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quinta-feira, 28 de janeiro de 2010

Poema de Cristiano Moreira

A infância do Pife

a infância do pife?

sim, é quando

as cartas

nas mãos nas cartas nas

lançadas antes

o olho no vôo dos naipes


(mãos soltam cartas)


sobre a boina do valete

a copa acopla sombras

umas nas outras


a infância do pife?


sim, é quando as cartas voltam

cirandam, se escondem

(carta pendurada, balançante)

já não fulguram

do esconso germinam

prosódia, tonturas, . , palavra , noite

pálpebras, pálpebras

incansavelmente.


a infância do pife?

sim.


corta aí.


Escrever Bem - Walter Benjamin

O bom escritor não diz mais do que pensa. E isso é muito importante. É sabido que o dizer não é apenas a expressão do pensamento, mas também a sua realização. Do mesmo modo, o caminhar não é apenas a expressão do desejo de alcançar uma meta, mas também a sua realização - faça justiça à meta ou se perca, luxuriante e imprecias, no desejo - depende do treinamento de quem está a caminho. Quanto mais mantiver a disciplina e evitar os movimentos supérfluos, desgastantes e oscilantes, tanto mais apropriada será a a sua atuação. Ao mau escritor acorrem muitas coisas, e nisso se gasta tanto quanto o mau corredor não treinado nos movimentos indolentes e gesticulados dos músculos. Mas exatamente por isso nunca pode dizer sobriamente o que pensa. É dom do bom escritor, com seu estilo, conceder ao pensamento o espetáculo oferecido por um corpo gracioso e bem treinado. Nunca diz mais do que pensou. Por isso, o seu escrito não reverte em favor dele mesmo, mas daquilo que quer dizer.

Walter Benjamin in: Rua de Mão Única.ed Brasiliense, p. 274

quarta-feira, 27 de janeiro de 2010

Uma crônica de Marco Vasques

UMA ESTRELA NA SOLIDÃO

Estar próximo das minorias exige abandono de si mesmo. Não basta ver o homem de expressão triste e olhar cabisbaixo passar com o carrinho cheio de papelão, latas e um cachorro, igualmente desolado e triste. O coração e o pensamento têm que navegar com ele até não sermos mais um passante vendo uma paisagem infinda da urbanidade. É preciso ser o homem, estar no lugar dele para não vivermos amorfos de ternura e de comprometimento. Aquela mulher debaixo da marquise carrega muito de nós. Aquele menino no semáforo (sempre vermelho para ele) traduz muito do que somos. E aí surge uma estrela na solidão de nossos dias. Uma notícia: operários de uma empresa de transportes deixam na mão a população. Uma notícia, quando dada de forma unilateral: deforma a imagem. O que era uma coisa vira outra. E não nos encontramos mais no labirinto de enganos e engodos. Nesta semana, os funcionários de uma empresa do transporte coletivo, a Estrela, resolveram não trabalhar pela manhã. A notícia se espalhou pela cidade com tons de crítica aos trabalhadores. A ausência do transporte coletivo altera o nosso habitual. A parada, além de modificar ou alterar nosso trajeto, pode nos levar ao outro, a pensar o outro. Pelo menos deveria, mas o nosso mórbido desejo de repetir-se até não ser mais não nos permite sairmos do egoísmo imediato. Não precisamos de pressa: um dia não seremos. Os trabalhadores da empresa citada cavaram uma estrela na solidão. O motivo do motim é uma verdadeira aula de humanidade. Quem de nós estará disposto a não ir trabalhar para ajudar alguém? Quem sabe da urgência daquele que nos chama? Os funcionários da empresa pararam em solidariedade a um cobrador que foi demitido. O cobrador em questão não era só um cobrador. Era um autêntico cobrador. Um líder. Ele cobrava mais respeito aos direitos trabalhistas. Ele cobrava melhores salários e melhores condições de trabalho. Ele era um vento incômodo na consciência dos guardiões da ordem. Seu destino? Não está contente: rua. Os amigos de profissão perderam uma voz que soprava e que tinha eco, pois quem não vibra se torna um medalhão. A sábia teoria do medalhão, do velho bruxo Machado de Assis, continua em vigor na Bruzundangas de Lima Barreto. Com a paralisação, os funcionários resolveram mostrar que se sentiam representados na voz do já emudecido ex-cobrador. Suspenderam suas atividades num gesto de solidariedade (palavra piegas no mundo pós-moderno, pós-tudo). É preciso desviar o olhar do nosso trajeto, por um dia apenas, e parar para ajudar o homem do carrinho a carregar suas chagas mesmo que seja para carregar o carrinho com os olhos marejados de lágrimas e de impotência.

