATALINO


No começo de 2010 fará seis anos que escrevo nesse espaço, ou seja, com esse agora, serão seis natais. Seis anos em que minha vida mudou substancialmente: eu adquiri uma licenciatura em língua portuguesa, dei aulas durante um ano na rede pública, iniciei um mestrado em literatura na UFSC, me afastei profissionalmente do mundo dos transportes e logística, algo que eu fiz pelo menos uns quinze anos. Conheci lugares e pessoas interessantes. Algumas novas amizades surgiram, livros foram escritos (um de crônicas, inclusive), outras relações solidificaram-se, algumas sólidas se desmancharam no ar, só para lembrar um livro famoso. Continuo poeta. Continuo achando Hilda Hilst a mais devastadora escritora que eu já li até agora. Continuo tímido, apesar de me safar melhor em situações públicas. Resolvo então rever o que andei escrevendo nas vésperas de Natal desde 2004, para ver se minha reflexão nessas semanas de Natal passadas ainda resulta possível. Vejamos: Em 22 de dezembro de 2004 escrevi “O dia que vive em mim”, uma crônica sobre a minha preferência pelo dia ao invés da noite. Com cinco anos nas costas a preferência continua mais viva do que nunca. A noite cada vez mais me põe na cama, naquele sentido bem inocente mesmo, enquanto o dia me alegra, me faz um bicho vivo. A crônica terminava com uma frase meio excessiva na defesa do dia: “Um homem sozinho numa manhã ou tarde, passeia. Sozinho à noite: sofre.” No dia 21 de dezembro de 2005 a crônica era “Teatro: mananciais do sonho” uma ode ao teatro, ah, como essa arte me fascina. Duas coisas chamam atenção até aqui: eu continuo concordando com o que escrevi e a minha recusa até então de abordar o tema do Natal. Seguimos o caminho para ver se isso acontece nos próximos anos. Dia 20 de dezembro de 2006: “A morte semanal de um cinéfilo”, dessa vez narrava as agruras de um cinéfilo diante da programação de cinema de Joinville: americanizada e infantilizada. O tom era de tristeza e uma pseudo-revolta que não sei se eu praticaria hoje, mas o tema continua atualíssimo: a programação de cinema na Cidade dos Príncipes mata de inanição qualquer cinéfilo. A fuga do tema natalino continua...Como dia 26 de dezembro de 2007 foi numa quarta, resolvo olhar essa crônica e eis “O fim do Bombardeio”, um texto que desancava todo o sistema comercial em que o Natal se meteu. Há nele uma certa ingenuidade que talvez tenha diminuído em mim, mas a cada ano o comércio natalino ganha mais força e mais apoio da mídia e do décimo terceiro salário do povo, e o objetivo mais espiritual da festa definha a olhos vistos. Já em 2008 a quarta-feira caiu bem na véspera do Natal, eis que finalmente escrevo a “Primeira Crônica de Natal” em que a ideia foi escrever uma crônica de Natal sem cair nos clichês, resolvi andar então pela cidade descobrindo pequenas delicadezas que pudessem compor um presépio vivo dentro do espírito natalino. Acho que consegui. Agora estou aqui, recordando Natais recentes e vendo que apesar de algumas mudanças, continuo em essência o mesmo. Nem sei se isso é bom ou ruim. A todos que me acompanham nessa vida de cronista a frase mais feita e verdadeira de todas: um feliz Natal.

terça-feira, 22 de dezembro de 2009

Caroline Hyman, 2006



Se a alma é palavra, é pela palavra que ela jamais se encontrará, porque é lá, na palavra, que a alma habita. A palavra, por pura proteção, jamais sairá de onde está. A palavra não é uma coisa morta e nem é palavra o que lemos no dicionário; muito pelo contrário, a palavra é vis activa: algo pra lá de vivo. A palavra céu, se pronunciada por Algo ou Deus, é um céu; a palavra água é água.

