...

segunda-feira, 30 de agosto de 2010

POEMA SINGULAR

Após duas semanas fora do ar a seção POEMA SINGULAR retorna. Desta vez o poema selecionado é HOMUS INFIMUS, do poeta Augusto dos Anjos. A escolha é do elegíaco Marco Vasques. A proposta da seção POEMA SINGULAR foi idealizada pelo poeta Antonio Carlos Floriano. Na próxima semana o poeta Rubens da Cunha escolhe o poema de sua predileção. Boa leitura!



HOMUS INFIMUS

Homem, carne sem luz, criatura cega,

Realidade geográfica infeliz,

O Universo calado te renega

E a tua própria boca te maldiz!


O nôumeno e o fenômeno, o alfa e o ômega

Amarguram-te. Hebdômadas hostis

Passam... Teu coração se desagrega,

Sangram-te os olhos, e, entretanto, ris!


Fruto injustificável dentre os frutos,

Montão de estercorária argila preta,

Excrescência de terra singular.


Deixa a tua alegria aos seres brutos,

Porque, na superfície do planeta,

Tu só tens um direito: — o de chorar!


(AUGUSTO DOS ANJOS)

sábado, 28 de agosto de 2010

EGON SCHIELE


Um poema de Antonio Carlos Floriano

O DOENTE


adoeceu-se de alma
queriam tratá-lo com água
banho silvado de reza

tentaram soprar os olhos
tentaram matar os sonhos
usando cores da geometria

usaram flores de sal
usaram vento de conchas
deixaram sem roupas do rochedo

para os pássaros da alma
para o rumor das águas
numa campa de flores de sal
o doente geômetra de gesso.

sexta-feira, 27 de agosto de 2010

Roberto Piva



RITUAL DOS 4 VENTOS E DOS 4 GAVIÕES

para Marco Antônio de Ossain

"Eu trago comigo os guardiões dos Circuitos celestes."
— Livro dos Mortos do Antigo Egito —



Ali onde o gavião do Norte resplandesce
sua sombra
Ali onde a aventura conserva os cascos
do vudu da aurora
Ali onde o arco-íris da linguagem está
carregado de vinho subterrâneo
Ali onde os orixás dançam na velocidade
dos puros vegetais
Revoada das pedras do rio
Olhos no circuito da Ursa Maior
na investida louca
Olhos de metabolismo floral
Almofadas de floresta
Focinho silencioso da sussuarana com
passos de sabotagem
Carne rica de Exu nas couraças da noite
Gavião-preto do oeste na tempestade sagrada
Incendiando seu crânio no frenesi das açucenas
Bate o tambor
no ritmo dos sonhos espantosos
no ritmo dos naufrágios
no ritmo dos adolescentes
à porta dos hospícios
no ritmo do rebanho de atabaques
Bate o tambor
no ritmo das oferendas sepulcrais
no ritmo da levitação alquímica
no ritmo da paranoia de Júpiter
Caciques orgiásticos do tambor
Com meu Skate-gavião
Tambor na virada do século ganimedes
Iemanjá com seus cabelos de espuma.


Roberto Piva

quinta-feira, 26 de agosto de 2010

Gerlovin & Gerlovina, 1995
O sonho secreto de toda rainha louca é cortar os pulsos e morrer cantando na fogueira.

Dalton Trevisan
Theo Frey, 1955




Não há século novo
nem luz recente
apenas um cavalo azul
e uma madrugada.

Federico García Lorca



Cara amiga,
eu acredito muito no poder onírico: eu penso que devemos acordar do estado de vigília (onde o mundo externo vigora). No estado onírico podemos voar com uma árvore perfumada nas mãos; ao acordar vemos aquela árvore no quintal, só que não estamos mais voando nem a árvore é perfumada; isto é o que torna as coisas, de certa maneira, chatas ou desesperadamente enfadonhas. Por isto devemos despertar, não do sonho, mas do estado de vigília (onde o mundo externo vigora). Devemos aprender a retomar a potência do onírico; isto já falava o Nietzsche em sua teoria filosófica do Eterno Retorno.

Contudo há um outro estado, anterior à vigília, que se chama o Deus ou Algo: eu creio firmemente que o Deus ou Algo é quando a luz que temos (ou consciência) ilumina, alumbra, aclara a escuridão. A luz não apodrece. A luz não pensa. A luz, em latim dies: daí vem a palavra dia e a palavra Deus; Deus que é luz, não deste mundo, nem do outro.

Freud foi um divisor de águas no século 20, porque ele descobriu que, no tal do Inconsciente ou Deus ou Amor, só há o vocábulo sim.

O não vem do ego, do que há de mais podre em nós, do tirano que há em nós e que diz que a potência da vigília (o mundo externo) é mais eficaz que a potência onírica. O ego é aquele que diz, todos os dias, que um poema não vale nada; que um passo de dança não vale nada; que uma escultura do Aleijadinho não vale nada; que uma linha de Paul Klee não vale nada; que uma suíte para violoncelo de Johann Sebastian Bach não vale nada.

Por isto devemos esvaziar o ego.O único poder do ego é reconhecer que não tem poder algum: e isto é reverência, humildade, ou deixar que as coisas fluam. Paul Valèry sugeriu: "Devemos ajudar a Hidra a esvaziar seu nevoeiro".