Uma crônica de Rubens da Cunha

VERGONHA ALHEIA
Um sentimento que me tem atacado ultimamente é a vergonha alheia. Tento evitar, tento fingir que nada está acontecendo, mas é difícil. Está cada vez mais difícil. A vergonha alheia é aquela vergonha que você tem pelo outro, é quase uma empatia. O sujeito age, se veste, fala ou faz algo ridículo e não percebe, não se dá conta do estreito limite entre o humor e o grotesco, entre a exuberância e o mal gosto, por exemplo. É sempre um misto de pena e raiva, de vontade de orientar com vontade de dar uns tapas, de fugir dali e ficar ali presenciando aquela cena patética. Eu nunca tive muito problema com lixo cultural, sobretudo o vindo da televisão, muitas vezes até consumi sem culpa intelectual nenhuma. O problema é que agora o lixo cultural descobriu o rico filão da vergonha alheia. Não se trata mais de algo passadista, algo como ver as capas dos LPs dos anos 70 e tentar entender que roupa era aquela, ou ver fotos dos anos 80 e se admirar como as mulheres usavam aquele cabelo. A saber: o passado é sempre fonte inesgotável de vergonha alheia e própria, mas é passado, geralmente estamos bem melhores agora. O problema é o presente, a vergonha alheia como espetáculo, como entretenimento, como algo que parece natural sem ser, afinal um dos ricos mananciais de vergonha alheia é ver pessoas sendo o que não são, aparentando uma elegância e uma cultura que não têm, pessoas que desconhecem o poder terapêutico e seguro do silêncio. A televisão tem explorado cada vez mais esse desconhecimento.Todos os dias, somos expostos a opiniões, a comentários, a atitudes que, primeiro, não nos dizem respeito; segundo, mostram as deficiências intelectuais (sejamos politicamente corretos, afinal, os burros – animais – nunca mereceram ser comparados aos humanos) dos opinadores. O pior é esse jogo perverso que se estabeleceu entre a televisão, o público e os participantes de alguns programas que se humilham consciente ou inconscientemente por uns parcos minutos de fama. Parecia ser uma moda, mas veio para ficar.O melhor exemplo dessa superexposição da vergonha alheia está nos fenômenos dos reality shows. Detalhe, a praga é mundial. Fiquemos com dois dos mais conhecidos no Brasil, atualmente: “BBB” e a “Fazenda”. O vexame é a tônica. A vontade de parecer inteligente produz diálogos tristes. Nem Clarice Lispector escapou. Num diálogo quase surreal, um dos participantes diz que nunca leu Clarice Spektor, a outra corrige: Clarice Linspector, e por fim uma terceira diz que nunca leu um livro dela, apenas resumo. Ou seja, overdose tripla de vergonha alheia num diálogo de menos de um minuto. É uma pequena amostra.O problema é que quanto mais a idiotice é exposta, mais o público gosta, ou se identifica, mais a televisão fornece, mais surgem pessoas dispostas a aparecer pelo ridículo, mais o círculo vicioso se fortalece e o que era apenas algo ocasional, quase como um susto, torna-se o padrão, por isso, não deve demorar muito o tempo em que ser discreto, elegante e talentoso se tornem motivos de vergonha alheia.

domingo, 24 de janeiro de 2010

Um poema de Juana de Ibarbourou


Raíz salvaje


Me ha quedado clavada en los ojos

la visión de ese carro de trigo

que cruzó rechinante y pesado

sembrando de espigas el recto camino.


¡No pretendas ahora que ría!

¡Tu no sabes en qué hondos recuerdos

estoy abstraída!


Desde el fondo del alma me sube

un sabor de pitanga a los labios.

