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quinta-feira, 29 de dezembro de 2011

Poema inacabado para Maria do Rocio

Poderia ter amado Maria do Rocio

Durante aquela hora em que ficamos nus

A teria amado enquanto se despia

E seus pelos mais íntimos

Se avermelhavam

Na luz do verão do nosso quarto

Fiquei com medo de Maria do Rocio

De seus dentes abertos de mulher mentirosa

Da paixão incendiária

Que por ela sentia

Fogo devorando o carbono

Para se revelar a cor

Dos cabelos rúbios

dos olhos azuis

A pele branca da mulher de 24 anos

A voz que sopra meu ouvido até hoje

A paixão dos beijos mais ferozes

Do gozo mais livre

Naquele corpo que a luz

Permitia olhar

Poderia ter amado Maria do Rocio

Andado pela Praça dos Leões de mãos dadas

Com ela pedia

Sendo mais que um menino para ela

Um mês ela se foi e eu não sei para onde

Nunca mais nada soube

Sobre o paradeiro de Maria do Rocio

Nunca mais o riso e os dentes separados

A luz de sua nudez em meu sótão

Foi bom ter esquecido aquele corpo

Foi bom nunca mais ter visto seus olhos

E seus cabelos e seu rosto e os pelos de seu braço

Seria desepero encontrá-la agora

Num site de buscas

Num sala de bate papo

Tão distantes daqueles dias sem fim

Do pouco dinheiro e muita esperança

Da paixão sem medidas que eu sentia

Por ela

E que ela sentia por mim

Talvez sem ter me dado conta

Tenhamos mesmo nos amado

Naquela hora em que ficamos nus

E nos abraçamos em pé e nos beijamos

Antes do amor


Antonio Carlos Floriano

quarta-feira, 28 de dezembro de 2011

Artaud.



Artaud, no quarto escuro, relança sua alma para a tempestade que o criou, sua alma que é um Vesúvio. O Deus devia ser curado de continuamente criar anchovas, chuvas.

O ópio da palavra arrepia o tímpano do intruso: o escuro lava-se com a tempestade: tempestade que nunca envelhece. É difícil quando tudo nos leva a dormir, a fechar os olhos sem saber mais para que servem essas bagas de chuva debaixo das pálpebras fechadas.

O intruso vocifera:“Quero a arte agindo não apenas como reflexo, mas como força: uma força vital, que não se espelhe em nada”.

A palavra, então força ativa, que parte da destruição das aparências para chegar ao espírito. O intruso filosofa: “Alcançar plenamente o espírito, dizer a alma do ser humano, talvez fosse impossível”.

O vazio pode, se quiser, abandonar-se na rede da varanda: para vigorar em si um mafuá de malungo. Todo sentimento poderoso provoca em nós a idéia do vazio: a linguagem clara e lógica que impede esse vazio impede também que a expressão poética apareça no pensamento.

As ervas antes do vento: o antes antes do vento e das ervas: o vento e as ervas mascaram o que desejariam desvelar: “A linguagem clara e lógica inibe o vazio”.

A própria impossibilidade é uma phonte criativa. O intruso recita Fernando Pessoa: “O quem em mim sente está pensando”.

É por dentro da chuva que ele anda.


Fernando José Karl

Dorothea Lange, 1954



O leque branco de Carmínia não abana mais. Ela morreu faz uma hora e só tinha 12 anos. Do aquário, instalado na sala de sua casa, as carpas espiam o caixão de Carmínia entre quatro círios.

Por vezes uma rajada de vento dá uma rasante, primeiro nas cortinas, depois nos longos cabelos negros da menina Carmínia; inclinam-se as grandes árvores do jardim por causa do vento, ao mesmo tempo em que as pessoas abaixam a cabeça para o último adeus à ela.

As mãos de Carmínia nunca mais na asa da xícara, no dorso do gato, no regador para respingar as plantas; agora, a tristeza acaba de entrar no jardim de Carmínia e passa diante das grandes árvores; com os dedos cruzados na altura dos pulmões, a tristeza contempla as pálpebras da morta, aquela a quem o verão queimou, a quem o inverno gelou; o pai da menina, próximo ao grande aquário na sala, escreve com a espinha dorsal de um peixe sobre a tabuinha de argila, enquanto palmeiras vergam o ar com suas ramagens longas; e parece que foge das coisas algo que confunde e aviva.

