quarta-feira, 30 de março de 2011
O AMOR
não tem mais sabor
acabou-se a vida
quando o amor
não tem mais saída
acabou-se o amor
Antonio Carlos Floriano
terça-feira, 29 de março de 2011
FATURA DE FLOR
uma pedra solta
sobre a sombra doutra
uma louça azul
dentro do prisma
na cisma das cores
como fatura de flor
essa cor de dentro
do fruto que invento
flor que ímã os olhos
em lágrimas de limalhas
esta flor literária
uma gota – uma flor
o belo é simples e magoa
o orgulho do poeta
Marcelo Steil
NA PEQUENA COLINA DE PINHEIROS
as colunas cinzas do cemitério
guardam kanjis
com nomes ilegíveis
tantas aflições esquecidas
no silêncio abreviado da tarde
nenhum fogo fátuo explode
e te traz na minha lembrança
Antonio Carlos Floriano
sábado, 26 de março de 2011
PASSEIO EM LIMA
sinto no rosto o calor
de suas flores vermelhas(como
se dentro de um relâmpago)
Podiam ser de trapo
essas flores, podia
ser de pano esse
clarão vegetal -
que é a mesma a matéria da flor,
da palavra
e da alegria no coração de cada homem.
Ferreira Gullar
Do livro NA VERTIGEM DO DIA
quarta-feira, 23 de março de 2011
Um poema de Celso de Alencar
por trás de meus olhos
a língua trêmula da irmã
mais velha de minha mãe.
Nas visitas dos domingos
não me permitiam a entrada
e eu aguardava ensaiando
pequenos passos pelo imenso
jardim da antiga
fábrica de chá.
Foi o acaso que colocou
em mim o cômodo
protegido pelas fortes
barras de ferro.
Minha mãe sentada
deitava seus olhos
sobre a irmã
que se via
nua completamente
mijando sobre a cama
e rindo apressadamente
feito louca.
Ainda que a claridade
fosse tênue
eu via a sua urina
espirrando de sua buceta colossal
e os seus dois peitos frouxos.
E minha tia ao ver-me
com seus olhos arregalados
mostrou-me a língua
da cor do corvo e
tombou como
uma árvore seca
deixando exposta a sua nádega encurvada.
E sob gritos que só
à loucura cabe
expulsou minha
mãe so quarto.
Do livro TESTAMENTOS
Isidoro
“Feio por demais” eram a desculpa das moças que rechaçavam Isidoro. Não que a feiúra seja um impedimento 100% para se arranjar alguém, mas o problema de Isidoro era a falta de atenuantes. No mundo da beleza explícita, os feios não têm lá a vida muito fácil, porém sempre se desenvolve uma simpatia, uma malemolência qualquer, com um pouco de sorte se enriquece, ou se tem algum talento, talvez até algum talento físico que possa surpreender as desavisadas, enfim, os atenuantes para a feiúra são inúmeros. Isidoro não os possuía. Não que fosse má pessoa, longe disso, era até trabalhador, honesto, tinha já comprado um terreno, começava a construir sua casa. Era rapaz seguro, ajuizado.
O problema é que não passava disso. “Juízo demais faz mal”, dizia a mãe de Isidoro que não acreditava muito no provérbio “quem ama o feio bonito lhe parece”. Ela até se martirizava em ver o filho tão desprovido de uma cara apresentável. Não só isso, mas desprovido de qualquer coisa que pudesse melhorar sua condição. O pior era a falta de elã, de aura. A mãe tentava a todo custo encaminhar Isidoro, ora para um grupo na igreja, ora para uns bailes no domingo à tarde, também não perdia a oportunidade de apresentar Isidoro, na flor de seus 25 anos, para toda viúva com menos de 50 que ele conhecesse. “Você precisa acontecer, menino”. Insistia a mãe. Mas Isidoro pouco acontecia. Cada vez mais casmurro, cada vez mais acabrunhado diante de sua vida vazia, inicialmente recorreu a prostitutas, afinal a essas mulheres não é dado o direito de escolha. Pelo menos ele assim achava. Não foi tão simples.
