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quarta-feira, 24 de fevereiro de 2010

Uma crônica de Marco Vasques


UNS CASAMENTOS


Devo dizer que não sou desses cronistas mentirosos que fingem discrição e só escutam a conversa alheia por acidente. Não! Eu vou logo colocando as antenas em ação quando vejo um diálogo. Este começou assim:
- Vou me casar com a Maria!
- Mas... Não podes casar com a Maria!
- Como assim! Combinamos ontem, durante o intervalo, que iríamos nos casar no sábado.
- És um tolo mesmo!
- Inveja! Juro que estás te roendo por dentro. Só porque a Júlia não quis....
- Eu não estou interessado na Júlia. Ela faz parte do passado. Agora estou investindo na Ana. Os olhos de Ana são mais atraentes e sua voz menos estridente que a de Júlia. E mais: Ana tem charme superior ao de Júlia. Ela lembra um pouco aquele poema do Vinícius de Moraes, não acha? A professora Rose adora ler o poema para nós. Ah! A professora Rose! Que mulher! Que voz!
- A professora Rose!
- Sim! Uma mulher e tanto.
- E Júlia e Ana?
-Ah!
- Tu falavas do interesse por Ana e do teu suposto desinteresse por Júlia!
- Certo, mas a imagem da professora Rose entrou direto. Sabes como acontece? De repente a imagem da mulher entra pelo olhar e o corpo todo começa a responder.
- Mas a Júlia é muito mais bonita. Ah! Que pernas! Que andar!
- Pare com isso! Estás ficando maluco! Ana é mais bela que Júlia que perde para professora Rose. Ah! Eu estou confuso. E a Maria?
- O que tem a Maria?
- Vais casar mesmo com ela?
- Está tudo combinado! Vai ser lindo. Já estou vendo a doce Maria deitada em meus braços.
- Mas tu és mesmo um rapaz iludido, ela namora o Roberto!
- E daí, ela namora o Roberto e vai se casar comigo.
- Tu sabes por que ela vai se casar contigo, não sabes?
- Claro que sei.
- Por quê?
- O Roberto...
Neste ponto da conversa o diálogo é interrompido. O ônibus para e os dois meninos saem mudos. Segui viagem meio aturdido e sem resposta à pergunta. Confesso que aquela conversa dos garotos, ambos não tinham mais que quatorze anos de idade, fez-me recordar uma antiga namorada. Onde andará a Andréia e por que diabos ela não quis casar comigo mesmo?

Uma crônica de Rubens da Cunha

Crônica publicada no jornal A Notícia / 24-02-2010

MI BUENOS AIRES QUERIDO!

Calle Florida. A arquitetura quase opressora de Buenos Aires entope-lhe os olhos, segue andando depois de três dias na cidade. Tropeça. Esbarra. Ouve pedaços de seu idioma, de idiomas alheios vindos do outro lado do mundo. Um homem toca harpa. Alguns param diante da estranheza. O som da harpa compete com os carros, os vendedores, outros músicos. O homem maneja aquele instrumento com a delicadeza difícil dos ignorados. Os pés doem. Nada que o faça parar, nada que lhe retire a liberdade e a solidão em ser um estrangeiro, mesmo tão perto de sua fronteira. Lembra-se de um poema. A amiga poeta o fez no hemisfério Norte enquanto vagava por lá, terminava dizendo que tudo estava em seu lugar, menos ela, a estrangeira. Olha a imponência dessa cidade e percebe que talvez aqui as coisas já não estejam em seu lugar: as pichações políticas, os restos de gente e de compras espalhados nas calçadas, a revolta pelo aumento da carne, a doença de um ex-presidente mais presidente do que nunca. O seu país repetirá a história dos argentinos? Chega a Plaza de Mayo mais uma vez. Os esquecidos da guerra da Malvinas ainda estão lá, acampados, pedindo para serem lembrados. Talvez fiquem ali para sempre. Talvez, em breve, acampem novos soldados vítimas do esquecimento. Entra na Casa Rosada. Guias vestidos a caráter o guiam por dentro da sede do poder. Tudo tão artificial quanto o Palácio do Planalto. Tudo limpinho para olhos turistas. Para entender o poder, talvez fosse necessário entrar nas veias dos mandatários da nação. Naquela oquidão escura que é o coração dos homens e mulheres com poder. Quer sair do circuito básico de ruas e bairros visitáveis, já os cumpriu, já os registrou na memória. Santelmo e suas feiras de antiguidades. Ricoleta e suas embaixadas. Palermo e seus parques. La Boca e sua aparente luxúria feita para estrangeiros. Onde será que Buenos Aires respira ares mais Sul americanos e menos europeus? Descobre parte da periferia. À medida que o ônibus se afasta do centro, a paisagem muda. A sobriedade dos prédios e das pessoas é trocada pelo colorido aberto do comércio popular, com aquela aproximação da China via Paraguai. A vida corre em outro ritmo no final da avenida Rivadavia, lá onde Buenos Aires acaba, lá onde as agências de turismo ignoram a existência das pessoas. Buenos Aires faz jus ao nome. Apesar do calor o vento é constante e amenizou a sua vida. Gostou da loteria da comida, pois só pedia aquilo que desconhecia. Passou por inúmeras livrarias e viu como um país pode ter outra relação com os livros. Foi ver um filme que no fim acabou sendo do Uruguai. Não entendeu quase nada do que os personagens falavam. Que distância entre a escrita e a fala. Ou entre os apresentadores de televisão e a fala das ruas. Imiscuiu-se o quanto pode dentro da cidade. Não queria ser turista. No máximo um estrangeiro curioso. Um estrangeiro que também teve seu lugar na Reina del Plata.