Eis senão quando um vendaval circunda feérico a casa de Carmínia e as pessoas, em torno do caixão dela, seguram-se onde podem. Um é arremessado para as águas do grande aquário e as carpas devoram seus olhos; outro é lançado contra a cristaleira e cai mortalmente ferido pelos cacos; o padre me confidencia o seu nome, Barrabás Motta: ele é guardião do fogo e, durante a oração de entrega do corpo, empunha o guarda-sol de seda branca que protege a pele sensível de Carmínia.

Quando o caixão de Carmínia passa, todos a cumprimentam maquinalmente; um velho que transita, de barbas venerandas, com os dentes caninos à mostra, resmunga qualquer coisa, traz na mão uma vara de bambu em que pousam rinocerontes domesticados.

As ruas assemelham-se a largos caminhos de aldeia e quase sempre se caminha ao comprido de um muro, donde escapam ramos negros de sicômoros.



Fernando José Karl


Ver o blog

www.oelixirdaslinhas.blogspot.com

MEU IDEAL SERIAESCREVER


Meu ideal seria escrever uma história tão engraçada que aquela moça que está doente naquela casa cinzenta quando lesse minha história no jornal risse, risse tanto que chegasse a chorar e dissesse -- "ai meu Deus, que história mais engraçada!". E então a contasse para a cozinheira e telefonasse para duas ou três amigas para contar a história; e todos a quem ela contasse rissem muito e ficassem alegremente espantados de vê-la tão alegre. Ah, que minha história fosse como um raio de sol, irresistivelmente louro, quente, vivo, em sua vida de moça reclusa, enlutada, doente. Que ela mesma ficasse admirada ouvindo o próprio riso, e depois repetisse para si própria -- "mas essa história é mesmo muito engraçada!".

Que um casal que estivesse em casa mal-humorado, o marido bastante aborrecido com a mulher, a mulher bastante irritada com o marido, que esse casal também fosse atingido pela minha história. O marido a leria e começaria a rir, o que aumentaria a irritação da mulher. Mas depois que esta, apesar de sua má vontade, tomasse conhecimento da história, ela também risse muito, e ficassem os dois rindo sem poder olhar um para o outro sem rir mais; e que um, ouvindo aquele riso do outro, se lembrasse do alegre tempo de namoro, e reencontrassem os dois a alegria perdida de estarem juntos.

Que nas cadeias, nos hospitais, em todas as salas de espera a minha história chegasse -- e tão fascinante de graça, tão irresistível, tão colorida e tão pura que todos limpassem seu coração com lágrimas de alegria; que o comissário do distrito, depois de ler minha história, mandasse soltar aqueles bêbados e também aqueles pobres mulheres colhidas na calçada e lhes dissesse -- "por favor, se comportem, que diabo! Eu não gosto de prender ninguém!" . E que assim todos tratassem melhor seus empregados, seus dependentes e seus semelhantes em alegre e espontânea homenagem à minha história.

E que ela aos poucos se espalhasse pelo mundo e fosse contada de mil maneiras, e fosse atribuída a um persa, na Nigéria, a um australiano, em Dublin, a um japonês, em Chicago -- mas que em todas as línguas ela guardasse a sua frescura, a sua pureza, o seu encanto surpreendente; e que no fundo de uma aldeia da China, um chinês muito pobre, muito sábio e muito velho dissesse: "Nunca ouvi uma história assim tão engraçada e tão boa em toda a minha vida; valeu a pena ter vivido até hoje para ouvi-la; essa história não pode ter sido inventada por nenhum homem, foi com certeza algum anjo tagarela que a contou aos ouvidos de um santo que dormia, e que ele pensou que já estivesse morto; sim, deve ser uma história do céu que se filtrou por acaso até nosso conhecimento; é divina".

E quando todos me perguntassem -- "mas de onde é que você tirou essa história?" -- eu responderia que ela não é minha, que eu a ouvi por acaso na rua, de um desconhecido que a contava a outro desconhecido, e que por sinal começara a contar assim: "Ontem ouvi um sujeito contar uma história...".

E eu esconderia completamente a humilde verdade: que eu inventei toda a minha história em um só segundo, quando pensei na tristeza daquela moça que está doente, que sempre está doente e sempre está de luto e sozinha naquela pequena casa cinzenta de meu bairro.