Numa sala, se alguém disser que há um cavalo azul esvoaçando, sabemos que só as crianças o verão (quiçá alguns velhos). Ninguém entra no Reino se não se tornar criança (não no sentido de tamanho ou idade), mas criança no sentido de se abismar no lúdico, no abismo livre das águas e ver as coisas com olhos novos e retinas enxaguadas pela chuva.

E se, no estado de vigília, praticamos o estado onírico, aí somos artistas e, quanto mais artistas, mais conscientes. Outro dia eu imaginei que um leão de fogo passava próximo de minha xícara de chá e, nela, esquecia sua sombra vacilante. Eu não via o leão de fogo, apenas sua sombra na xícara de porcelana branca. Claro: nem o leão de fogo nem a xícara de chá nem a sombra existiam no estado de vigília; eles existiam, somente, no estado onírico. Quando me refiro ao estado onírico, falo também da glândula pineal, cuja função em nosso cérebro é ver; a glândula pineal é o nosso terceiro olho – nosso olho védico – o Olho do Deus ou do Algo: Aquele que tudo sabe e de quem nada sabemos, porque conhecer o Deus ou Algo é conhecer-nos. Através da glândula pineal podemos ver com os olhos fechados tudo o que há no mundo vasto mundo; e, assim de olhos fechados, recordar do mar, do vento, das barcas; rememorar a nossa origem primordial e nossas outras origens que tais.

O amor é um sim primordial; é fluido integrativo; o Deus é sim, nunca não; a não ser que este não seja para o ressentimento; a tristeza, a mentira; a violência; o desamor.

Devemos despertar do estado de vigília, não do estado onírico. No estado onírico podemos ser tudo, a cada milésimo de segundo. No estado de vigília vivemos sob o tacão da selvageria, humilhados pelo grilhão da mesmice, imersos em baboseiras e cotidianos aviltantes. No estado onírico eu posso fazer comigo e com quem amo o que a primavera faz com as cerejeiras; posso, igualmente, lamber o sal de todo o corpo daquele Ser que adoro e ciciar em seu tímpano a ondulação dos capinzais do Ceilão. Ver as coisas externas com a potência do estado onírico, eis a arte e a condição humana. No estado onírico curamos chagas com apenas passar a nossa língua de bálsamo nelas. Precisamos cuidar das coisas do Espírito (as coisas do estado onírico) e o resto nos será dado de acréscimo. No estado de vigília ficamos na cama dos hospitais. No estado onírico somos pássaros; no estado de vigília somos deputados, gerentes de banco, burocratas da pior espécie. No estado onírico somos um improviso só, algo novo, jazz do coração

Por isto viemos à Vida: para reverenciar o Deus que há em nós; o Deus paradisíaco enamorado pelas obras do tempo: um cabelo, um sorriso, um cálice de vinho; um barco que singra em torno da ilha.

Eu creio em poucas coisas, minha amiga; eu apenas creio que o Deus precisa de nosso pobre coração para existir. Devemos ser reverentes à potência do estado onírico e despertar as forças oníricas latentes. Por outro lado, devemos despertar do estado de vigília, enriquecendo a vigília com leões de fogo, deixando-a fluir musical.

Somos deuses quando nos abandonamos ao mistério.

Abraço
do

Fernando José Karl
Praxilla (500a.C.)




O que de mais terno eu deixo para trás é a luz do sol, as estrelas cintilantes e a face da lua cheia, mas também o pepino maduro, as maçãs e as peras. Cuidado com o escorpião, meu amigo, sob cada pedra. Você que se mostra tão linda vista da janela — um rosto virgem, mas com a cama recém inaugurada.

Praxilla

Tradução de Grace Cavalieri
Mulheres escritoras
da antiga Grécia e Roma


Sappho
Cleobulina
Telesilla
Myrtis
Praxila
Aspasia
Eurydice
Philaenis
Erinna
Hedyle
Anyte
Moero
Nossis
Nicobule
Theano
Perictione
Myia
Aesara
Melissa
Phintys
Ptolemais
Boeo
Corinna
Melinno
Cornelia
Hortensia
Sulpicia
Philinna
Syra
Salpe
Elephantis
Lais
Olímpia
Sotira
Timaris
Sulpicia
Pamphila
Maria
Cleopatra
Dionysia
Caecilia Trebulla
Julia Balbilla
Terentia
Samithra
Xanite
Perpetua
Theosebeia
Proba
Egeria
Eudóxia

Fritz Henle, 1975



Se não se escutam as folhas do arvoredo, Lucana gasta os olhos numa página avulsa do poeta Almafuerte: yo soy un palmar plantado sobre cal e pedregulho. Os vocábulos lidos na frase anterior já estão mortos, derrotados, e unicamente a retina do leitor pode trazê-los à vida com um sopro. Se o vocábulo é sopro e o sopro é vida, sopramos em yo, sopramos em soy, sopramos em un, sopramos em palmar, sopramos em plantado, sopramos em sobre, sopramos em cal, sopramos em e, sopramos em pedregulho. Lucana confessa ao palmar plantado: “Eu sou uma daquelas víboras descascadas junto à fonte fria.

Com pinças curvas eu arranco o cérebro dos fariseus – gruta com lesmas – pelas fossas nasais.

Eu, com um garfo de ouro, faço um talho na cara da prosódia sonolenta e, debaixo do chuveiro, tento captar, apesar da água torrente, o sentido das palavras em Fernando Pessoa: ‘Atinjo a força de palavras, não para realizar a obra que eu nunca poderia realizar, mas ao menos para dizer com simplicidade por que razões não a realizei’.