segunda-feira, 22 de fevereiro de 2010

Georges Bataille

O poético é o familiar dissolvendo-se no estranho, e nós mesmos com ele. Ele nunca nos desapossa totalmente, pois as palavras, as imagens dissolvidas, estão carregadas de emoções já sentidas, fixadas a objetos que as ligam ao conhecido.

in: A Experiência Interior. p 13

domingo, 21 de fevereiro de 2010

Recital de poemas no Palácio Cruz e Sousa


Poeta português Luís Serguilha fará recital em Florianópolis

O poeta português Luís Serguilha, que está há dois meses morando no Brasil, fará um recital no Museu Histórico de Santa Catarina, em Florinanópolis, na terça-feira (23), às 18 horas, com entrada gratuita. No evento ele apresentará poemas dos livros Extraviário, de Dennis Radünz, Flauta sem Boca, de Marco Vasques, ainda inédito, Nos Limites do Fogo, de Péricles Prade, e Amigo da Labareda, de Rodrigo de Haro. Serguilha veio ao Brasil finalizar um novo livro e participar de congressos na área de literatura. Além de escritor, ele é também um pesquisador dos poetas contemporâneos brasileiros. Sobre os poemas selecionados para o recital, cita a intensidade passional e as características “piroclásticas” dos mesmos, mostrando o fogo enquanto elemento transformador de energia. Luís Serguilha nasceu em Vila Nova de Famalicão, Portugal. Poeta e ensaísta, entre suas obras estão: O périplo do cacho (1998), O outro (1999), Lorosa´e - Boca de Sândalo (2001), O externo tatuado da visão (2002), O murmúrio livre do pássaro (2003), Embarcações (2004), A singradura do capinador (2005), Hangares do Vendaval (2007), As processionárias (2008), Roberto Piva e Francisco dos Santos: na sacralidade do deserto, na autofagia idiomática-pictórica, no êxtase místico e na violenta condição humana (2008), Korso (2009). Recebeu em 2000 o Prêmio de Literatura Poeta Júlio Brandão. Participou de vários encontros internacionais de literatura e possui textos publicados em diversas revistas de literatura no Brasil, Espanha e em Portugal, além de outros trabalhos traduzidos em língua espanhola e catalão. É, também, responsável pela coleção de poesia contemporânea brasileira na editora portuguesa Cosmorama.

quarta-feira, 17 de fevereiro de 2010

Encontro de Poesia


Os poetas Luis Serguilha, Marco Vasques e Ronaldo Werneck foram os convidados do Verão Poesia, que ocorreu em Belo Horizonte, para discutir as poéticas de Al Berto, Roberto Piva e Yves Klein. Durante o evento, o SINGULAR Marco Vasques, falou sobre a Poesia feita em Santa Catarina. Os poetas Dennis Radünz, Rubens da Cunha, Rodrigo de Haro, Péricles Prade, Ramone Abreu Amado e Fernando José Karl tiveram suas obras apresentadas ao público mineiro. Conheça mais estes poetas em http://www.revistazunai.com/ .

