Eu, Baroque Marina – aqui no sobrado da ficção – cochilo na banheira, inebriado com sais de cheiro e água de colônia. A alma roída até o sabugo tem curiosidade de quê? Das vestes íntimas dos livros que escrevo, e, sendo Baroque Marina, só os escrevo quando cochilo nessa banheira que se apóia nas garras de um leão de bronze.
Agora, adormecido, eu finjo que escrevo.
Isadora morde-me a nuca, e aí acordo de meu sono imerso na água morna.
Assim desperto, peço à Isadora que me alcance o cahier de ecrivain, e nele anote o texto que, enquanto adormecido, fingi que escrevi.
Ainda imerso na banheira, mergulho no sono e, agora, na escadaria de pedra do sonho, suspiro de gozo ao ver que a mulher de cabelos negros fica nua e sopra em sua pele branca.
Se ela mergulha no sono agora sonha e, no sonho, leite não coalha.
Solitário pires sem xícara, eu levo o rádio ao banheiro, ao sótão, ao quarto. Adormecida a meu lado – Isadora – que eu insulto: água, você secou; laranja, você murchou; sete anos eu te engoli; areia eu te varri; caroço de manga eu te cuspi.
Eu, Baroque Marina, de pijama, o torso nu, nem reclamo da sombra na soleira da cama. A toalha branca na mão trêmula. Mil e um dias de orvalho sobre a cinza fria.
Isadora sempre olha para mim como se não me visse há anos; e nos vimos no café da manhã. Sete noites seguidas os lençóis incendiados de paixão: ó fenda, ó musgo, ó fruta nacarada de Isadora.
Um velho sábio chinês, enquanto penetro surdamente o flanco de Isadora, asperge água benta colhida das folhas do quintal.
Isadora: a faminta concha escancarada. O sábio chinês vira de costas para a parede do quarto.
Para ganhar coragem, Isadora bebeu dois conhaques. Para ganhar coragem e lavar a louça de dois dias.
Ela deixa bilhete na porta da geladeira: diz que fugiu para bem longe, para Cabedelo, onde a preta das bananas passa vistosa com seu pano da Guiné.
Ai de mim, se não dou atenção à Isadora, ela esparrama sal pela casa, atira os gatos pela janela, e diz que fugirá do meu romance mal escrito. Na cama, a chaleira com água quente, Isadora aguarda que eu durma. Como descansar ao lado de Isadora? Ela possessa de sonhos de vingança, esperneia, braceja, resmunga. Vai derramar água quente na minha cabeça?
Eu a desejo; ela não me deseja. Humilhado em meu brio de macho, eu esgano o pescoço da sacana – ela – que cai da cama, ameaça precipitar-se da janela.
Isadora bate a porta da sala de estar e arrasta no pó a roupa do varal.
Ela ainda não sabe por que devemos morrer, depois boceja, tem sono.
Quem geme de paixão? O meu lado da cama é cago de mosca, gomos de laranja, charuto apagado. Do lado de Lucana um castiçal de velas, flores e o pratinho com rodelas de pepino. Abra a boca e feche os olhos, ela diz.
E desce a gruta nacarada, a gruta peluda com suor de peixe na minha cara de Baroque Marina.
Quando Isadora não se entrega, eu uso dela com a maior violência.
Mulher humilde, isso é Isadora. Uma bela gata no cio. Se nunca tive queixa dela, vez por outra acirramos os ânimos.
Encaro-a dentro da córnea. A língua inteira rola na orelha, uma estrela chora no tímpano de Isadora.
É noite adiantada quando, enfim, adormecemos.
Domingo, se Isadora fica em casa, é a mesma coisa que um vazio o sobrado da ficção onde ela cumpre os rituais de acordar às sete da manhã, mascar o pão, lavar a roupa, verter na bacia a lágrima furtiva.
Cumpre, comigo, um ritual de núpcias em que não crê mais.
Grinaldas e flores de laranjeira no lixo; vendaval para o pulmão: respirar, respirar – ninguém é de ninguém, ninguém é nada, nada é de ninguém.
– Ai que desgosto ter casado – desabafa –, e corre a tirar água do poço de vinte metros.