No espelho, enquanto me enxugo, verifico que na alma continuo sendo uma daquelas gueixas com neve no negro cabelo. Escuto a balada de Narayama e, com a colherinha de açúcar, faço nevar no espírito do chá”.


Fernando José Karl

Paulo Leminski (1944-1989)

Miran
William Mortensen, 1932




CURIOSIDADES



Se você ficar gritando por 8 anos, 7 meses e cinco dias, terá produzido energia sonora suficiente para aquecer uma xícara de café.

O coração humano produz pressão suficiente para jorrar o sangue para fora do corpo a uma distância de 10 metros.

O orgasmo de um porco dura 30 minutos.

Uma barata pode sobreviver 9 dias sem sua cabeça até morrer de fome.

Bater a sua cabeça contra a parede continuamente gasta em média 150 calorias por hora.

O louva-deus macho não pode copular enquanto a sua cabeça estiver conectada ao corpo. A fêmea inicia o ato sexual arrancando-lhe a cabeça.

A pulga pode pular até 350 vezes o comprimento do próprio corpo. É como se um homem pulasse a distância de um campo de futebol.

O bagre tem mais de 27 000 papilas gustativas.

Alguns leões se acasalam até 50 vezes em um dia.

As borboletas sentem o gosto com os pés.

O músculo mais forte do corpo é a língua.

Elefantes são os únicos animais que não conseguem pular.

A urina dos gatos brilha quando exposta à luz negra.

O olho de um avestruz é maior do que o seu cérebro.

Estrelas-do-mar não têm cérebros.

Ursos polares são canhotos.

Seres humanos e golfinhos são as únicas espécies que fazem sexo por prazer.
Gustav Doré (1832-1883)



O dinheiro é abstrato, repeti, o dinheiro é tempo futuro. Pode ser uma tarde no campo, pode ser música de Brahms, pode ser mapas, pode ser xadrez, pode ser café, pode ser as palavras de Epicteto, que apregoam o desprezo pelo ouro; é um Proteu mais versátil que o da ilha Faros.


Jorge Luis Borges


Kami: Deus, em Japonês


OS OLHOS

Sem dizer que são a destruição do mundo,
ou dois cestos cheios de nada.

São sempre uma casa, atrás do horizonte,
e muito maior do que a noite.

Mas sem a porta
pinto-a, com o vento cego;
sem palavras.


Yao Jingming
David Moore, 1957
Esfinge ao sol, enquanto durmo.
Se eu acordasse agora, então o quê?
Um olho aberto, outro fechado,
a esfinge sonha com meus olhos.

Meus olhos nessa luminância
dos olhos da esfinge de cal.
Meus olhos são alísios, alívios
nos olhos da esfinge no pátio.

Esfinge apagando altas estrelas,
que depois meus olhos reacendem.
E por que esfinge, por que olhos?

Seria mais simples não haver vida
– nenhuma palavra –
seria mais simples não morrer.



Fernando José Karl
Pedra persa




NOÇÕES DE GRAMÁTICA
(Origo et fons)

Essa frase tem contém dois verbos.
Essa frase tem repolho seis palavras.
Essa não é uma completa.
Essa também.




Fernando José Karl
Uma pintura e Fernando José Karl
SOMBRUS


Perde-se na noite dos tempos a memória do primeiro navegador que desembarcou na ilha de Sombrus. Não se sabe quando isso se deu nem a nossa humanidade foi capaz de buscar mesmo a data aproximada da arriscada façanha.

É que em Sombrus vivem e latem, noite e dia, os cães selvagens do Arquipélago, que ali fizeram morada não se sabe igualmente como e muito menos por meio de quem. Aliás, pouco se sabe da história primeira de Sombrus, suja, sem dúvida, de lendas sinistras e ainda mais sinistros eventos de sangue e mar, sal e insistência.

Não convém, de nenhum modo, entretanto, ficar aqui lembrando a história pregressa de uma ilha que emergiu das águas do Pacífico feito uma flor monstruosa e triste. O que vale anotar é o presente. Este se dá, em Sombrus, de forma sumamente enigmática – as horas passam não em direção ao futuro, mas num lentíssimo escoar-se passado e saudade afora. Herança, odores, perfumes – esvaídos nas dobras dos dias, puro reverso, notícias longínquas, ecos de tardes soterradas pelo Tempo.

Em Sombrus, primeiro vêm as noites e depois delas o entardecer e, na sequência, a própria tarde, a manhã, o alvorecer, a madrugada inteira, para só então sobrevir de novo a noite antes da meia-noite, a lua e as estrelas.

É sempre assim. Conosco também retornam as faces que a mó dos anos puiu e gastou, e, tudo o que era sulcos e rugas reverte, o que é ainda mais inquietante, até uma temida infância que ameaça as gentes com o retorno ao útero e do útero ao aéreo nada de que fomos feitos um dia. A morte de não haver?

Contudo, os cães de Sombrus são os únicos seres que alcançam vencer a marcha à ré do Tempo. Nascem, crescem, procriam e morrem – os alvos ossos nas praias desertas; cada vez mais desertas.

Ninguém até hoje conseguiu explicar porque de toda ilha são os únicos seres vivos capazes do que chamamos, em Sombrus, ou fora dela, escassamente, de futuro.

Então é que se dá de Sombrus o inenarrável encanto – os cães, diz a lenda, são os testemunhos fiéis de que, mesmo ao contrário, os anos andam e andam, consumindo seres e coisas, vegetais e pedras.