Isidoro era sensível, sabia que aquela mulher embaixo dele não estava ali, ou estava ali por causa daquelas notas em sua carteira. Nada mais. Nada demais. Isidoro sonhava encontrar uma mulher que lhe olhasse diferente, acima, adentro, além de sua casca. Mas qualquer olhar feminino esbarrava sempre na sua falta de atitude, na sua capacidade de superar a feiúra. Depois Isidoro enfiou-se no trabalho, nos fundos de um almoxarifado ele organizava tudo, menos sua vida. Peça por peça, código por código. Dia após dia. Era um daqueles funcionários que muitos sabem da existência, mas poucos sabem o nome. Claro, lembravam dele pelo predicado “o feio do almoxarifado”, nada além disso.
Certa feita, a psicóloga da empresa onde Isidoro trabalhava o avistou. Moça ainda cheia das utopias, viu naquele homem uma diferença que os outros não possuíam: aquela amargura que somente a feiúra concede às suas vítimas. A psicóloga chamou Isidoro. Tímido, ele compareceu. Ao ser inquirido por moça tão bonita Isidoro foi todo palavra. Falou durante horas, dias. As sessões ultrapassaram os limites da empresa, do profissionalismo, dos encontros no parque durante o fim de semana, dos bares. As sessões continuam no quarto do quarto e sala da psicóloga lá no centro da cidade. Isidoro já não é mais “o feio do almoxarifado”. Elevaram-no, as mulheres principalmente, à categoria de “feio, mas interessante”.
Rubens da Cunha
terça-feira, 22 de março de 2011
Poeta reaparece após terremoto
foi nesta terra de flores que reapareceu ou foi encontrado o poeta marcelo steil.
muitos diziam que ele havia fundido-se entre os metais com os quais trabalha e que sua densidade havia diminuido a ponto de desaparecer. especulações que se faziam nas cochias deste sitio estranho dos singulares.
abriremos um colchete para os mais aguçados ou inguiçados que queiram descobrir que tipo de densidade possuem
o bardo continua escrevendo e muito bem devo dizer, para quem possa interessar. estou com vários poemas (três volumosos tomos de poemas escritos ao longo de seu suposto desaparecimento entre as flores de blumenau (repito o plural é die blumen). em um dos volumes aparecem os vestígios do cante jondo em poemas cujos sextetos compostos em dísticos rimados versam sobre a cultura da tauromaquia.
sou portador da boa nova senhores! marcelo steil ainda existe! eis as provas:
Poema de MaRcElo sTeIl
fruto do amor desfeito
c’os pêlos do pincel
o pintor pintou-se igual
ao sonho que tivera
quando foi-se o carnaval
riscou rude na calçada
com o caco duma telha
o nome da moça amada
horas depois de perdê-la
e esculpiu no próprio punho
com estiletes de inverno
o aroma do deserto
que ficou entre seus gestos
segunda-feira, 21 de março de 2011
A CRIANÇA DO MUNDO ANJO DO MUNDO
Este sono indeciso.
Portanto o nosso olhar é nítido de céu.
Marcos Konder Reis
Do livro Um privilégio de pássaros
quinta-feira, 17 de março de 2011
A ONDA DE HOKUSSAI SOBRE SENDAI
o poema:
um paralelo
de luzes brancas na vertical
tínhamos a paciência
de esperar o tufão engolir a noite
sucumbir ao lento deslizar dos trilhos
trilhando a noite multicor de tóquio
surpreendo-me com a antevisão do futuro
a previsão da catástrofe
a certeza do day after
pasmo diante da conformação
a imposição do futuro
levantam-se
com o trabalho nas mãos
vão recriar a beleza
devolver aos nossos olhos
o que levou a natureza
Antonio Carlos Floriano
do livro CADERNOS DO JAPÃO
segunda-feira, 14 de março de 2011
O PREÇO DO LIVRO
o Esquimó de Fabrício Corsaletti
encostado em uma arara
das lojas renner
tinha uma promoção
de boas calças
por apenas trinta e nove reais
só não tinha o meu número
Antonio Carlos Floriano
do avô guardei
o último cinzeiro
a última faca
-faz algum tempo
o cinzeiro sumiu
desde então
guardo do avô
a última faca
FABRÍCIO CORSALETTI
do livro ESQUIMÓ
quarta-feira, 9 de março de 2011