Nunca mais acabaria de chover. Nunca está chovendo, sempre já choveu. Mais conhaque, mais vinho, mais rum, mais cachaça pra aguentar o tranco. É o caldeirão fervente, é o deserto, que uma suíte para violoncelo de Bach podia serenar.
Entre ferozes baforadas a andar na chuva, eu, Baroque Marina, perdido num beco escuro: a língua dentro da boca, língua de mamba negra, rememoro pedras preciosas de Dante Alighieiri transluciferadas por Haroldo de Campos.
Sem prestar atenção na chuva que lava a vidraça, eu, Baroque Marina, de leve passo as unhas pela nuca de Isadora. Meu bem, uma confissão, eu digo.
Da caixinha redonda de sabonete Isadora retira a água, enquanto continuo: Meu bem, eu sei que você foi violada por todos os homens desse balneário de Saavedra.
Eu brinco com a faca de picar fumo. Chamo Isadora para a sombra da varanda.
Isadora cospe um olho de sapo e diz: O sapo eu engulo todo, menos o olho.
Isadora, quieta, fuma, bebe vodca, engole outro sapo, agora com sal.
Isadora cospe outro olho de sapo.
O mais triste, digo eu, Baroque Marina, é que sem ela eu não posso viver. Agora que sei que Isadora foi violada por todos os homens dessa rua, eu estaquei, nem consegui mais sair debaixo das águas do chuveiro. Ali fiquei durante uma semana inteira.
E durante esse tempo sob o chuveiro, constato que desde menino sofro de um pequeno defeito físico: só consigo ler, dos livros, apenas a página 26.
Aos trinta anos, Isadora ainda é uma árvore viva. Eu, Baroque Marina, uma árvore seca. Essa aí, quando eu apodrecer, entra em núpcias com outro, eu digo. Ela rebate: Se você visse como Baroque Marina dorme. Cansado ou não, deita na cama e baba. Fico me virando a noite inteira sem pregar o olho. Eu sinto o cheiro: cascas de laranja na mesa da cozinha.
Ainda não conheço o estilo erótico de Lucana, porém os sinais mais insignes são todos conhecidos; e caso alguém pretenda fazer desvelar a intimidade de Isadora, acabaria por esbarrar em algumas cenas um tanto picantes dela de pernas abertas na cama.
A nudez de Isadora é sempre como nos afrescos da capela de Santa Clara; não existe originalidade nem verdade a não ser nos detalhes.
Mas mudemos de assunto.
Toda a força romanesca num café da manhã é sustentada e condensada pela xícara, faca, margarina, toalha de mesa, pão.
Isadora é a primeira a acordar; e por uma frincha estreita da veneziana vaza o que se denomina luz e essa luz toca sua boca cheia de cansaço.
O nosso quarto, aqui no sobrado da ficção, fica mesmo ali; uma espécie de escotilha rente ao teto; um jeito de prolongar a luz do dia; nem cortina o quarto tem.
A manhã acordou encoberta, chuviscosa, maneira de dizer: as manhãs não acordam, acordamos nós nelas, e também acordam na manhã eu e Isadora. As mulheres, como sabemos, são de ferro; os homens são de papel. Os homens são horríveis. Por isso eu, Baroque Marina, agarro-me à Isadora.
O dia passou, outro veio e se foi. Mas houve Isadora quem, num assovio de cólera, trincasse a xícara e batesse com força a porta da geladeira.
O pinguim estilhaçou no ladrilho da cozinha.
Palavras são palavras, e das pessoas toscas e estouvadas se diz que o são também, o que significa que tudo é palavra: couve, pôr do sol, amor.
Eu, Baroque Marina e Isadora estamos escassos de dinheiro, principiamos a falar de conta de água, não de barca ao rés do mar; de urinol, não de descascar laranjas na varanda.; de despejo, não do açúcar que neva no chá.
Vamos à rua e damos uma volta larga; para o cinema ainda era cedo, talvez pudéssemos ir ao álcool no happy hour do Café Graben.
Nesse momento deve haver no sobrado, na rua das Olivas, 23, um silêncio de se cortar à faca. É ali que fica o sobrado da ficção.