Rubem Braga

quinta-feira, 22 de dezembro de 2011

Organiza o Natal


Carlos Drummond de Andrade


Alguém observou que cada vez mais o ano se compõe de 10 meses; imperfeitamente embora, o resto é Natal. É possível que, com o tempo, essa divisão se inverta: 10 meses de Natal e 2 meses de ano vulgarmente dito. E não parece absurdo imaginar que, pelo desenvolvimento da linha, e pela melhoria do homem, o ano inteiro se converta em Natal, abolindo-se a era civil, com suas obrigações enfadonhas ou malignas. Será bom.

Então nos amaremos e nos desejaremos felicidades ininterruptamente, de manhã à noite, de uma rua a outra, de continente a continente, de cortina de ferro à cortina de nylon — sem cortinas. Governo e oposição, neutros, super e subdesenvolvidos, marcianos, bichos, plantas entrarão em regime de fraternidade. Os objetos se impregnarão de espírito natalino, e veremos o desenho animado, reino da crueldade, transposto para o reino do amor: a máquina de lavar roupa abraçada ao flamboyant, núpcias da flauta e do ovo, a betoneira com o sagüi ou com o vestido de baile. E o supra-realismo, justificado espiritualmente, será uma chave para o mundo.

Completado o ciclo histórico, os bens serão repartidos por si mesmos entre nossos irmãos, isto é, com todos os viventes e elementos da terra, água, ar e alma. Não haverá mais cartas de cobrança, de descompostura nem de suicídio. O correio só transportará correspondência gentil, de preferência postais de Chagall, em que noivos e burrinhos circulam na atmosfera, pastando flores; toda pintura, inclusive o borrão, estará a serviço do entendimento afetuoso. A crítica de arte se dissolverá jovialmente, a menos que prefira tomar a forma de um sininho cristalino, a badalar sem erudição nem pretensão, celebrando o Advento.

A poesia escrita se identificará com o perfume das moitas antes do amanhecer, despojando-se do uso do som. Para que livros? perguntará um anjo e, sorrindo, mostrará a terra impressa com as tintas do sol e das galáxias, aberta à maneira de um livro.

A música permanecerá a mesma, tal qual Palestrina e Mozart a deixaram; equívocos e divertimentos musicais serão arquivados, sem humilhação para ninguém.

Com economia para os povos desaparecerão suavemente classes armadas e semi-armadas, repartições arrecadadoras, polícia e fiscais de toda espécie. Uma palavra será descoberta no dicionário: paz.

O trabalho deixará de ser imposição para constituir o sentido natural da vida, sob a jurisdição desses incansáveis trabalhadores, que são os lírios do campo. Salário de cada um: a alegria que tiver merecido. Nem juntas de conciliação nem tribunais de justiça, pois tudo estará conciliado na ordem do amor.

Todo mundo se rirá do dinheiro e das arcas que o guardavam, e que passarão a depósito de doces, para visitas. Haverá dois jardins para cada habitante, um exterior, outro interior, comunicando-se por um atalho invisível.

A morte não será procurada nem esquivada, e o homem compreenderá a existência da noite, como já compreendera a da manhã.

O mundo será administrado exclusivamente pelas crianças, e elas farão o que bem entenderem das restantes instituições caducas, a Universidade inclusive.

E será Natal para sempre.


segunda-feira, 19 de dezembro de 2011

O OLHO ESQUERDO DO PAPAI NOEL


Vive nos trópicos. Nada de gelo. Não gosta sequer das decorações bregas e fora de contexto espalhadas pela cidade. Não tem roupa vermelha e branca. Não carrega o saco cheio de presentes. Anda mesmo é de saco cheio da hipocrisia iluminada do natal. Ele não nasceu para presentear. Nasceu com um olho doente. O olho esquerdo. Esse olho vive a cidade de outro modo. Um olho que nasceu para dar luz aos cantos obscuros da cidade.

Não desce chaminé. Gosta mais das pernas, sempre abertas, das meninas da Hercílio Luz. Sempre que passa por ali rouba um olhar, um toque e suspira umas mentiras nas pernas dessa gente do submundo que ele tanto ama. Amasia-se com facilidade com essas moças da vida. Ele é uma espécie de avesso à moda natalina. Gosta mesmo das tristezas, das cicatrizes e das insuficiências da carne. Ele odeia pessoas felizes e que sorriem por tudo e nada.