A palavra a que me refiro não é a palavra em estado de dicionário; a palavra a que me refiro, com reverência, é aquela palavra anterior ao mundo; é a palavra que o primeiro Homem (Deus ou Algo) pronunciou para criar o mundo.

Se pronunciarmos céu por nós mesmos, o céu morre; contudo, se pronunciarmos céu por amor ao Algo, ou porque escutamos a palavra de Algo, é bem verdade que um céu acaba de nascer em nós.

A palavra purifica, clareia, inaugura um mundo novo nisto que convencionaram chamar de "alma".

A palavra é a casa da alma.

A palavra da alma só é desprezada porque ela tem uma pequena aparência.

Quem sabe, depois de mortos, apenas nos reste criar o paraíso com as palavras: aqui a torrente de uma árvore; ali a barca de um vento; lá um adágio perfuma as veias.

O poeta é aquele que pressente isto de maneira profunda: e não quer mais o mundo, mas aquele outro mundo onde pode escutar a palavra e, surpresa, a palavra luz é uma luz mesmo.


Fernando José Karl,

um animal impossível do espírito


Adicionar imagem

Dominique Bollinger, sem data



De uma das estantes da modesta biblioteca que possuo aqui no casarão colonial, retiro um livro de Jorge Luis Borges.

Cada livro devia ser escrito para ser lido com os olhos fechados.

Por isso, nos dias de chuvas pelas calhas, baixo as pálpebras e abro ao acaso o livro de Borges, onde leio: “Costumo pensar, então: este é um sonho, uma pura diversão da minha vontade e, já que tenho um poder ilimitado, vou produzir um tigre”.

Alguma louça na pia. Lavo, enxugo, guardo os pratos, as xícaras, talheres e nunca sei se sonho com gata ou peixe.

Se sonho com gata sem peixe, escuto certo murmúrio renascentista na Nuages gris, de Lizst.

Se sonho com peixe sem gata, viro água no talo foliáceo das algas, espumo, quebrando-me na aresta do granito.

Se sonho sem gata e sem peixe, saio das nuvens, levanto a fronte e escuto.

Se sonho apenas com gata, “e já que tenho um poder ilimitado”, ela se torna essa Lucana envolta em óleo perfumado.

Finalizando: se sonho apenas com peixe eu sonho o sonho do peixe.


Fernando José Karl,

um animal impossível do espírito


Cartier-Bresson (1908-2004)



1.

você é dente de sabre
eu não, eu sou abre-te sésamo
o meu pecado mora ao lado
o meu pecado é passar a língua
ali onde plantas e peixes
sabem mais que santos
ali contemplo uma pequena chuva

2.

este poema é pra ser
um peixe de escamas de prata
estirado na cama vazia
um peixe sou na cama fria
se não vens
nessa noite chuvosa
sou
um
peixe
que
apodrece
com
uma pérola entre os dentes

3.

pedi água para beber
à tua bola de cristal
à tua pele pedi
que respingasse
na pele que lavo
absorto
para sempre absorto
nos mil dias de orvalho
que guardas entre as coxas


Fernando José Karl,
um animal impossível do espírito

Um grafismo de Fernando José Karl



Escutar Prelude Cello Suite No. 1

http://br.youtube.com/watch?v=LU_QR_FTt3E&feature=related

Intérprete: Rostropovich.