Severo Sarduy e Franz Kline


Franz Kline
Wax wing - 1961

Da Série Páginas em Blanco
(Cuadros de Franz Kline)

Severo Sarduy

Não há silêncio
senão
quando o Outro
fala.
(Branco não:
cores que fogem
pelas margens).
Agora
que o poema está escrito.
A página vazia.



Trad. Cristiano Moreira

(No hay silencio/sino/ cuando el Otro/habla./(Blanco no:/ Colores que se escapan/ por los bordes). Ahora/ que el poema está escrito./ La página vacía.)

Esta série de poemas foi originalmente publicada no número 23 da revista Tel Quel em 1965 e, posteriormente, reunidos em Big Bang, livro de 1974.

terça-feira, 16 de fevereiro de 2010

Duas passagens - Rubens da Cunha

O filho degredou-se por quarenta noites. Buscava os bálsamos do pai. Encontrou entre misérias e luxúrias o outro há muito sonhado. Não o pai, o outro que fora irmão nos campos idos do gênesis. Andavam em saudades os dois. Se houve mesuras, não se sabe. Soube-se apenas do ódio (construtor de interrogações em desespero) e do filho, que frágil, recusou-se humano, porque assim estava escrito: “Nas estâncias de Deus, somente aquele que despir-se do abismo perdoará a fome sem resposta dos impuros”.


Nas terras da Judéia, uma pecadora condenada por deitar-se com a dobrez insípida dos homens. Mas antes que sua morte começasse levaram-na aos olhos do Messias: “Mestre, a esta mulher confiamos nosso segredo: somos César, quando dentro de seu ventre guerreamos com as ventas tangíveis do poder. Ela agora nos trai, pois se recusa ao fingimento que nos salva.” O Messias apenas disse: “A vossa salvação estava no ódio que percorreu cada esgar desta mulher. Os que foram salvos, podem matá-la”.

Gilberto Gil - Metáfora





Uma lata existe para conter algo
Mas quando o poeta diz: "Lata"
Pode estar querendo dizer o incontível

Uma meta existe para ser um alvo
Mas quando o poeta diz: "Meta"
Pode estar querendo dizer o inatingível

Por isso, não se meta a exigir do poeta
Que determine o conteúdo em sua lata
Na lata do poeta tudonada cabe
Pois ao poeta cabe fazer
Com que na lata venha caber
O incabível

Deixe a meta do poeta, não discuta
Deixe a sua meta fora da disputa
Meta dentro e fora, lata absoluta
Deixe-a simplesmente metáfora


Mais informações a respeito do processo criativo dessa letra/poema AQUI

sábado, 13 de fevereiro de 2010

Max Thorek, 1930



O venerável superior Hans Daff, da abadia de Wassal, no balneário de Ó, põe os óculos redondos e, fingindo que folheia com unção o vago registro no caderno católico, não deixa de observar que, ali na sacristia, a nuca da menina é perfumada.

O venerável convida a menina para que sente em seu colo.

Quinze anos tem Laurinha; o venerável espera que saiam todos e a mão com o grosso anel de ouro enfia-se no musgo entre as coxas da menina que ainda não sabe, que ainda não pode saber.

Os lábios molhados da menina, a nuca perfumada, o repique dos sinos. Alguns padres desfiam o rosário no átrio.

Aqui é o balneário de Ó envolto em neblina, onde atracam as barcas que descem o rio. Folhas do tamarindo caem, num abandono previsível, e, se erguermos um pouco os olhos, deparamos também com aquele céo antiqüíssimo e monótono. Contudo, o que se percebe mesmo é que o vento e os homens, as pedras e as mulheres só cuidam de si, nunca desconfiam que, nesse minuto, na abadia de Wassal, o venerável Hans força a menina a ficar de de quatro e a beijar o crucifixo.