Vive observando a filosofia dos velhinhos que jogam seu dominó diariamente na Praça XV. Acha mesmo que ali está o retorno à infância. O lúdico aparece sempre revestido de cicatrizes nas retinas e nas mãos trêmulas a dar o próximo lance de vida. E como a vida passa ali. Sabe muito dos bares também. Aos domingos costuma frequentar o Bar do Fifa e ver com tristeza as portas cerradas do Mercadinho Ana Paula. Costuma beber bastante para aliviar a dor de estar no mundo e a dor de ser confundido com um bicho inútil e fútil como o Papai Noel.

Pensa mesmo no absurdo de exercer seu olho direito no dia 25 de dezembro. De repente todo mundo se lembra dele. E depois tudo se esvai. E lá vai ele, durante todo o ano, conservar a tristeza do olho esquerdo pelos cantinhos não iluminados da cidade. Durante todo o ano ele vê o mundo pelos olhares dos vagabundos, travestis, favelados, prostitutas, mendigos, crianças abandonadas, cães perdidos, loucos e bêbados. É dessa gente ordinária que vem sua luz. Seu natal é esse carrossel de vidas fraturadas.

Sabe porque diabos Édipo arrancou os olhos. É nessa escuridão que vive o olho esquerdo do Papai Noel. Onde não há botas, roupas, luzes artificiais, cantigas, sorrisos por princípio e toda sorte de máscaras que se cria nesta época do ano.

Não entende como toda essa gente pode festejar e comprar presentes aos montes sob a tristeza da letra de Assis Valente. Incrédulo, sob as luzes escuras do terminal Rita Maria, come com os mendigos e diz a si mesmo: “Eu pensei que todo mundo/fosse filho de Papai Noel.” Depois arranca o olho direito e enterra sob a escultura do Paulo de Siqueira que exala a ferrugem de nossa hipocrisia.



Marco Vasques

quarta-feira, 14 de dezembro de 2011

A poesia anda beliscando meu anzol.

Hokusai (1760-1839)


Meu nome é Egeu Karwostoniek e sou filólogo erudito. Só vi o mar em filmes antigos. Não, com certeza não foi em minha honra que esse mar – que se vê nos mapas e lanha as pedras do litoral grego –, se denomina Egeu.

Minha memória se enfraqueceu pelo muito sofrimento. Não sei que língua falo, nem onde moro, nem se algum dia cheguei a existir. O único que sei é que me chamo Egeu, porque está escrito na tatuagem que fiz na nuca. Se no bar Bürgerkeller me flagram a sorrir, não se iludam: é a foice da morte que me faz cócegas.

Em cada um de nós há cousas do arco-da-velha; sabe-se, igualmente, que o papel aceita tudo o que nele se grafa. O que reforça o consolo e cai como bálsamo no cotidiano aviltante é que, apesar das agruras, ainda não perdi o costume de ser esse voluptuoso espectador da mediocridade humana – eu o mais medíocre de todos –, de encarnar o analista implacável das almas entorpecidas pelo hábito, das almas sem acesso a qualquer forma de regeneração moral.

No meu brasão está escrito com letras de gelo: és pó e ao pó voltarás. Com essa premissa constante, nas noites deito minha cabeça no travesseiro e grito a plenos pulmões como naquela pintura de Münch. De nada adianta eu possuir casarão com piscina e buganvílias dependuradas, com cactos rentes ao muro, de nada adianta, mesmo, a prataria, a cristaleira, a minha polpuda conta bancária com mais de 10 milhões de dólares, nem essa BMW que eu guardo na garagem, porque, sabem todos, eu, Egeu Karwostoniek, o que mais desejo é o mar.

No grande aquário que tenho crio enguias: grossas como punhos. Quando estou com raiva de alguma coisa, capturo uma delas, que se estorce no arpão. Tenho um aquário, como já disse, e nunca fui varão consular, nunca fui nada – nem coroinha em missa pagã – costumo, de madrugada, escutar dentro de minha cabeça uma voz insonora que diz:
“Escute: olhe para mim: preciso tanto que me escute com a mesma atenção ansiosa com que ficas atenta aos apelos de um bolero no rádio nas noites chuvosas”.