quarta-feira, 16 de dezembro de 2009

Uma crônica de Marco Vasques


Todos os nomes

Roberto era mesmo um estudioso dos nomes. Começou com os femininos, mas se rendeu a todos os gêneros. Ele procurava a pele no nome. Construiu mapas dos nomes e os comportamentos inerentes a cada um. Era a sua maneira de amar dizia sempre que um amigo perguntava. Durante sua vida escolar colecionou 8.976 nomes. Agora, aos 45 anos, já estava na casa dos 1.987.967.333. Estudava tudo. Fernanda é um nome comum a partir dos anos 1980. A multiplicação de Isadoras veio nos anos 1990. Isadora Duncan (a bailarina norte-americana) e Isidore Ducasse (o poeta uruguaio-francês) estavam no mesmo mapa. Os gêneros já não importam mais. Afirmava, em público, que os dois artistas eram praticamente uma simbiose autêntica. Um está na poesia do outro. Ela nas palavras, ele na dança. Roberto divagava. Buscava referência nos nomes bíblicos, nos personagens de cinema, literatura. Andava pelas ruas colhendo nome, profissão, data de nascimento de ambulantes, mendigos, garçonetes (Roberto sempre afirmou amar as garçonetes e enfermeiras), pedreiros, bebedores profissionais... A lista de experimentos e histórias dos nomes fez de Roberto um consultor público. As pessoas o procuravam pelas mais diversas razões: jogar no bicho, procurar o nome certo da namorada, ver o nome ideal para o futuro do filho, casar, descasar, terminar namoro, loteria, emprego, ganhar dinheiro sem esforço, sexo, poder... É infinda a saga de Roberto que se ressentia por nunca ter lido o livro Todos os Nomes do Saramago. Foi num final de tarde de chuva fina que Roberto teve um sobressalto. Ela estava à beira da estrada. Vestida de luzes (azul, âmbar e vermelha). Tudo nela era expressivo. Ando meio envergonhada foi a mensagem que ela “emitiu” a Roberto. Mas qual o seu nome? Meu nome é Arvore de Natal, custo R$ 3.700,000,00 e não consigo uma bala para doar ao menino do semáforo. Roberto anotou o nome, balançou a cabeça e seguiu para o hospital Celso Ramos. Foi buscar o filho Robert Frost e a mulher Sarah Kane que ali passaram o dia a espera de atendimento. Sarah abraça Roberto. Um silêncio sonoro e tudo foi entendido. Seu filho morreu após 15 horas de espera. Tudo porque a entidade não dispunha de um medicamento que custa R$ 10.00. Conta a lenda que Roberto nunca mais festejou um natal e escondeu todos os nomes dentro do esquife do filho. Emudeceu.

Um poema de Antonio Carlos Floriano

NAVIO


Na aliança da água
evolui o corpo pesado
cidade móvel de luzes

Atlântico de sal e de ferro

Move-se o continente
Não ilha
Não casa

Alia-se a nova paisagem

Avista da vigia
O claro amanhecer do dia.