Sana me de formas turvas, Domine. Sana me da miséria tumular. Sana me do ríctus da amargura. Sana me do conturbado vendaval de Carrascozza. Sana me de não fazer ablução com água de estrela. Sana me de crótalos marinhos envenenados. Sana me de cadáveres dragados nos pauis. Sana me com os Santos Óleos e o azeite dos doentes. Sana me de fétidas palavras. Sana me. Sana me com a força da doçura. Sana me com a força da poesia. Sana me com a força da música. Sana me com a força das mulheres e das crianças. Que língua, ossos e olhos sejam para sempre. A constelação dentro de ti: água imersa em água. Buddah é o que acontece na pureza. Daqui há bilhões de anos, tua respiração um Buddah: será hoje! Buddah é o ar: não é um, nem um não. Mistura de ambos. Não é um: é concha, Órion, vento. Nem um não: Buddah é sim. Mistura de ambos: Buddah é, sim, concha, Órion, vento. Quanto mais próxima a língua da origem da chuva, menos fel e gramática. O acaso espreita da folha em branco. Toda sede do céu é de abismo e vivace sorvo, touro de mar caço à unha: oro a Orum, peço que a neve nô caia nas árvores vergadas pela névoa. O pensamento quer matar a sede na chuva. Quanto mais perto da música de câmara, mais a língua venta um acorde que amanhece esse virgem verso, esse rosário de buirás, esse kami na imensa altura do vento. Sonhar paraíso que enxágua retinas em moinhos-de-vento. No paraíso, esquecidos de tudo, jogamos búzios, modelamos o barro, adormecidos em camas de ilusão, acordados pelo assovio de um círculo branco. No paraíso, um dia, palavras de Shiva Nataraj, outro subimos a encosta pedrenta, saltamos da beira do abismo à solitude do jarro. Ontem somos mulheres, fritamos peixe, ou amanhã, homens, varremos a casa. Sábado, porque só há sábado no paraíso, crianças sopram o sol e o perfume do sol nos impregna com duas eternidades. Quando morremos, sim, porque há morte no paraíso, em cemitérios não nos acostumamos, fugimos pelas crinas de garças, escutando na barca Nautikon a respiração de Buddah, a çankha de Buddah. Sob o linho castiço da chuva, a treva horrível de nosso espírito vocifera claros nomes serenos. Atravesso o deserto com uma pedra no fundo do poço. Tanto azul de águas, mas a pedra, taciturna monja sem sol, nada espera, é só uma pedra envolta em antigo silêncio. Bem no fundo do mar de Abrolhos, esta pedra, seca por dentro. Tudo se pode falar: a transparência contínua, a praia com bicicletas. Eu rezarei a noa de um colar sem sombras, que te guardará da ilusão enorme. As relíquias de um domingo de ramos no copo d’água e nunca mais te verei embaixo da figueira. À sombra adriática do desejo eu busco – o vento que ergueu tua saia – a saia com que baixaste ao túmulo. A última flor do Lácio afina a língua no elixir primitivo que enovela a pedra sânscrita, pedra que os construtores desprezaram. Com ela posso segredar sargaço, grafismo, água à língua. Amigos, inimigos, não acordem as banhistas nuas na piscina. Elas nem sabem que o Arcanjo podia vir acordá-las com pizicatos de violoncelo. Tomara que nunca venha. Só assim as adormecidas continuam nuas. Avança um acorde de piano no esquecimento como dardo de luz brincando. Eu tenho motivos de sobra para ficar entre águas e conchas. Eu quero mar, ritmo, gôndola. Eu quero ar, clarabóia, agave. Tenho motivos que a luz desconhece. Só o escuro sabe caves de adágio.
VOCÊ ASSINALOU DE VERMELHO
para ser um dia especial em sua vida
se bem que todos os seus dias
são especiais
você sempre canta
e o que sonha
sempre faz
se bem que você é bem mais
estranho do que imaginava
vive a cada dia
um ano inteiro
cada momento
como se fosse o derradeiro
e o que me mata
vive cada beijo
como se fosse o primeiro
BENTO NASCIMENTO
Itajai (1962 - 1993)
terça-feira, 8 de março de 2011
Crônica de Rubens da Cunha - Perguntar não ofende?
PERGUNTAR NÃO OFENDE?