Por isso, aturdidos, os cães latem, tarde da noite, e vão aos bandos pelas praias da ilha, como se sentissem a dor do Tempo atravessada na garganta.

Isso um dia vimos e ouvimos, nós, os navegadores de Hérida, há muitos e muitos séculos. Desconhecemos apenas se, pelos indizíveis meses que passamos ao mar, e o nenhum calendário, eles, os séculos, se encontravam ou não ao revés.


Um conto inédito de Wilson Bueno
Al Berto
OFÍCIO DE VIAJANTE

procurei dentro de ti o repercutido som do mar
a voz exacta das plantas e um naufrágio
o deslizar das aves, o amor obsessivo pelos espelhos
o rumor latejante dos sonhos, as cores dum astro explodindo
o cume nevado de cada montanha
difíceis rios, os dias

vivi em Roma
no tempo em que ali chegavam os trigos da Sicília e os vinhos raros das ilhas
a fama remota dos ladrões de Nuoro

todo o meu corpo estremeceu ao mudar de voz
cresci com o rapaz, embora nunca tivéssemos sido irmãos
e quando ficamos adultos para sempre
alguém lhe ofereceu o ofício de viajante

eu morri perto de Veneza
e quando atirava pedras aos pássaros sempre me ia lembrando de ti



Al Berto

quarta-feira, 25 de agosto de 2010

Andrej Glusgold, sem data
GODOT CHEGOU AO HOTEL SUNSET BOULEVARD
E NÃO ENCONTROU NINGUÉM


Vim a este Hotel Sunset Boulevard, rente ao mar grosso de sal e azul, porque me contaram que aqui estavam me esperando Schopenhauer e Francisca B. Não os encontrei. Não faz mal. Ficarei espiando o mar tranqüilo assim e o visível corpo n’água.

Mar em que nos abandonamos e que cresce em nós com as tormentas, continuará a ser água salgada em desalinho constante e os limites deste mar, fixados em alguma idéia, se confundem com a altura do céu que é claro sem nunca ter pensado: este céu é suficientemente despovoado de anjos e beatas virgens, de tal modo que resta sempre novo céu que podemos exaurir e dele arrancarmos as finas cordas da chuva, as chuvas de que é capaz o espírito.

E acontece que, para o espírito, as nossas presentes chuvas, sem consideração moral, são mais molhadas. Aquele que construiu em si a obrigação de molhar os dedos na pia de água benta, sabe que nunca deixará de faltar matéria e realidade à água benta e só terá necessidade de recorrer a ela se, vazio, e para iludir o escuro em si mesmo, tocar a suposta santidade da água que, ali na pia, é água apenas, e isso é tudo para essa água que, sem pia nem beatitude, continua ali e logo evapora. Mas chega de filosofia.

Não vou esperar mais. Daqui posso ver a Tabacaria. Talvez o Esteves saiba onde Schopenhauer — o peixe espinho — e Francisca B. estejam.

terça-feira, 24 de agosto de 2010

Henry Horenstein, sem data
LES BAINS DE CARACALLA

Sonhei tanto, sonhei tanto,
que não sou mais daqui.

León-Paul Fargue



Às águas da piscina de Caracalla levo a alma,
--- na piscina nadam cinco Danaides ---,
levo a sede às cacimbas.
Com pureza entro na barca do pensamento;

agora sei que as Danaides
é que arejam a língua da piscina.
Há dentro de mim uma água que não existe.
Há uma fonte além do vento e da morte:

nela água é humilde.
A cisterna que a contém recende
a um acorde de pólen.

A música é haste de gramínea
entre os cabelos das Danaides.
Esqueci minha língua de piscina

no tímpano de uma delas --- a com o leque.


Fernando José Karl

fazer poesia deveria ser sempre assim: simples e impossível

Michael Davis, sem data
Aqui, na cervejaria Bürgerbräukeller, entabulo conversa com o garçom, que me traz logo uma cerveja e inicio a primeira leitura do Testamento para El Greco, do escritor grego Nikos Kazantzakis – que sugere o total isolamento para que se possa desvelar o mais profundo do ser humano. O mesmo Nikos disse em algum lugar: – As únicas coisas que importam na vida: idéias, frutas, mulheres.

O banheiro da cervejaria Bürgerbräukeller – arruinado, sujo. Almas acossadas em cada recanto sombrio. O dono do bar não é o Esteves, aqui não é a Tabacaria, aquele que me fita da mesa ao fundo não é o Fernando Pessoa. Se não é o Fernando, quem é? É Jorge Luis Borges e solicita que eu leia um texto de sua autoria intitulado “A escrita do Deus”: “Perdi o número dos anos que estou na treva; eu, que uma vez fui jovem e podia caminhar por esta prisão, não faço outra coisa senão aguardar, na postura de minha morte, o fim que me destinam os deuses. Com a profunda faca de pedernal abri o peito das vítimas e agora não poderia, sem magia, levantar-me do pó”.

Que estou na treva, estou. Sem magia, não me levanto jamais do pó nem alcanço o copo de água. Sem magia eu não ressuscito nem pra beijar a boca da Ingrid, aquela safada. Minha alma – agora sei – foi vista pela última vez na página 72 de “O livro perdido de Tácito”. Acontece que, numa faxina aqui em casa, perdi “O livro perdido de Tácito” e só Deus sabe quando vou encontrá-lo de novo.

