Realmente, meu caro amigo, devo contar que Godot acaba de morrer atrás da igreja luterana, e, no seu corpo magro, caem flocos de uma neve de romance russo.
Godot, que não mais respira, meio decomposto dentro desse caixão, é um resto de desespero, sem história e sem nome, que o frio da noite extinguiu.
Lembra do Godot de óculos com aros de prata, a dirigir seu Buick 49 entre as árvores, e que andava com chapéu de palha no areal da praia Brava a fumar um havana? Não o reconhecerias, meu amigo, se o visses inerte nesse caixão que seguimos pela rua apinhada com a neve. Talvez ainda sejamos surpreendidos por uma névoa, dessas que costumam cometer aparições nos enterros, uma névoa que é o próprio véu da melancolia.
Dentro do Café Atlântico, a mulher de vestido branco, que vê o caixão de Godot passar, é Isadora. Que circunstâncias atam seu destino ao de Godot? Não sei. Toda a atenção dela se concentra nos guarda-chuvas das pessoas que seguem o funeral de Godot, seguem com a mesma persistência de uns peixes velhos que – mesmo durante a derrocada da última respiração – ainda se revestem de recifes coralinos e de sal, para se acercarem com mais dignidade da inevitável dissolução no mar.
Isadora, que abomina esses peixes velhos que acompanham o caixão de Godot, detesta igualmente o discurso embalsamado do viscoso sentimentalismo pequeno-burguês e tenta opor, dia após dia, a beleza rombóide das igaçabas à ânfora grega, e, quando escreve, procura reduzir a complicação do vestuário retórico a uma folha simples de parreira.
Isadora, por outro lado, adora a nudez da luz (cujo exterior é o interior), adora a nudez do vento (que a si próprio se rodeia), e quer porque quer destruir o hálito sombrio do minotauro.
Fernando José Karl
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