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sábado, 26 de maio de 2012

MINUTO

lá vem você se passando por vento como ninguém te visse lá vem você dublando pesamento como uma praia que sentisse, pra perto do riso,do risco, do início das ondas,das dunas do espanto, lá onde o calar fala mais alto e onde o momento comemora com um minuto de silêncio. RODRIGO GARCIA LOPES

sexta-feira, 18 de maio de 2012

Mary Ellen Mark, 1990



Não é diamante nem safira, senão ferro, duro ferro, a alma do velho Lycurgo, forjada com amargo vinagre.
         Arquejando por causa dos pulmões, que a fumaça constante do cachimbo arruinou, o velho Lycurgo vive no toco, roendo um chifre. Fala por falar, engasga com a saliva, quase não dorme. Ele escutou em algum lugar que só os indivíduos rachados possuem aberturas para o além. No entanto, o velho Lycurgo não consegue crer no além nem confia em nada.
         O jardim, que ele rega todas as manhãs, está coberto de folhas secas e vasos quebrados. Ele só rega, não varre, por isso tudo fica sujo.
         Assim que alcança a porta da cozinha, o velho Lycurgo decide ferver chaleira com água. O vinil de um tango gira na vitrola Elwo. A chaleira continua a ferver. Ele deita-se na espreguiçadeira, acende o cachimbo, enquanto espera.
         De frio dói o mamilo murcho de sua mulher doente na cama. Há cinco anos ela sofre de cancro. O velho Lycurgo apanha a chaleira com água fervente e derrama em cima da enferma. Escuta-se um urro selvagem: a voz dela entra pelos ossos dele; para estancar a dor, ela rola na cama, morde o travesseiro, bate com a cabeça na parede, contudo a dor só aumenta, pois a pele está muito esfolada na altura na clavícula, que é onde se instalou o cancro.
         Depois do ato insano, em desespero o velho Lycurgo vai para a rua e dobra a esquina, diminui o passo até parar, encosta-se a uma parede e morre de saudade de Soraia – esse o nome dela – estendida na cama, agonizante, porque a água fervida dói pra danar, mas não mata.
         Soraia, mesmo com a grave queimadura, enxuga as lágrimas e corre até a esquina, ajoelha e ampara a cabeça do velho Lycurgo que, agora morto, não rói mais o chifre.
         Soraia fica ali, vendo desaparecer, do velho Lycurgo, o casco do navio, depois a proa, os mastros, tudo, enfim.

Fernando José Karl

quinta-feira, 17 de maio de 2012


MIRIAN



- Mirian, você sabe onde mora o Daca? Preciso falar com ele?

- Tens um cigarro para mim?

- Não, eu parei de fumar! E o Daca?

- A casa dele é assim: pega esta rua que tem um monte de casa. Uma é a dele.

(Marco Vasques)

terça-feira, 15 de maio de 2012

Charles Gatewood, 1972



A CONFISSÃO DE CAVAAL BUTOR

Agora que ele estava principiando
a confessar
na bruma seu semblante e melodia.

Carlos Drummond de Andrade



A palavra foi criada por guerreiros e caçadores
e é muito anterior à ciência:
a palavra pesada abafa o pensamento leve.

Em nenhum lugar perguntam por Cavaal Butor,
e só Cavaal Butor sabe que é privilégio dos cadáveres
nunca mais escutar a chuva nas calhas, a música de câmara:
nunca mais ver o azul de Matisse, a noite vasta:
nunca mais tocar a pele do pão, a nudez da banhista:
nunca mais cheirar os clamores da concha, o delírio azul marinho:
nunca mais sentir na língua o sal, o açúcar.

Cavaal Butor confessa: eu sempre quis, antes de morrer,
ser o cheiro da cachaça em garrafa translúcida,
ser um porto, uma sombra, uma moringa d'água,
ser a tranquila contemplação do objeto natural.