Por enquanto minha alma continua perdida e eu aproveito para seguir religiosamente o conselho do espanhol Pablo Picasso para uma vida perfeita: De manhã, missa; de tarde, touradas; à noite, bordel.

Escrevo, aqui na cervejaria Bürgerbräukeller, num guardanapo: “Deus morreu nos meus braços naquele sábado em que eu e Júlia nos amávamos no Calvário. A língua vai para onde quer, o espírito sopra onde quer, o Olho por onde espio o vento é o Olho por onde o vento me espia. Meus olhos vão ver o paraíso, sim, mas serão olhos apodrecidos. ”



Fernando José Karl

sábado, 21 de agosto de 2010

ESTUDAR E VIVER - Crônica de Rubens da Cunha

Eu li num outdoor de uma faculdade à distância o seguinte slogan: “Ensino para vencer com tempo para viver”. No princípio, pensei que tinha lido alguma coisa errado, mas depois, olhando bem, percebi que o slogan que move a campanha publicitária da dita faculdade é esse mesmo. Além disso, tinha uma mulher com os braços levantados e sobre ela uma águia, reforçando ainda mais a ideia de liberdade distanciada de qualquer disciplina, ou esforço, que o estudante tenha que ter. Eu busquei na memória minhas aulas de análise do discurso (todas presenciais) para entender melhor essa frase. O sentido mais óbvio que a faculdade quer passar é que ficar durante algumas horas todos os dias numa carteira, ouvindo um professor, estudando, aprendendo pelo esforço e pela concentração não é viver. Que viver é fazer qualquer outra atividade, como por exemplo andar debaixo de uma águia com os braços levantados, menos estudar: no outdoor não tinha nem de longe a figura de um livro, de uma apostila, ou qualquer coisa que “carregasse” o conhecimento. Mas tinha um belo pôr-do-sol atrás da mulher, aquele mesmo que você perde porque está indo para a faculdade presencial. Não sou muito tradicional, acredito que o modelo atual da educação brasileira precisa ser alterado, acho que muitas vezes a escola é tolhedora da criatividade, da inteligência, mas uma faculdade expor num slogan que seu principal serviço corresponde a não viver e que, por isso, as aulas presenciais são apenas uma vez por semana, ou seja, você morre bem menos do que os alunos das outras faculdades que vão à aula todos os dias, é algo bem preocupante. Não é nem tanto o ensino à distância, uma realidade provavelmente irreversível, que me deixa indignado, mas fazer desse aspecto negativo dos tempos contemporâneos o seu lema. Afinal, ir a uma faculdade ainda é algo bem interessante, ouvir, conversar, debater, aprender um assunto ao vivo é sempre instigante, e claro, tem os aspectos extra-classe: as festas, as amizades, os contatos, a vida real que acontece num campus e que a faculdade à distância, por sua característica básica, não pode ter. Pois a faculdade a que me refiro faz de sua deficiência uma qualidade, estabelece que estudar é ruim, é chato, que ir às aulas é um esforço inútil, que vencer é muito mais fácil quando você vive longe da sala de aula. Vai lá cumprir tabela uma vez por semana. Em alguns casos, vai na escola só para fazer as “terríveis” provas. O slogan é uma ode à preguiça, à lei do menor esforço, aquela mesma que movimenta o mundo desde que ele é mundo. Obviamente, me dirão: para que ir todos os dias à faculdade se você pode ir uma vez por semana e aprender o mesmo? Para ir, para sair de casa, para ver que estudar mais que obrigação é algo bom, divertido, e que diferente do que prega o slogan, estudar está diretamente ligado ao viver.


Rubens da Cunha

sexta-feira, 20 de agosto de 2010

Clare Strand, 2009
DIANTE DO HOTEL BAY


Diante do Hotel Bay a mesma praia, o mesmo nevoeiro, o mesmo frio mais gelado que a água que anuncia a noite, o mesmo vento em que nenhum resquício de sombra pelas paredes brancas. Ela diz:
“Expulso a dor que dorme comigo”

E pronto, ela não tem mais a dizer, julga que está perto do fim porque a chuva cessou. O Hotel Bay com bicicletas encostadas. Nada sabe, apenas pronuncia palavras desesperadas:
“Necessito, para respirar, do mesmo nevoeiro, do mesmo frio mais gelado que a água”.

Como se ela tivesse culpa e talvez tenha não sei. Correntes de ar em todos os quartos do Hotel Bay. Uma confidência dela:
“Acabo no Purgatório, eu. Tudo sujo, tudo sujo, menos o vento que nunca se pode, nunca se pode mesmo ver nada com o vento".


Fernando José Karl
Heidi W Goksoyr, 2007
UM LOUVA-DEUS PARA ISSA


No meio do arvoredo um louva-deus se mexeu
a
sombra
também



Fernando José Karl
Hiram Wong, 2009
yuku fune ya: barcos que partem

nani mo oto nashi: não há barulho algum

ogusa ni: no capim



Fernando José Karl

quinta-feira, 19 de agosto de 2010

David Roupell, 2008
CHA NO YÚ
(O objetivo da cerimônia do chá
é purificar seis sentidos)


Kakemono na sala de chá:
flores de cerejeira no vaso de barro.

Água ferve na chaleira, escorre da folha de bambu.

Audição se purifica.

Quietas
as linhas da mão de mestre Rikiú.