Fernando José Karl

Matisse (1869-1954)



Ô ressurreição, dê água a meus ossos, me livre da aboiz de achar que eu sei tudo. Sou bossa de corisco, silêncio de adro, diamante que não, que sim. Ô ressurreição, dê arejos às trevas, me livre da falta de doçura, do vício de não escutar as trepadeiras trêmulas no aljibe. Tudo volta ao silêncio. Nunca estive entre as folhas da abanga. Nunca me chamaram de Beechmann. Ô ressurreição, que o que agora vislumbro não se perca, não se perca. E alguma coisa disso tudo seja meu: o linho da mortalha dos anjos, a xícara branca, o sorriso dos Reis, os passos no desconhecido, as delícias, os cinamomos, os vasos cilíndricos de barro, e mais tudo o que, por distraído, esqueci.

Fernando José Karl,

uma bosta da sereia



sexta-feira, 12 de fevereiro de 2010

Uma crônica de Marco Vasques

O corpo de Ahzeturis

Lateja o peito, e tonto ele sai sob o sol de uma tarde que nada lhe diz. Comido pelo silêncio da vertigem, vivência da pele, caminha rumo ao encontro. Do corpo nada sabia. Nem sabia se o guarda-roupa servira ao corpo, ou se os corpos serviam aos guarda-roupas. Portanto, para ele a nudez ainda era um mistério, e nada poderia ser dito para cortar o efeito das vestes empalhadas pelas ruas. Pensou em um ditado oriental, sem ao menos entender por que seu pensamento se dirigia para o outro lado do mundo. Ficou retumbando em sua cabeça: a casa é o túmulo dos vivos. Voltou o olhar à terra e viu que tudo é uma questão de tempo. Viu uma esperança quando desejou que seus fios de cabelo fossem usados para fabricar flautas, o crânio pudesse ser útil na fabricação de um instrumento de percussão, no entanto tinham que aproveitar os olhos para que crianças inocentes brincassem com um pouco de brilho, de vidros e sonhos. Dos ossos desejava apenas que fossem bem utilizados, e uma idéia lhe agradou: fazer deles um faqueiro, onde figurassem garfos, facas e colheres. Desejou que todos aqueles que, antropófagos, engoliram sem piedade sua simplicidade, sua liberdade, todos aqueles que se afogaram de tanto beber seu sangue, a esses desejou que fosse dado cada talher fabricado com seus ossos. Com a pele poderiam fazer o que quisessem, mas o mais acertado seria fazer dela algumas páginas para poemas, pois as linhas já estavam prontas, todas esculpidas por canivetes e facas. A humanidade se envergonharia de tanta dor, nenhum poeta teria coragem de rabiscar uma só palavra sobre a pele tão escrita. O sangue poderia ser usado para fabricar alguns quadros. Bosch, Magritte, Dali e Picasso saberiam como usá-lo. Só jogar na tela. Tanta dor circular, algumas gerações carregadas nas veias, não precisa de muito trato artístico. Pollock talvez fosse o que mais entendesse tal gravidade de vermelho. Uma gravidade de arrebol em dia de funeral. Vermelho em Bach. Vermelho soturno e surdo nos dedos de Beethoven. As unhas poderiam ser entregues a algum artista de bairro, desses que sabem fazer belos mosaicos em fachadas de prédios. As tripas mereceriam, talvez, ser transformadas em um saxofone. Assim Ahzeturis rumava ao encontro de sua decomposição. Desejou, ainda, que seu estômago se transformasse em bola de futebol e estivesse a serviço da alegria, logo Ahzeturis, que nunca conhecera esse sentimento. Mesmo assim desejava proliferar o desconhecido sentimento entre os homens, sobretudo entre as crianças. Continuou andando por cinco dias até completar toda a saga e ter distribuído, de forma utilitária, tudo que era físico. Então, quando chegou na boca, não soube o que fazer com o verbo. Sentou num trilho antigo, na mais absoluta solidão, e chorou. Contam que depois disso Ahzeturis nunca mais foi encontrado. Alguns estudiosos da literatura, por exemplo, dizem tê-lo encontrado, em forma de sombra, nos textos de Thomas Mann, Gogol, Paul Éluard e Dostoievski. E Ahzeturis, que nunca chamou a atenção em vida, hoje é escopo de pesquisas históricas, pois todos querem saber por que o corpo de Ahzeturis jamais foi encontrado.