Sempre quis, não nego, ser o delfim eleito da deusa; por isso me lavo nas lavas vulcânicas dela que, a cada cada vez, torna-se mais vazia. Depois que fiz um comentário respeitoso acerca da deusa Ânvara, foi-me ordenado que eu purgasse a língua e não voltasse a pronunciar jamais tal injúria. Para quem pratica o Zen, palavras como “sagrado” ou “deusa” constituem armadilhas.

O que eu, Egeu Karwostoniek, sou? Filólogo erudito e, nas horas vagas, um copo de de neve no forno quente: a essência da vida sente-se, não se pensa: se esta manhã venta outra vez, rasguem as escrituras, as mantras, os koans, quebrem as estátuas do senhor Buddha, porque o senhor Buddha disse, certo domingo, sentado sob uma árvore no parque de Sarnath: “Se vós, discípulos amados, não destruírem minhas estátuas, eu as destruirei por vocês”.

Eu aproximo o tímpano à árida folha de papel, na ávida tentativa de escutar aquela outra música que as palavras guardam em seu relicário tormentoso. Há um caldo de sombra em cada palavra que pronunciamos e que, sob a aparência de ser fria, nada mais é que uma presença insidiosa do desejo: esse cerne da magia. Apenas aquele que conseguir curar a surdez do assassino reabilita-se diante da música virgem; música essa que salva, do esquecimento, os fios do sonho.

Eu, com obstinado rigor, não venero nunca as palavras, prefiro convidá-las para o concílio natural das formas – e as torço e retorço como um ferrageiro lírico – e sugiro às palavras (nunca imponho) que elas sigam, com seus visgos e epifanias, as vias do fogo e as cintilações do acaso. As palavras: sereias visíveis: devemos escutá-las, da mesma maneira que Ulisses – que nunca existiu – as escutou, agarrado ao mastro da mais intensa vigília, sem ceder a seus caprichos de sereias e desvios de palavras.

Fui convidado a um congresso de lingüística em Bucaramanga, mas pego por engano um avião errado – da Air Cálamo – e só noto isso no momento do desembarque, pois dormi durante o percurso inteiro. O aeroporto onde pousa o avião da Air Cálamo é circundado com muitas palmeiras ao vento e perto do mar.

Não obstante eu ser poliglota, não consigo fazer-me entender pelo gerente do Hotel Bay no qual me hospedo. Sei que se chama Bay porque li na placa. Não sei em que lugar estou – Bucaramanga que não é: um dos funcionários do hotel me conduz ao quarto no quinto andar. Pergunto que vilarejo é aquele em que me encontro e ele me responde:
“Aqui é a Villa de Gegenwelt. O senhor morreu durante o sono. O avião em que viajava caiu no mar, sem nenhum sobrevivente”.

Eu ainda insisto:
“Mas como então o avião desembarcou no aeroporto?”

E ele:
“Tudo isto é apenas um sonho seu”.

Em alemão, Gegenwelt significa antimundo e, sendo antimundo, é o mesmo que dizer que Gegenwelt é um lugar imaginário, mas um imaginário que irrompe em contradição ao fluxo absoluto de todas as coisas; fluxo esse que, sem qualquer sombra de dúvida, sempre nos arrasta à cova fria do aterro dos incuráveis ou cemitério.

Entretanto, para preencher essa consciência vazia e transformar esse locus onde me encontro em consciência inscrita no intuitivo, é indiferente que eu forme uma imagem dessa Villa de Gegenwelt ou olhe uma Villa de Gegenwelt em carne e osso. Sem crer numa só palavra do que me diz o funcionário do hotel, me resigno a pernoitar por aqui mesmo. Leio Sophia de Mello Breyner Andresen, depois de tomar uma boa ducha:
"Sou o único homem a bordo do meu barco. Os outros são os monstros que não falam, tigres e ursos que amarrei aos remos, e o meu desprezo reina sobre o mar. E há momentos que são quase esquecimento numa doçura imensa de regresso. O meu desejo é o rastro que ficou das aves. E nunca acordo deste sonho e nunca durmo".

Antes de ser engolfado pelas névoas do sono, me apalpo e é com assombro que percebo que minha pele é da mesma matéria do sonho. Se estou mesmo morto, logo concluo: sou menos que o cu de um besouro.

Durmo, segundo o dito bíblico, três dias e três noites seguidas.