Fernando José Karl



segunda-feira, 16 de agosto de 2010

Karl Blossfeldt, 1929
co'a retina varada de assombro
olho com cuidado os panos lavorados, percebo que
a chuva:
ancestral do osso:
lava a taquara rachada da voz:
a chuva, em vez de molhar,
seca
a
única
peça
do
varal:
tua blusa branca de algodão


fernando josé karl

quinta-feira, 12 de agosto de 2010

Edward Weston, 1927
As manhãs do Peloponeso não devem ser mais belas que as manhãs da rua do Castanheiro. As coníferas, o rádio alto no sobrado da esquina, uma construção de grade de madeira e, no quintal, aquele enorme vaso, plantas de folhas longas. No corredor do sobrado desembocam quartos cheios de treva e, na sala de leitura, eu visto uma camisa de algodão enquanto espero que passe o enterro da menina Luciana, filha do açougueiro Otto.

Quem a conheceu recorda que sorvia até o fim o cheiro da flor de laranjeira e, nos dias de calor, descansava à sombra da cisterna. Depois pendurava roupas no varal, andava entre árvores. A filha do açougueiro Otto trazia o espírito curioso atento ao cotidiano de louças, vassouras, e nunca
compreenderia, por exemplo, a Mecânica dos Fluidos, de Bertrand Russell, ou as frases cortantes de Wittgenstein, em seu Tractatus.

Esta imagem da menina Luciana data de 1952, quando ocorre sua morte com apenas 16 anos.

A última vez que a encontrei, no beco dos Goyas, eu havia puxado um fumo louco junto ao portal da igreja de São Ignácio.

Aquela tarde, nos muquifos de sempre, também sorvi a espuma dourada de algumas cervejas Eisenbahn, e, de vez em quando, olhava para a lâmina que cortaria o virginal pescoço da filha do açougueiro Otto.


Fernando José Karl

POEMA SINGULAR

A seção POEMA SINGULAR, desta quinta-feira, traz o poema O ferrageiro de Carmona do poeta João Cabral de Melo Neto. Lembramos aos leitores que cada singular seleciona um poema de sua predileção e que tenha um significado especial na vasto universo de poemas. Já tivemos poemas selecionados por Dennis Radünz e Raquel Stolf. A escolha de hoje é do poeta Antonio Carlos Floriano, o idealizador desta coluna. Na próxima quinta-feira é a vez do poeta Fernando José Karl apresentar seu POEMA SINGULAR.


O Ferrageiro de Carmona

Um ferrageiro de Carmona que me informava de um balcão:

"Aquilo? É de ferro fundido,
foi a forma que fez, não a mão.

Só trabalho em ferro forjado
que é quando se trabalha ferro.;
então corpo a corpo com ele.;
domo-o, dobro-o, até onde quero.

O ferro fundido é sem luta,
é só derramá-lo na fôrma.
Não há nele a queda de braço
e o cara a cara de uma forja.

Existe grande diferença
do ferro forjado ao fundido.;
é uma distância tão enorme
que não pode-se medir a gritos.

Conhece a Giralda em Sevilha?
De certo subiu lá em cima.
Reparou nas flores de ferro
dos quatro jarros das esquinas?

Pois aquilo é ferro forjado.
Flores criadas numa outra língua.
Nada têm das flores de fôrma
moldadas pelas das campinas.

Dou-lhe aqui a humilde receita
ao senhor que dizem ser poeta:
O ferro não deve fundir-se,
nem a voz ter diarréia.

Forjar: domar o ferro a força,
não até uma flor já sabida,
mas ao que pode até ser flor...
se flor parece a quem o diga."

(João Cabral de Mello Neto)

quarta-feira, 11 de agosto de 2010

Uma crônica de Rubens da Cunha

UM SÁBADO QUALQUER...

Quando se fala em terrorismo pensa-se primeiro em toda aquela violência lá no outro lado do mundo, em que alguém põe uma bomba num lugar público ou transforma-se em bomba e explode. E se explode, seja por motivo político, seja por motivo religioso, não raro uma mistura dos dois motivos. Mas o terrorismo também vem em dosagens menores e pode não envolver grandes violências, pode não ir parar durante semanas na mídia, podem não aparecer especialistas de última hora debatendo o ocorrido. O terrorismo vem nas pequenas chantagens, nas manipulações, nas ameaças que fazemos, e que nos fazem, por aí a todo instante, tanto no trabalho, nas relações familiares, nas amizades. Dias desses, vi uma cena que expõe bem essa espécie de micro terror, nesse caso, disfarçado de educação. Eu fui pegar um ônibus e perto do ponto tinha ocorrido um atropelamento. Eu vi o homem deitado no chão, os paramédicos, os curiosos, o congestionamento, ainda me passaram na cabeça todos os clichês sobre a fragilidade da vida e como a morte ronda a todos. Logo o ônibus veio, lotado só pra variar, eu paro na frente de uma mulher e seu filho e ouço um trecho da conversa. A mulher dizia mais ou menos o seguinte para seu filho: “Viu o que dá não ir na igreja? Se afastar de Deus? Deus vem e zupt, leva embora para acertar contas.” Devo confessar que a mulher me aterrorizou. O garoto deveria ter uns oito ou nove anos. Usava óculos e tinha um silêncio concordante também bastante aterrorizador, ou seria aterrorizado? Não sei, talvez eu tenha ouvido a conversa fora de contexto ou tenha criado o contexto a partir do atropelamento, mas o fato é que Deus, para essa mãe, é um ser bastante vingativo, um caçador contumaz daqueles que se afastam da fé, que lhes dá a morte repentina por causa tanto do afastamento, quanto pela desobediência. Além de repetir para o filho alguns séculos de terror religioso, já o colocava na linha, um método, digamos, prático de educar uma criança, agora que as palmadas estão proibidas, toca para o terrorismo psicológico e religioso que está tudo bem. Não sei bem como esse breve, porém temerário, terrorismo da mãe vai repercutir no menino. Talvez ele se torne um religioso fanático, ou um ateu fanático, as duas coisas bastante prejudiciais, pois impedidoras de uma visão mais ampla do mundo real e do fora do mundo. Talvez ele perceba a profunda humanidade da mãe e como ela estava assustada com a ideia de morrer sem ter certeza do depois e a perdoe por num sábado qualquer lhe impor a ideia de um Deus terrível e assassino. Talvez ele repita esse discurso daqui a vinte anos para um filho, talvez ele perceba que o Deus assassino teve um filho mais afeito ao diálogo do que à punição. Descemos no terminal. Eles foram para um lado e eu para outro. Porém, o fato é que o terrorismo da mãe ficou em mim e, claro, está ecoando nas minhas sombras e sobras cristãs: e se a mulher estiver certa?