Uma crônica de Rubens da Cunha

Crônica publicada no jornal A Notícia no dias 16/12/2009

SOBRE NUVENS NEGRAS E A BELEZA DA VIDA

“Tá difícil ser eu sem reclamar de tudo. Passa nuvem negra, larga o dia e vê se leva o mal que me arrasou pra que não faça sofrer mais ninguém.” A voz de Gal nunca foi tão lâmina, nunca navalhou tão bem a alma quanto agora. A canção, a princípio só de amor, alarga-se a outras esferas e denuncia o descontentamento, que não é amoroso, ou que talvez não seja só amoroso. Quem sabe seja o final de ano e seu décimo terceiro salário infestando o comércio. Talvez sejam as luzes de natal – “Meu Deus, mas que cidade linda, no ano novo eu começo a trabalhar” – enfeitando as cidades com uma falsa luminosidade cristã.Talvez seja a árvore de natal da Capital, vendida a milhões, entregue numa altura abaixo da prometida. Árvore denunciativa de que o nosso sistema político está cada vez mais sujeito à indiferença da população. Ou seja, nossa sociedade é o paraíso dos corruptos. Afinal, somos ou não somos um povo apático e com uma tolerância acima da média? Talvez seja ainda o aquecimento global, a banalização da vida nas vitrines e nas artes, principalmente na música. “Você diz que não me ama, você diz que não me quer, mas fica pagando pau, qual é que é. Todo dia seu teatro é exatamente igual, você finge que me odeia, mas no fundo paga-pau.” Musiquinha sem-vergonha, o jeito é torcer para que desapareça tão rápido quanto apareceu, e que eu consiga ser sonoramente estuprado o menos possível. O pior é que, agora, eles aliam as músicas da moda a locutores na porta das lojas. Queria tanto saber quem tem coragem de entrar numa loja por que foi chamado por um locutor? Esses comerciantes já ouviram falar em vergonha alheia? Eu quase sempre morro disso. Passa nuvem negra, afinal eu “Não quero ser triste como o poeta que envelhece Lendo Maiakóvski na loja de conveniência”. Então eu vou pensar na vida bem interessante do tubarão-martelo, ou de um lêmure em Madagascar, ou ainda em povo nômade qualquer. Ou eu deveria só viver e deixar viver, mas como realizar isso sem cair na alienação ou na indiferença mais absoluta? Ou perigo maior: passar a achar certas coisas normais, e até mesmo gostar delas?“Não quero ser alegre como o cão que sai a passear com o seu dono alegre sob o sol de domingo.” Também não quero encher a paciência de quem se arriscou a me ler até aqui e que deve estar se perguntando: “Sim, Rubens, e daí? O que você vai fazer a respeito além de ficar reclamando e citando versos de músicas?”Eu lhe digo que não sei, que ao mesmo tempo em que tenho vontade de convidá-lo: “Quero que você me dê a mão, vamos sair por aí sem pensar no que foi que sonhei, que chorei, que sofri, pois a nossa manhã, já me fez esquecer”. Fico me perguntando “por que tanta luz?, dá-me um pouco de céu, mas não tanto azul”. Pois eu aprendi desde cedo que em rio que tem piranha, jacaré nada de costas, mas aprendi também que a “Vida é bonita, é bonita, é bonita”.

segunda-feira, 14 de dezembro de 2009

Um poema de Dennis Radünz

Do FASCÍCULO DE INSCIÊNCIA / Dennis Radünz



FASES DA FISIONOMIA

sobre um autorretrato de outra pessoa


a aparição em claro-escuro
sopesa o outro sobre a pele
entre uns nichos de tecidos
e as suas células moventes

(o que respira ainda é rosto
sobre o remoto sobre-rosto
nas carnações do movediço
e os seus maciços sinuosos)

mas a figura o escasseia
em levas de fisionomias
(pelame, voz, temperaturas,
cabeça posta sobre a febre)

e a dentição, sob o desenho,
devora adentro a identidade
caso o disfarce não falseie
o impossível da aparência

todo mesmo é diferença
( idades da alteridade )
todo retrato é insciência
feição da sobrenatureza

Aproximações de um espantalho

O discurso do Lá


I



báçira não é mais

não é menos, mas é

serra da paçira

terra de Oz-

man Lins


II


um garoto na rua diz:

“o som é muito alto pro meu cavalo”


III


flutua o arco sobre a seara de faces

muito não chove.


IV


irei, não

fui, estive

agora não

poucos dias

antes do vento

o baile da palha


V


um espantalho na neve.

Moscou, 1927

“ficou lá durante muito tempo, acenando”

seu chapéu

uma gramática russa

sob ele

ruas da infância


VI



como ver-se

e masturbar-se

não. não

na estaca, fixo.

goza com a pele

ru

gosa

dedos finos

dos corvos



VII


a palha atende ao frio que ronda katharina detzel

ganha corpo e avoluma-se em suas mãos

não há sujeito tampouco sangue

mas há o princípio do prazer

e isso muda tudo

e a palha pode ser sim algo

mais que palavra, a própria morte

ainda curva em seu esconder-se dentro da vida

assim a palha alegra o homem

que a disfarça sob a mão feminina que o segura


VIII


lá não se diz mais espantalho

lá o discurso é de mau agouro

lá na curva, malha de aguapé

lá a malha da rede enche a boca da barra

lá o homem de palha enche o bolso de pilha

lá o homem sai radioativo e ruidoso

há só eco seco sobre saco de supilho.


Cristiano Moreira