Quando retorno a mim, após a ressurreição da carne no terceiro dia, me encontro deitado e imóvel no meio de uma cama, sem outro pensamento que não seja o de respirar, a grandes sorvos, tudo o que se pareça com oxigênio, ou, em outras palavras, o que mais preciso agora é de ar, sim, todo o ar que houver nesse quarto do Hotel Bay.

E isso de ter perdido a vida aconteceu sem que eu tivesse a mínima escolha. Se, de fato, ainda permaneço vivo, porque tudo o que vejo e toco é apenas um sonho meu, que mal poderia haver em ir até o fundo deste sonho?

Não é sede o que eu tenho – o que eu tenho é nervos e, porque sou romântico e ninguém é de ferro, guardo alguma neve de romance russo na alma. Não é sede o que eu tenho, senão ânsia de deitar num refrescado recanto com arruído de folhas, nessa proteção de uma pouca de mata, e deixar a cabeça retomar o que é seu, e pensar com tino o que tenho para suceder, o relembrar alguma coisa que o sol andou a frigir, alguma coisa num quase perdoar-se nem sabe aonde de tão distante.

Levanto da cama, tomo um banho e me dirijo ao refeitório do hotel Bay e provo, no desjejum, do café e do melão. A impossibilidade de entendimento entre mim e as pessoas, nesse lugarejo ainda desconhecido, continua, mesmo já sendo o dia seguinte.

Todo o pensar e o conhecer, num antimundo imaginário, tem como função estancar o fluxus heraclitiano. E porque do antimundo imaginário se deduz o seu oposto – o mundo em que vivemos – é que se pode desvendar o impensável inaudito do processo vital. Inaudito: que nunca se ouviu; extraordinário, incrível. É como se também pensássemos que o mercúrio dos alquimistas (ou unicórnio) afogasse em si todos os oponentes sólidos que encontrasse pela frente: pedra, chuva, rinoceronte, louça, e todos os outros objetos que compõem a tessitura do que vemos.

Aquilo que flui nas coisas não tolera os órgãos que propiciam nossa vida: coração, pulmões, cérebro – por isso os destrói sem piedade. Abre-se de repente a terrível câmara da verdade: só através do ato de fingir é que escapamos dessa arquitetura da destruição que se chama Corpo.

A verdade última do fluxo das coisas não tolera nossos gânglios, ossos, veias coronárias, laringe, enfim, tudo o que dá viço ao nosso Corpo. A verdade última considera um erro a rês e a rosa, um erro o vento e a pedra, um erro a sombra e a luz, mas nunca pode ser um erro, para a verdade última, o uso da Palavra: esse bibelô de inanidade sonora qaundo jaz em estado de dicionário. O uso da Palavra é que possibilita à Palavra respirar.

Pode haver algo mais fecundo que o acaso?

Não é o poeta quem diz a palavra que, sendo mistério, é distante. Renunciar ao antigo modo como usava a palavra entristece o poeta? Pois esta renúncia é o poder mais elevado da palavra. E o que dizia o antigo modo de usar a palavra? Que algo pudesse existir sem ela. E o que diz o modo novo? Diz que nenhuma coisa é onde falta, falha, quebra a palavra. E coisa, o que é? Aquilo que, de alguma maneira, é. Nessa acepção, até deus é uma coisa. É difícil encontrar a palavra para a essência da linguagem. Somente quando se encontra a palavra para a coisa, a coisa é coisa. Não será essa coisa, o que e como ela é, algo em nome de seu nome? O poeta não diz, e, reverente, escuta a palavra dizer-se. O poeta só não renuncia ao mistério da palavra, esta jóia delicada e preciosa, que não pertence a este mundo nem ao outro.


O eu é uma ficção. Porque não suportamos a dinâmica dos acontecimentos autônomos, inventamos um autor para as ações: o eu é essa invenção. Mas o ato de pensar, baixo este céu que me arrebata, é que me permite dizer eu.

Esse lugarejo, que a partir de agora chamarei Villa de Gegenwelt, algumas pessoas – quiçá 22 – tecem loas, sem cessar, ao campo do Outro (ou campo da Palavra). As outras pessoas – talvez 5 mil – desprezam a Palavra e, por isso, se decompõem no fedor de uma agonia mais ou menos lenta que corrói e liquefaz suas entranhas. Com os crânios raspados, cobertos de crostas purulentas, os 5 mil entram e saem de uma igreja de tijolos brancos, ferem joelhos e rezam sem cessar – à procura do deus, que existe mesmo quando não há, porque não haver deus é um deus também –, rezam, com as cabeças sobre um pescoço descarnado, reduzidos a uma espécie de máscara triste.