terça-feira, 10 de agosto de 2010

Um poema de Antonio Carlos Floriano



desenho o fogo da lança
o ouro marrom do bronze
coberto do verde azinhavre
cravo aflito de cruz

talvez alfange
uma adaga
uma dobradiça de Braga
Foto: Antonio Carlos Floriano

quinta-feira, 5 de agosto de 2010

FOLIA DAS FALAS: TODOS PARA ITAJAÍ

Cofiram a programação e agendem-se para o FOLIA DAS FALAS, que ocorre em Itajaí de 9 a 15 de agosto.

FOLIA DAS FALAS, um festival em que a poesia adquire o status de protagonista da vida cultural de Itajaí. São 7 dias de leituras, debates, lançamentos de livros, mas sobretudo de espaço e tempo dedicados aquilo que a humanidade mais vem precisando: poesia.
Poesia que está além dos poemas, dos autores, dos livros, um tipo de voz interior que vem, há milhares de anos, invisivelmente alimentando as nossas almas. FOLIA DAS FALAS, assim, constitui uma possibilidade inédita de apreciação de poesia na cidade de Itajaí, inserindo-a no contexto literário nacional e permitindo um momento de reflexão e formação humanística. Vejam a programação e: poesia neles, nelles!!


OFICINAS:

1- Da Poesia ao Livro Artesanal (20h/a) - Cristiano Moreira (SC)

Local: Espaço Instituto Caracol Navegantes
Horário: 18h30-21h30
Período: 16 à 20/08
Endereço: Av. João Sacavem, 160 Centro ((47)9948-4312)

2- Oficina da Palavra Selvagem(20h/a)
Fernando Karl (SC)
Local: SESC-Itajaí
Horário: 14h-18h
Período: 09 à 14/08

3- Performance a partir da poesia
Ricardo Aleixo (04h/a) (BH)
Local: SESC-Itajaí
Horário: 14h-18h
Período: 08 (on-line) e 09/08 (presencial 9h-13h30)
Inscrições pelo fone: (47)3348-9291 / https://pae.sc.gov.br/direto/Direto/CorreioBusiness?direto_tarefa=novaMensagem&email=marcelomorais@sesc-sc.com.br

PROGRAMAÇÃO

09/08 segunda-feira

Workshop: Poesia a partir da Poesia (Ricardo Aleixo)
Horário: 9h às 13h30
Local: Célio´Restaurante
MESA 1: A Literatura em Itajaí
Horário: 20h
Local: Célio`s Restaurante
Convidados de Itajaí:
Hélio Cordeiro (SC)/ Álvaro Castro(SC) / André Pinheiro(SC) / Marlene Rothbart (SC)
21h30 - Performance: Música para modelos vivos movidos a moedas (Ricardo Aleixo - BH)
Local: Galeria Municipal de Artes

10/08 terça-feira

MESA 2: literaturas
Horário: 20h
Local: Célio`s Restaurante
Convidados:
Ricardo Aleixo (BH) / Sebastião Aragão (SC) / Enzo Potel (SC)
21h: Apresentação: Os Poets (RS)

11/08 quarta-feira

MESA 3: Poesias e Novos Suportes
Horário: 20h
Local: Célio`s Restaurante
Convidados:
Clarah Averbuck (RS) / Claudio Daniel (Revista Zunai)(SP) / Carlos Schroeder (SC

22h Apresentação Musical: Chorões do Porto (SC)
Local: Célio`s Restaurante

12/08 quinta-feira

MESA 4: Algaravia
Horário: 20h30
Local: Célio`s Restaurante
Convidados:
Ronald Augusto (RS)/ Cristiano Moreira (SC) / Fernando Karl (SC)

22h Performance Telma Scherer (RS)
Local: Célio`s Restaurante

13/08 sexta-feira

MESA 5: Poesia em Periódicos
Horário: 20h
Local: Célio´s Bar
Convidados:
Suzana Scramim (SC)/ Ademir Demarchi (SP) / Dennis Radünz (SC)
22h Sarau Cooperifa (SP)
Local: Célio`s Restaurante

