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quarta-feira, 28 de outubro de 2009

Crônica de Rubens da Cunha

Publicada no dia 28 de outubro de 2009. Jornal A Notícia
ACORDAR É PRECISO?
Amanheceu desordenada. Antes de abrir os olhos, lembra-se do feito na noite passada. Por que a pessoa tem de acordar? Abre os olhos, Clara não está mais ali, claro que não estaria, claro que se levantou no meio da madrugada e saiu porta à fora, vida a dentro. Senta-se na beira da cama, espreguiça-se, olha o quarto desordenado também. O álcool, os risos, a comida, os olhares, mãos e língua, tudo volta embaralhado. Levanta-se, junta um pouco de roupa, põe no cesto de roupas sujas, pudesse se colocava lá dentro também. Tinha prometido que não cairia mais na armadilha de se apaixonar, de se lançar numa aventura com outra mulher, não com esse tipo de mulher que Clara era. Tão diferente do nome: escura, mesquinha, mas ao mesmo tempo tão sedutora. Abre mais os olhos, abre a janela, lá fora a vida amanhece para muitos. Logo ela será uma dessas formigas que vê caminhando lá embaixo. Talvez pudesse interromper o trabalho das formigas se se jogasse. São dez andares. Mais fácil trazer Clara de novo e jogá-la, aí, sim, estaria fazendo as coisas direito. Quando voltar, vai se livrar de todas as velharias que estão nesse apartamento. Deveria ter se livrado de Clara antes. Ela disse que, dessa vez, não iria embora, que era para ficar, que era para sempre, que Clara parecia tão sincera, tão verdade, e foi se chegando e foi se apertando nela, que não teve escolha: acreditou, mais uma vez, a quinta. Entra no banheiro, despe-se. A água escorre corpo abaixo, olha a espuma sumir-se no ralo. Cinco vezes, cinco vezes trouxe Clara para a sua vida, e cinco vezes foi abandonada. A culpa não poderia ser de Clara, mas somente sua, afinal, Clara era movida apenas pelos seus sins. Enxuga-se. Olha-se no espelho, bonita ainda, tem certeza. A pele macia, os seios firmes, sorriso inteiro, cabelos vastos, tudo nela resplandecia beleza e juventude, por que então essa dependência, esse contínuo perdão às falhas de Clara? Sempre o mesmo, quase um vício, tanto dela em se deixar levar, quanto de Clara em pedir sempre um retorno, sempre uma segunda chance. Abre o guardarroupa. Veste-se da maneira mais elegante possível. É preciso superar a dor de alguma maneira, nem que seja pela roupa. No canto, uma blusa de Clara, lembra-se do dia em que compraram. Quando voltar de noite, a blusa, as fotos, os fios de cabelo que por acaso ainda estiverem sobre a cama, tudo vai para o lixo, tudo vai sair desse apartamento. À noite.Tenta tomar um café antes de sair. Não consegue. A garganta fecha-se diante de mais uma partida. A cadeira onde Clara costumava se sentar ainda está do jeito que ela deixou, meio de lado. Uma lágrima por sobre o rímel. Controla-se. Levanta-se. O dia de trabalho intenso à espera. É provável que, quando voltar, Clara esteja novamente sentada na porta pedindo perdão. É provável que, pela sexta vez, diga sim, pode ficar. É provável que jamais conseguirá ser de outra forma. Tranca a porta atrás de si. Por que será que as pessoas têm de sempre acordar?

Rubens da Cunha

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