Os 5 mil não querem saber que a Palavra é essa fina matéria de toda certeza – a Palavra, que também é um cristal, mas sonoro – e que dela se extrái o mais puro óleo do leque de pavoa, e que o ar que resulta do abano desse leque pode expurgar da Villa de Gegenwelt todo grão de insânia.

Os que respiram nesse lugar são inconsistentes – pois não somos todos precários? – por esse motivo deviam pressentir que tudo o que pensam e imaginam jamais vai conseguir tornar-se objeto da consciência, a não ser através de uma Ideia (Vorstellung) que a representa. Para reforçar meu pensamento, gasto os olhos na página de um livro de Hermann Hesse:
"Nosso deus se chama Abraxas e é deus e demônio a um só tempo. Sintetiza em si o mundo luminoso e o obscuro. Abraxas nada tem a opor a qualquer de teus pensamentos e a qualquer de teus sonhos. Não te esqueças disso. Mas abandonar-te-á quando chegares a ser normal e irrepreensível. Abandonar-te-á em busca de outro cadinho onde possa cozer seus pensamentos".

A língua viva da Villa de Gegenwelt; a língua dessa terra – ilha, continente? – não se assemelha a nenhuma das que eu, como filólogo, conheço a fundo ou superficialmente. Até onde for possível, tentarei penetrar a linguagem desse lugar imerso no mais trevoso enigma.

Para me subtrair a todas as amarguras de estar aqui na Villa de Gegenwelt, que ainda não sei onde fica, eu me elevo à contemplação puramente objetiva das pessoas que aqui respiram e também dos objetos que posso ver, tocar, escutar – uma céu, uma xícara, um adágio –, criando assim a ilusão de que apenas eles estão presentes e não eu. Aí, despojado do eu sofredor, me torno – como sujeito puro do conhecimento – completamente uno com aquelas pessoas e objetos, e, assim como a minha miséria lhes é estranha, do mesmo modo será estranha, por estes momentos, a mim. Somente o mundo da representação perdura: o mundo como pulsão (objeto jamais fixável feito de pura luz invisível) desapareceu.

Diante da sacralidade aterradora da noite e dos astros, intuo que o princípio do prazer se encontra do lado do fictício, e é esse princípio de prazer que faz com que seus habitantes busquem o retorno de um signo envolto num “mel de excelente qualidade”. E não se esquecem de aguardar, em todas as coisas, o silêncio que antecede o vento nas ervas.

Consigo resgatar, em meio a uns pedaços de ópera bufa, o mais fino acorde de cristal contra o desencantamento do mundo, contra o senso burguês de economia, contra o sal amargo que nos oferecem os donos do poder, contra a rotina monótona que entorpece as forças da consciência.

É preciso quebrar o poder dos destinos naturais.