14/08 sábado

MESA 6: POESIA E COM-TATO
Local: Célio`s Restaurante
Horário: 20h
Convidados:
Local: Rhyana Gabech (SC) / Raquel Stolfl (SC) / Telma Scherer (RS)

22h Performance Palavra Muda com Coletivo 3ª Margem (Itajaí)
Local: Pier Café (Rua Hercílio Luz, 137)

15/08 domingo

21h Espetáculo Pequeno Inventário de Impropriedades (SC)
Cia Téspis - Itajaí
Local: Teatro Municipal de Itajaí
Edwin Smith, 1960/Casa de água
É um Chaplin ou um quartzo ou um laranjal quem vai iniciar esse capítulo? Fomos dilacerados desde o nascimento. Origo et fons. Somos apenas sopros no curtume a descansar à sombra do vendaval. Tal o Vishnu enverdecido, a epifania de plânctons revivesce dourada na nudez do pensamento, que não se turva nem com a aparição de pequenos cavalos-marinhos agrestes que vivem em suspensão nas águas salobras e que, também, são conhecidos como haloplânctons. A estrela da manhã foge do liso céu e se equilibra no cílio de Lucana. Um esgarçar de ribombo recende grosso do entrechoque de barcaças. Se os esgarços de ribombo fossem vozes, que recenderiam ou revelariam? Rinocerontes-do-mar ou o alabastrino óleo de Caab? O sono esquece na varanda da Casa de Água um espelho: astúcia da vigília, para que o invisível, afastado de ossos, nuvem, nervos, ilusão, pizicato, tractatus – fisgue-se a si mesmo no Vazio; capture, no espelho, a sensível fonte. Neste refletir, o invisível, por sua vez, transmuta-se em sopro de viração – potencia oscura –, sumindo-se num oboé e, na neblina da madrugada, é apenas neblina, nada mais.


Fernando José Karl

quarta-feira, 4 de agosto de 2010

POEMA SINGULAR

A seção POEMA SINGULAR desta quinta-feira traz um dos textos preferidos da poeta Raquel Stolf. Trata-se da intradução de Augusto de Campos do poema "a(l" de e.e.cummings. Confiram na imagem a intradução e o original. Na próxima quinta-feira a seção POEMA SINGULAR apresenta um poema selecionado por Antonio Carlos Floriano.



Uma crônica de Rubens da Cunha

JOÃO E MARIA

A manhã fria de um inverno qualquer. O silêncio dentro do carro acompanha João e Maria. Amavam-se, é certo. Quase gêmeos. Alma gêmea é certo. Mas algo se rompeu dentro dela, e como eram iguais algo imediatamente se rompeu dentro dele também. E assim estão: rompidos, mas juntos. Falta-lhes coragem para o último golpe, aquele em que a dor é maior, por mais libertadora que seja. Nos olhos se vê claramente as esperanças de que os rompimentos cicatrizarão. Maria espera que João cicatrize primeiro, pois sabe que, se ele se curar, ela será curada também. João está se esforçando. Tentou esquecer, tentou planejar o futuro, tentou reverter a dor. Mandou flores, chocolates, levou Maria a um restaurante tailandês, tirou dias de folga, foram para a serra, cavalgaram, riram diante de uma cachoeira chamada Véu-de-Noiva, lembraram-se de Maria de branco na igreja. João estava também tão branco que quase desmaiou. Rememoraram o passado, a vida que tiveram, tudo o que construíram. João perguntou a Maria se tudo isso tinha melhorado o rompimento. Ela quis mentir, mas sabia que se mentisse ele saberia, pois nele o rompimento também não teria melhorado. Quando voltaram da viagem a dor permaneceu. Os gestos ficaram mais confusos, mais constrangedores. Maria também se esforçou. Sabia que era a mais culpada, pois nela é que havia começado o rompimento. Nela deu-se o primeiro passo para esse momento estranho, esse abismo de silêncio e morte que se instaurou nas suas vidas. Como encher esse abismo com a carne amorosa de antes? Como reconstituir o tecido, as células, as moléculas do que eram? Maria pregou um sorriso na cara, adestrou as mãos para carinhos mais firmes na cara e nos baixos de João. Encostou-se mais a ele na tentativa de serem gêmeos de novo. Por uns dias, os exercícios de remendar o rompimento pareciam estar dando certo, parecia que tudo seria natural de novo, leve e rápido como sempre foi. Quase telepático como sempre foi. Mas João, apesar de entender os esforços de Maria, estava cada vez mais resignado. Na verdade, começou até a ficar afoito com a ideia de ser só novamente, de não ter que pensar sempre duplamente. Talvez com um pouco de coragem fosse ele quem desse o último golpe e dissesse é hora de acabar, prender a respiração, contar até três, e romper. Talvez pudessem aguentar a dor, talvez pudessem sobreviver rompidos, pois como estavam pouco estavam vivendo. A coragem antevista não veio. Não se fez corpo no corpo de João. Maria também não deu espaço a ideia de viver sem ele. Estão juntos, talvez um filho, pensaram, um cão, um gato, um peixe, uma tartaruga ou iguana, qualquer coisa outra que fosse viva. Nada se efetivava firme e possível. Nada se fazia matéria para encher o abismo do rompimento. Numa manhã fria de um inverno qualquer, João e Maria dentro do carro, já sabem o que fazer, já sabem como remendar o que se rompeu. Numa curva qualquer, os corpos e as almas silenciosas de João e Maria voltaram a ser uma coisa só e preencheram o abismo.