Não quero perdão: 
tudo o que eu quero 
é não ser banquete para as larvas,
tudo o que quero 
é que lavas catequizem larvas,
tudo o que eu quero é, 
mesmo com asa quebrada, escapar da cova rasa,
tudo o que eu quero 
é saber que ardil devo usar 
para imaginar o novo corpo
onde se esboça a lucilação diversa e outra música.


Fernando José Karl

segunda-feira, 14 de maio de 2012

Sixto Pondal Ríos

Balada para el nieto de Molly
de Sixto Pondal Ríos


En el país de donde viene el tiempo
Ya nacieron los días que irán cruzando por tus
cielos.
Y aunque Dios destruya esta noche todos los astros
Ya no podrá apagar la luz que viene a poner estre-
llas en tus noches.

Ella aún no ha dado el beso de dónde harán tu
nombre,
Ni sus manos se ahuecan todavía cuando piensa en
cabezas de niños.
Pero tú ya has nacido en el país de donde viene el
tiempo.

Pasarán las atmósferas aclarando el perfil de los
presentimientos.
Y un día vivirás en esta casa donde ahora pienso
en ti.


quinta-feira, 10 de maio de 2012

Dave Heath, 1956



Vou à varanda. Nessa noite os rascantes grunhidos das iguanas estão insuportáveis. Vou à varanda, eu disse. Quem me espionasse de binóculo, digamos do açougue, da farmácia ou do bar fedorento da esquina, veria um homem, calmo e soturno, largando o livro e indo à varanda.
         Por um momento a chuva dessa noite me envolve a ponto de me convencer a vestir o casaco de couro e descer até a rua, predisposto a saciar uma súbita fome de assistir a um filme qualquer da novelle vague francesa.
         Assisto a um filme de Truffaut, depois volto para casa e escrevo: É meia-noite. A chuva está batendo nas janelas. Não era meia-noite. Não estava chovendo.
         Também escrevo: Betânia apareceu, enroscando-se em mim igual a uma serpente de cipó e tão nua como se fosse a um bacanal de Calígula, aquele romano demente que falava latim e que nomeou cônsul seu cavalo. Acontece que Betânia não apareceu, nem estava enroscada igual uma serpente de cipó e nua não estava como se fosse a um bacanal de Calígula. Daí concluo que  escrever serve para nada, ou melhor, para dizer o nada, e que nada é impossível a quem escreve ficção.
         À sombra do abajur, sou acossado por algumas cavilações filosóficas, entre as quais destaco: “Como um padrão neural se torna a imagem da chuva em meu cérebro é uma questão que a neurobiologia ainda não elucidou. E não só a imagem da chuva, mas as imagens do homem calmo e soturno, do livro, da varanda, de Betânia, da serpente, do cipó, do bacanal, de Calígula romano e demente, do latim, do cônsul, do cavalo: de que modo essas imagens se formam em meu cérebro?”
         Naturalmente gastei invernos edificando essa Betânia que vive nas caves de meu cérebro; Betânia que, por existir apenas na minha memória, é distinta da outra, que nesse instante respira – carne e osso – em algum lugar remoto do oriente, respira e por isso se confunde com a que carrego na parte interna da minha caixa craniana.
         Porque no se le recibe fuera si no sale de dentro, porque desejo tatuar o nada na minha retina exausta é que escrevo, ao sabor do acaso, as frases dessa breve narrativa. E pode existir algo mais fecundo que o acaso?
         Sou, até onde sei, servo da origo et fons (da origem e da fonte) e nunca escravo de artifícios, embora saiba que a língua portuguesa que uso para escrever as mal traçadas linhas desse episódio gratuito, seja uma língua de banzos, uma língua escura e bela. 
         Em suma: o que eu pretendo narrar aqui será certamente menos copioso que certa enciclopédia chinesa que abrange mil seiscentos e vinte e oito tomos de duzentas páginas in-oitavo.
         Por que ainda continuo a escrever essas notas fugidias, esses andamentos de peixe ao redor das barcas? Às vezes, quando já não posso fazer outra coisa a não ser folhear um romance ruim, é nesse instante que eu gostaria de ser um exímio escritor que grafasse nas páginas áridas as frases de um livro intitulado A noite acaba feito gim.
         E o que eu, exímio escritor, grafaria nas páginas áridas desse livro? Ainda não sei, talvez contasse nelas a ópera bufa de minha inútil existência, quem sabe revelasse nelas sem gratuitas retóricas nem palavras ilegíveis o veio de uma água que saciasse os tímpanos sequiosos com certa música – antiga e profunda – que os baldes da memória puxassem das profundezas primitivas.
         O ato de escrever – ou o exercício de combinar palavras que alarmem de aventura quem as ouça ou leia – padece de misteriosas interrupções e brutais engasgos, de lúgubres e arbitrários eclipses. A exemplo do vento, toda escritura é uma obra em estado invisível, que só se torna visível se tivermos tempo de lê-la. A palavra escrita é algo duradouro e morto; já a palavra oral possui algo de alado e sagrado, como sugeriu Platão.
         Por que eu, o autor confesso de A noite acaba feito gim, escrevo?Para ser lido sem pressa, à sombra do mar ou à sombra do vendaval; dentro do escritório ou no sofá da sala de estar; num vagão de trem ou deitado numa rede de embira nova. 