Fernando José Karl



segunda-feira, 12 de dezembro de 2011

EVOCAÇÕES

Marco Vasques


Cruz e Sousa vem recebendo, muito justamente, uma série de homenagens e eventos em torno de sua vida e obra. Claro que muita coisa dita acerca dele não passa de obviedades. Foi pobre. Foi negro. Foi gênio. Foi incompreendido. E por aí vai o rosário. Em absoluto, pouco mudou: continuamos uma sociedade pobre e com um índice ridículo de concentração de renda; negamos, de forma grotesca, nossas origens africanas; somos preconceituosos; ainda não compreendemos nossos artistas; e muitas crianças, jovens, adultos e velhos morrem, neste exato momento, na mísera miséria.
Do poeta ficou uma obra gingante que vem estimulando outros artistas em suas criações. A mais nova obra de arte provocada pela arte de Cruz e Sousa chama-se “Evocações”. Uma peça teatral dirigida pela argentina Andrea Ojeda e com uma atriz-iluminação chamada Luiza Lorenz.
Lorenz, que vive ali em Santo Antônio, esteve alguns meses na Argentina, com a Périplo, Compañia Teatral, compondo essa partitura teatral de inominável beleza. Ela entrou no abismo do verbo. A poesia de Cruz e Sousa na voz-corpo de Lorenz é voo de pássaro se debatendo na escuridão. É perturbação dos sentidos. É iluminação da palavra, do corpo. A fusão do verbo, da voz, do corpo e a movimentação cênica resultam num equilíbrio de sopro e silêncio, de Dioniso e Apolo.
São raríssimos os atores que conseguem carregar a poesia para o palco. Isso se dá pela dificuldade de se compor uma dramaturgia que permita a plena realização da ação, do movimento e da palavra. “Evocações” tem uma dramaturgia impecável centrada na prosa do bardo catarinense e faz um breve percurso biográfico. Tudo em “Evocações” é contido, na medida correta e sem exageros.
O cenário é composto por um baú-esquife, por três vestimentas-fantasmas e um círculo de pétalas de flores que demarca os outros signos cênicos. É nesse ambiente que Lorenz vai da linguagem do clown à atuação minimalista. Passa pela atmosfera expressionista e pelo gótico e nos comove profundamente com uma atuação, com sua iluminação.
A apresentação, realizada no Palácio Cruz e Sousa, nos jogou num campo magnético ígneo e ao público “era mister atravessar a zona incendiada; porém a zona era muito mais extensa do que na realidade se julgava.” “Evocações”, o espetáculo, nos empurra para esta “zona incendiada” e ficamos, continuando com as palavras de Cruz e Sousa, como “os viajantes, batidos, acossados de pânico, lívidos, ansiosos, como se acabássemos de ser desenterrados vivos”. Fomos soterrados e levados ao fogo como se queimados pelo gelo.

domingo, 11 de dezembro de 2011

Leitura de Poesia em Santiago

Na sexta feira dia 02 de dezembro fomos convidados para uma leitura de poesia em uma bar. Até o dia da leitura não sabia onde era. O bar se chama Estação Terminal. Um bar Underground no centro de Santiago, em um casarão antigo. No terceiro andar acontecem as leituras às sextas feiras. estava lotado. O evento era organizado por Angela (só sei isso) e era transmitido para web ao vivo.Patríca Moreira, Cristiano Moreira, Andrés Ajens, Marcelo Villena e André Menard


Lançamento de Apartados no Chile

Como pensar a condição da literatura americana atualmente? Há como pensar ainda em América Latina? Os bordes estão muito flexíveis, o vestido da menina já não serve, ela cresceu, mesmo que ainda estejamos apartados, somos uma américa, com toda diferença possível.
O projeto APARTADOS, surgiu para ajudar a pensar e experimentar estes bordes. Com um autor chileno, Rodrigo Naranjo, tradutores, brsileiro e peruano, Cristiano Moreira e Miguel A. S. Rodriguez, um artista visual chileno radicado em Buenos Aires, Jorge Opazo (ou Jorge Quien), se armou a tradução e edição bilíngue sacadaso por uma parceria entre a Papa terra editora, deste do Brasil e a La Cebra deBuenos Aires do Cristóbal Thayer.

Fomos ao Chile para participar do I Cooquio Internacional Archivo, politica y escrituras e para lançar o APARTADOS.Antes uma escala em Porto Alegre para uma conversa com os poetas Denise Freitas e Ronald Augusto.


Rodrigo Naranjo, Felipe Larrea, Cristiano Moreira, o poeta chileno Andrés Ajens e o poeta boliviano MArcelo Villena.
Lançamento de APARTADOS
Cristiano Moreira, tradutor e editora da Papa Terra, o autor Rodrigo Naranjo, o filósofo e tradutor Alejandro Madrid
(que fez comentários sobre o livro) e Cristóbal Thayer, editor da La Cebra.




Poema de Jaime Saenz

Como una luz

Llegada la hora en que el astro se apague,
quedarán mis ojos en los aires que contigo fulguraban
Silenciosamente y como una luz
reposa en mi camino
la transparencia del olvido.

Tu aliento me devuelve a la espera y a la tristeza de la tierra,
no te apartes del caer de la tarde
-no me dejes descubrir sino detrás de ti
lo que tengo todavía que morir.

Como uma Luz

Chegada a hora em que o astro de apaga,

penderão meus olhos nos ares que contigo fulguravam.

Silenciosamente e com uma luz

repousa em meu caminho

a transparência do esquecido.

Teu alimento me devolve à espera e à tristeza da terra,

não te separes ao cair da tarde

-não me deixes descobrir, senão depois de ti

o que tenho ainda que morrer

Jaime Saenz

Trad. Cristiano Moreira