Uma crônica de Rubens da Cunha

Crônica publicada no jornal A Notícia em 10/02/2010
LUTO

Enterraram cães vivos na minha cidade. Resolvo escrever sobre o assunto. Não é fácil. Torna-se árduo usar a linguagem e a consciência sobre a morte – justamente os elementos que nos diferenciam das vítimas – para falar de um ato que ultrapassa, ou melhor, assassina esses elementos. Que palavra qualifica enterrar cães vivos? Para que todos os séculos de discussão filosófica e religiosa a respeito de moral, ética, bondade, empatia, se a barbárie ainda é nossa melhor ferramenta para a manutenção da vida e do nosso iníquo poder sobre a terra? Alguns afirmam que há um certo exagero em toda a celeuma provocada pela denúncia. Eram apenas cães. Pessoas estão sendo maltratadas e enterradas vivas a todo minuto e ninguém faz nada. A minha indignação está justamente aí: eram apenas cães. Era apenas a inocência, apenas o bicho destituído de qualquer malícia, apenas o animal todo confiante, todo entregue à mão do homem, eram apenas cães vítimas da empáfia humana. Se nós nos destruímos é problema nosso. Faz parte da nossa espécie, junto com a linguagem e a consciência, gostar muito de nos matarmos mutuamente, mas o problema é que a vontade de destruição ultrapassa os limites da espécie, vai até os outros animais, e claro vai até ao reino vegetal e mineral.Talvez seja uma compensação pela nossa inferioridade na natureza: justamente a única espécie que se dizimada de uma vez só não faria a mínima falta, é aquela que dizima tudo ao seu redor. Enterraram cães vivos na minha cidade. Não é ficção, não é cinema, não é performance, é apenas a vida cotidiana mais uma vez expondo suas misérias. Outros ainda chamam o ato de desumano. Penso ser um erro: nada mais humano do que enterrar cães vivos. Nada mais próximo da nossa condição do que esse exercício de maldade concentrada. Outros cães e gatos envenenados, enterrados vivos, mutilados, devem estar reclamando porque morreram sem que ninguém visse, asfixiaram-se sozinhos sem que ninguém lhes desse espaço para o grito. Não foram parar nos jornais, não foram motivo de pena de alguns, nem de crônica de outros. Anônimos morreram e seus anônimos assassinos, muito provavelmente, foram à missa ou ao culto, pediram a Deus uma vida melhor, alguns até agradeceram a bela vida que estão tendo. Nada lhes pesa. São pessoas limpas, por isso mantém seu espaço na terra também limpo de animais imundos. E, diariamente, abastecem-se de veneno e paz. Por outro lado, existe a notória incompetência do poder público corroborando com a matança. O caso aqui narrado é específico porque foi denunciado e quem enterrou os cães foi um funcionário público com uma patrola. O discurso oficial, como sempre, já veio cheio de desculpas e providências. Como sempre, desculpas e providências paliativas. Mas e todos os outros crimes cometidos no silêncio da ignorância? Enterraram cães vivos na minha cidade. Estou de luto, pois minha crença no humano foi enterrada junto.

Um poema de Dennis Radünz

Do “Fascículo de insciência”


MECÂNICA DOS SOLOS

Comportamento do intemperismo


o incidente desde dentro, descendendo
de argila a argila, entre solos liquefeitos
e o sólido vazio dos porosos ocupados
com resíduos madurados de esqueletos
e adensados de areia sob a obra erodida.
eis o peso irreal ou específico dos grãos
que vulneram-se em vazões ou invasões
de linfa nos estados insolúveis da jazida
e em terrosos de maciços decompostos,
quando havia a previsão de terra estável:

geomembranas desmembradas
sobre o piso sinuoso das flutuações civis

sábado, 6 de fevereiro de 2010

a palavra afunda. afogo-me junto. juntam-se curiosos: "ele vai voltar, é só depois da terceira afundada que não se volta mais". a palavra geme: "eu sabia, mentiroso!". retiram-me da água. estranham os lábios mordidos por fora. "isso não é coisa de peixe, isso é coisa do diabo". jogam-me na água novemente. a palavra dilata. me dilata a cabeça, o estômago e se me explode: "vida de isca é isso, poeta!"

sexta-feira, 5 de fevereiro de 2010

Quinze pinturas

de

Fernando José Karl.


Exposição
Nautikkon 2010.

Dedico esta exposição aos meus amigos de destino:

Fábio Brüggemann, Péricles Prade, Dennis Radünz, Joel Gehlen, Vinícius Alves, Antonio Carlos Floriano, Marco Vasques, Francine Canto, Everton Freitag, Adriana dos Anjos, Míriam Santini Abreu, Alceu Bett, Shânkara Lis Martins Karl e Matheus Nascimento Karl.