Fernando José Karl

Peter Bock-Schroeder, 1956



Dedico este conto a meu amigo de infância luciferina: 
Cristiano Moreira.
Apenas direi que, se antes me chamava Severus de Deus, agora me chamo o Deus Severus e prometo o reino dos céus a quem me adorar, e ameaço com os aguilhões do geena mais cáustico a todo aquele que ousar ter dúvidas de que eu Deus Severus realmente exista.
       As más línguas comentam, à boca pequena, que sou um simples coroinha na igreja de Santa Teresa, que repõe água benta na pia e, de vez em quando, ajuda a lavar estátuas de santos. E ainda há outras línguas que, não sendo más, cultuam o sarcasmo e espalham aos quatro ventos que sou pobre diabo, filho de um pescador de sardinhas-de-galha, e que falo com as paredes quando estou só.
         Sendo o que sou o Deus Severus me distinguo em essência dos outros e, quando digo outros, me refiro àqueles homens que, com obstinada monotonia, só sabem tatuar em si, a ferro e fogo, uma irremediável banalidade.
         Aos que zombam de mim, eu digo: basta que eu profira apenas uma palavra para que a figueira seca reverdeça, para que as neves não derretam, para que o morto inale de novo o mais puro oxigênio.
         Aos que teimam em não crer em mim, eu os lanho com ataques cardíacos, loucura, mal de Alzheimer, mal de Parkinson, mal de Hansen, tuberculose, tumor, câncer na próstrata, alcoolismo.
         Aos que se inclinam reverentes ante mim, eu prometo o reino dos céus, mas o que é o reino dos céus? Será o lugar onde a música torne todas as coisas leves? Todas as coisas: pele, palavras, respiração.
         Tem vezes, por conta dessa mania de grandeza que me acomete nos dias nevoentos, me bate uma ressaca e volto a ser o coroinha na igreja de Santa Teresa e, assim coroinha, sou banal e monótono, menos quando urino na pia de água benta onde as velhas corolas – baratas de sacristia – mergulham os dedos devotos. 
 
 
Fernando José Karl

domingo, 6 de maio de 2012

epigrama

no interior da sala escura
ja não sabia em qual lado
estava a lua

Cristiano Moreira

Poesia na beira do rio Itajaí Açu


Leitura de poemas na margem do Itajaí Açu em Navegantes. Abertura dos trabalhos do Projeto Contém Cultura. No dia 30 de abril aconteceu um café da manhã para confraternização dos artistas pelo dia do trabalhador da cultura. Saiba mais : www.institutocaracol.org.br