Hoje é domingo, e é também o dia do nihilismo. Comemos dentro do quarto, à luz do candeeiro oscilante, numa atmosfera pesada, de roupas úmidas, colchão duro, coração duro. Vá comprar uma garrafa de pinga, Isadora. Nunca, ela diz.
Cansado eu, Baroque Marina fico, e brabo, feito Ivan, o Terrível; Isadora não foi comprar pinga; vou deitar. Isadora, perdida de catarata nos dois olhos, mastiga páginas da Bíblia pra curar a peçonha. Isadora agora lá no quintal. De um lado para o outro. Fala com as moscas, com as pedras. Vocifera: vai chover.
Reza relâmpago, ama golfinhos e imagina-se sentada na casca de uma ostra.
Isadora pede a si mesma que quer me abandonar, a mim, Baroque Marina. E, infeliz, assim, ela pode? Isadora rebate, com pinga pura, a culpa de ter sido violada por todos os homens desse Balneário de Saavedra.
Cozeu batatinhas, chuchu e lamenta: Uma sanguessuga das gordas é o meu amor, grudada na cara. Isadora joga uma água no rosto. Deita no ladrilho da cozinha. Ela pede a si mesma que abandone a melancolia. Já tinha dado o sangue de um bode e um dedo, mas nada acontecia. Continuava indecisa, insana, insossa, porque o sal todo jogava no chão.
Isadora meio cega, desconcertada: Assim que Baroque Marina morrer eu começo a viver. Eu chego bêbedo em casa e, tirando a camisa branca, ordeno que Isadora a lave para o dia seguinte.
Sete anos casados – cinco vivemos mal – nos destroçam como louças nas pedras. Por isso dorme com uma faca embaixo do travesseiro. Eu juro que não sou insano. Digo que a acho nervosa. Isadora mergulha o rosto nas roupas do varal para acalmar-se ou sumir.
Avanço contra Isadora e a cubro de socos. Alguém me salve, eis sua súplica.
Sangrando muito na clavícula, no queixo. Foge. Corre, que eu te pego. Mais socos e pontapés. Agarro Isadora pelo cabelo comprido. Tento cortar o pescoço dela. Alguém me salve, de novo o lamento. Mas a pinga pura me impede de parar.
Eu, Baroque Marina que, ontem, queria matar Isadora, hoje levanto-me da cama, observo o desalinho dos lençóis, o pesado ferro da ressaca na minha têmpora. Que foi, Isadora? Me cobriu de socos, seu verme.
O inopinado aparecimento da brisa fez com que a cortina ondulasse. Pinga pura a culpada. Não eu. Isadora promete que se vinga. Põe sal no café. Cola no xampu. Prego na cadeira. De manhã, em geral, Isadora costuma reservar um tempo para escutar Mahler na sala. Mas hoje, não; hoje, depois da surra, ela decidiu ficar calada. É a música que permite que ela suporte o insuportável. Para pensar um pensamento profundo, Isadora, às vezes, escolhe ficar imersa na banheira durante horas. Mas hoje, não; hoje, depois da surra, Isadora sai para o quintal com precauções de virgem. Volta para o quarto abafado, onde sete anos convive comigo: o bruto. Exausta, ela desaba no sofá. Uma potente sensação de qualquer coisa faz com que sua cabeça afunde no travesseiro. Com uma incredulidade não fingida, fica olhando para o teto branco, muito branco, e só sabe escutar – não sua voz – mas um cacarejo. A isto se resumiu sua existência fria: um cacarejo. Aconteça o que acontecer, Isadora não está para ninguém – quer ficar só, absolutamente só; não escreve, não toma nenhuma iniciativa.
Não recolhe do varal as peças de roupa. Não mais sob a água do chuveiro a pele. Está ausente no centro de sua presença e diz que seu gato angorá não sabe folhear sequer um livro, nem ler.
Eu não tenho uma mulher de nome Isadora, eu tenho uma invenção. Uma assassina escrita, uma chantagista. Espero que ela nunca encontre um certo Marcuse, quase tão onipresente e onisciente quanto eu, Baroque Marina.Fernando José Karl
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