Escutar Cold Play enquanto estiver vendo as gravuras abaixo:

http://www.youtube.com/watch?v=dvgZkm1xWPE


Ver o blog Nautikkon:

www.nautikkon.blogspot.com




A porta para o paraíso não é de ouro
mas de luz.


Uma coroa branca de chuva
para a respiração do vento.


Tudo se move por conta própria.


A solitude do barqueiro Caronte.







O coração branco de Lucana.


Ressurreição de minha vó Ana.


Vendaval em alto mar.

Praia do Sargaço após a chuva.


Para brutal vos adorar,
ó ondas de salgada branca espuma,
eu vos caço num estado de óbvia distração.


Lenta a experiência dos poços profundos.


Escutar os tangos poeirentos
na vitrola marinha.


Às vezes à noite os ciprestes me acordam.


A moça de cabeleira laranja
vence o monstro marinho,
molhada de orvalho e luar.


A casa branca do aedo Brüggemann.


Aquelas qüilas águas trans
ou aquelas águas tranqüilas.

quinta-feira, 4 de fevereiro de 2010

Um poema de Marco Vasques

da série ANATOMIA DA PEDRA

meu coração dorme
no ombro de um anjo esquecido

na garganta
escoa a voz
de todos os túmulos

paredes férreas dos dias
vozes tatuadas em prédios

e

por ternura
desenho
no sorriso do espantalho
uma nervura triste

Um poema de Dennis Radünz

DO "FASCÍCULO DE INSCIÊNCIA"

OBSERVAÇÃO DE SUPERFÍCIE

Escala de ventos Beaufort

águas altas ondulam, da bafagem a aragem,
e a poeira se esfuma no levante dos mares.
remoinhos em terra, duas mós se esbarram.
calmarias remorrem em rumores de árvore,
quando o vento desanda a pessoa de pólen
sob a luz derrubada no sombrio da morada
e o passante desfralda os relentos da chuva.
no revolto rebentam as rajadas de espumas
e acelera-se em vagas o derrame das ondas,
superfície de brancos, olhos nulos, borrifos:

o ciclone, em tufos,
se espelha em granizos e em céu quebradiço

Poema de Cristiano Moreira

O poema como fio de estopa


“Por que é que nunca param de escrever?

Não sei – Penso que escrevem por sofrer,

Vivem por dentro em vez de só viver”

Abgar Renault

O fio de estopa emaranhado,

estampa da lacuna e da memória

tece a historia sem fim da história.


O fio do poema estica o lastro

da pele que expande e nos finca

no agora da infância. Mudos

em uma fração de aurora moramos

no tempo do instante e quando

olhamos novamente sofremos.


O corpo inopera o solilóquio do tempo.


O fio do poema é o tempo gravado

inteiro no corpo, a palha de estofo

que estufa o espantalho vestido

à caráter para a viagem interminável

da lembrança. O fio de estopa esconde

que todos tem avacalhado novelo no peito.


Ninguém passa impune a infância.


O corpo todo retido na margem da pele

é conjunto de linhas, de fios que se falam,

se esfoliam e assim modificam o esboço.

O fio é fio ainda ao deixar de ser moço,

é fio ainda que o respiro pare e sobre

em outra memória nosso desenho tosco.

Lages

Fevereiro 2010.

quarta-feira, 3 de fevereiro de 2010

Brinde- Poema de Stéphane Mallarmé

Brinde


Nada, esta espuma, virgem verso
A não designar mais que a copa;
Ao longe se afoga uma tropa
De sereias vária ao inverso.


Navegamos, ó meus fraternos
Amigos, eu já sobre a popa
Vós a proa em pompa que topa
A onda de raios e de invernos;


Uma embriaguez me faz arauto,
Sem medo ao jogo do mar alto,
Para erguer, de pé, este brinde


Solitude, recife, estrela
A não importa o que há no fim de
um branco afã de nossa vela.