Tiene aún mi epidermis morenano

sé que fragancias de trigo emparvado.


¡Ay, quisiera llevarte conmigo

a dormir una noche en el campo

y en tus brazos pasar hasta el día

bajo el techo alocado de un árbol!


Soy la misma muchacha salvaje

que hace años trajiste a tu lado.

sábado, 23 de janeiro de 2010

Ana


Fotografia de Heloísa Espada

Um lápis de cera de Fernando José Karl



Embora eu saiba que os mortos não se levantam, essa pintura acima é uma tentativa humana demasiada humana de ressuscitar minha vó Ana Castro de Jesus Leão Beeck (1911-2009).

sexta-feira, 22 de janeiro de 2010

Um poemas de Dennis Radünz

DO “FASCÍCULO DE INSCIÊNCIA”

ESCUTA
SUBAQUÁTICA

Órgão tátil de peixes ósseos


dois ouvidos internos desde a escama escutam
voz de onda sonora em vibrações por segundo
onde o nado desanda a superfície das sombras
em labirintos de tato no outro mundo da água
e, entre ventre e dorso, corre a linha de escutas
que orienta no fundo as posições para o corpo
ou desventra no ósseo o membranoso do nada
quando emana o agudo o sono mudo de cegos
e o mundo grave de fora na endolinfa se chega
e se esconde no espelho, todo ouvidos, o peixe

o sol no aquário atravessa o espesso
a sombra do búzio afunda-se em feixes

quinta-feira, 21 de janeiro de 2010


Pedra persa



NOÇÕES DE GRAMÁTICA
(Origo et fons)

Essa frase tem contém dois verbos.
Essa frase tem repolho seis palavras.
Essa não é uma completa.
Essa também.


Fernando José Karl

Andrej Glusgold

GODOT CHEGOU AO HOTEL SUNSET BOULEVARD
E NÃO ENCONTROU NINGUÉM

Vim a este Hotel Sunset Boulevard, rente ao mar grosso de sal e azul, porque me contaram que aqui estavam me esperando Schopenhauer e Francisca B. Não os encontrei. Não faz mal. Ficarei espiando o mar tranqüilo assim e o visível corpo n’água.

Mar em que nos abandonamos e que cresce em nós com as tormentas, continuará a ser água salgada em desalinho constante e os limites deste mar, fixados em alguma idéia, se confundem com a altura do céu que é claro sem nunca ter pensado: este céu é suficientemente despovoado de anjos e beatas virgens, de tal modo que resta sempre novo céu que podemos exaurir e dele arrancarmos as finas cordas da chuva, as chuvas de que é capaz o espírito.

E acontece que, para o espírito, as nossas presentes chuvas, sem consideração moral, são mais molhadas. Aquele que construiu em si a obrigação de molhar os dedos na pia de água benta, sabe que nunca deixará de faltar matéria e realidade à água benta e só terá necessidade de recorrer a ela se, vazio, e para iludir o escuro em si mesmo, tocar a suposta santidade da água que, ali na pia, é água apenas, e isso é tudo para essa água que, sem pia nem beatitude, continua ali e logo evapora. Mas chega de filosofia.

Não vou esperar mais. Daqui posso ver a Tabacaria. Talvez o Esteves saiba onde Schopenhauer — o peixe espinho — e Francisca B. estejam.

Fernando José Karl,

que sempre foi menor

que o vento na cortina


Vicente Huidobro (1893-1948)

Que el verso sea como una llave
Que abra mil puertas.
Una hoja cae; algo pasa volando;
Cuanto miren los ojos creado sea,
Y el alma del oyente quede temblando.

Inventa mundos nuevos y cuida tu palabra;
El adjetivo, cuando no da vida, mata.

Estamos en el ciclo de los nervios.
El músculo cuelga,
Como recuerdo, en los museos;
Mas no por eso tenemos menos fuerza:
El vigor verdadero
Reside en la cabeza.

Por qué cantáis la rosa, ¡oh Poetas!
Hacedla florecer en el poema ;

Sólo para nosotros
Viven todas las cosas bajo el Sol.

El Poeta es un pequeño Dios.

Vicente Huidobro (1893-1948)