Vamos salvar os búfalos


Escutar “A utilidade das palavras”,

de Nei Lisboa

http://www.youtube.com/watch?v=MNED3pBbOtw


Coisa: aquilo que de algum modo é: assim coisa pode ser o Deus, uma linha de Paul Klee, um piano de Thelonius Monk, o areal, a xícara, o pão, o medo, o ventilador, a moeda persa, a clavícula, o aqueduto, a música de Mozart, o calabouço, o demônio, o vento, o abismo, a salgada branca espuma, o mantra, o astrolábio, o senhor Buddha. Nenhuma coisa é quando falta a palavra. Somente quando se encontra a palavra para a coisa, a coisa é coisa. Não será essa coisa, o que e como ela é, algo em nome de seu nome? Não se trata de agarrar com a palavra o que já está vigorando, nem de a palavra ser instrumento para a apresentação do que é dado. A palavra nasce no instante em que está sendo respirada: o uso é sua respiração. A coisa: o Deus, uma linha de Paul Klee, um piano de Thelonius Monk, o areal, a xícara, o pão, o medo, o ventilador, a moeda persa, a clavícula, o aqueduto, a música de Mozart, o calabouço, o demônio, o vento, o abismo, a salgada branca espuma, o mantra, o astrolábio, o senhor Buddha: só começa a respirar quando usamos a palavra. A palavra é que dá viço à coisa que, de algum modo, é. A pedra preciosa e delicada da palavra some quando a palavra falta. A palavra é um nada e esse nada é a voz do silêncio: a voz insonora. A voz do silêncio: aquilo que se ouve e não tem som. Aquilo que se ouve e não tem som, o que é? É nossa alma contruída durante o tempo: e alma é dessa matéria indizível: diamante sonoro ou perfume de mulher.




Fernando José Karl,

já morto e enterrado na perfumada estrela

Uma crônica de Marco Vasques


O HOMEM E SEUS ABISMOS

“O amor que eu dei não foi o mesmo que eu vi acabar”
(Ana Carolina)

A possessão é fascista. Hitler só atingiu o seu nível de loucura porque supunha que era o emissário do povo alemão e a ele possuía. Mas a possessão para alcançar a margem do outro, para usurpar o movimento alheio só ocorre por conta de um consentimento declarado, velado ou roubado. Não há nada mais obsessivo e fascista que querer guiar o outro pelas nossas cores. Um equilibrista diria que é mais fácil se equilibrar nas chamas de uma fogueira da Idade Média que estabelecer o limite do consentimento, do abandono consentido ou mesmo do roubo de uma aprovação. O escritor britânico Eric Arthur Blair, mais conhecido por George Orwell, em A revolução dos bichos, já nos coloca diante das dificuldades de estabelecer fronteira. O homem não tem propensão cartesiana, embora se vanglorie por dominar a razão. Somos poço de contradições e desejos indefinidos. Uns quilômetros de incertezas é o que somos. Em qual lado estamos? Estamos dentro de nós ou estamos fora, no outro? O que do outro queremos? Queremos o outro ou nos queremos no outro? Queremos que outro seja um outro que imaginamos? Ou ainda desejamos ser o outro e justamente por isso o desejamos? Um homem é uma imensidão, um labirinto. O poeta português Sá-Carneiro já sabia que existe um Teseu dentro de cada homem, pois em um de seus poemas nos diz “Perdi-me dentro de mim/Porque eu era labirinto.” E é neste labirinto que nos guiamos pela terra, mas estamos sem a espada e o Fio de Ariadne, isto é, não temos salvação. O homem é um abismo de deuses e demônios, amores e ódios. Alguns homens vivem dormentes. Outros vivem em estado de fogo, fagulha, vertigem. Talvez estejamos mesmo condenados a rolar por sobre nós mesmos até findarmos. Uma espécie de Sísifo carregando as palavras para a mesma direção: o branco certeiro do esquecimento. E ainda que um universo de abismos, a vida, esta flecha sem direção no espaço, nos submete a possessões incalculáveis. Assim vivemos possuídos e perseguidos pelo tão propalado sucesso, pelo amor ideal e perfeito, pela constância, pelo olhares acusativos determinando nossos desejos, pelos preconceitos, pela intolerância e obcecados por não vermos o outro. Roberto, depois de me falar tudo isto, coça o nariz e diz: Marco, eu não suporto mais os maquinomens que sorriem por decreto. Saímos depois de ouvir “Uma louca tempestade” e “Vestido estampado” na voz de Ana Carolina. Ficamos o resto do dia em silêncio.
Quadro O Grito de Edward Munch