Se tem um ditado popular que me intriga é o “perguntar não ofende”. Como assim? É certo: há perguntas e perguntas. Há o perguntar infantil, o perguntar de quem pede socorro, de quem quer uma chance, há o perguntar de quem já sabe a resposta, ou de que só quer iniciar uma conversa. Há o perguntar que é só provocação à gente que merece ser provocada: políticos, sub-celebridades, gente pretensiosa, gente desonesta, merece mesmo perguntas constrangedoras jogadas na cara, debulhadas sem dó nem piedade. Há o perguntar da artimanha, do engodo, da sedução. O perguntar é um direito inalienável, o não responder também. O perguntar move a ciência, move até mesmo a fé, essa rocha inimperguntável: Jeremias, o profeta questionador, está aí para afirmar que perguntar e ter fé podem conviver, se não em harmonia, naquela desarmonia que só a interrogação pode dar ao humano. Jesus fez no instante derradeiro de sua vida terrena uma interrogação ao pai. Há inúmeros santos questionadores. Deus também pode ser visto, ou acreditado, como uma pergunta, muito mais do que uma resposta. O perguntar muda nossa entonação, criamos até um símbolo para ele na escrita: o curvilíneo ponto de interrogação. Quanto ao ditado “perguntar não ofende”, o que me irrita é que o perguntador, muitas vezes hipocritamente, se escuda atrás dele. Claro que perguntar ofende, toda pergunta é ofensiva. No senso comum, ofender é uma coisa ruim, que ataca, agride, porém ofender é também fender, enfrentar algo, uma segurança, uma mentira, uma dignidade, uma verdade. Toda pergunta quer ofender, quer abrir, quer ter resposta para algo que não se sabe, ou se sabe à sombra da dúvida. A pergunta ofende o perguntado tanto quanto o sol ofende a manhã, a chuva ofende o chão seco. É uma agressão, uma invasão, às vezes benéfica, às vezes daninha, por isso não acredito no provérbio “perguntar não ofende”. Ou melhor, o vejo como um artifício, uma defesa que coloca a pergunta num nível abaixo da afirmação. A afirmação pressupõe certeza, então o sujeito que afirma tem que bancar o que diz, já a pergunta traz sobre si o espectro da dúvida. Não foi afirmado, foi perguntado, portanto o perguntador não pode ser responsabilizado por isso. A lógica parece simples, mas a linguagem não é tão simples, tão preto no branco. A linguagem é um espaço cinza, dessa forma, muitas vezes, uma pergunta traz dentro dela mais afirmação e mais ofensa (aqui no sentido pejorativo) do que a mais terrível das certezas. A pergunta, sob essa máscara de inocência, pode ser uma arma perigosa nas mãos dos perigosos, ou uma salvadora nas mãos dos salvadores. Como tudo na vida, é uma questão de jeito, de tom, de maleabilidade no uso da pergunta. Tal maleabilidade não parece ser muito usada por quem faz uso de um provérbio tão capenga quanto esse “perguntar não ofende”.
quarta-feira, 2 de março de 2011
Cindy Sherman

Não é o poeta quem diz a palavra que, sendo mistério, é distante. Renunciar ao antigo modo como usava a palavra entristece o poeta? Pois esta renúncia é o poder mais elevado da palavra. E o que dizia o antigo modo de usar a palavra? Que algo pudesse existir sem ela. E o que diz o modo novo? Diz que nenhuma coisa é onde falta, falha, quebra a palavra. E coisa, o que é? Aquilo que, de alguma maneira, é. Nessa acepção, até deus é uma coisa. É difícil encontrar a palavra para a essência da linguagem. Somente quando se encontra a palavra para a coisa, a coisa é coisa. Não será essa coisa, o que e como ela é, algo em nome de seu nome? O poeta não diz, e, reverente, escuta a palavra dizer-se. A palavra vem da terceira margem do rio, ali onde a razão e lógica devem ser servas, e servas reverentes. O poeta só não renuncia ao mistério da palavra, esta jóia delicada e preciosa, que não pertence a este mundo nem ao outro.
Fernando José Karl
terça-feira, 1 de março de 2011
Hokusai (1760-1849)

A POBREZA ESTILÍSTICA DA BRISA
“O zazen, o agora, um sopro,
tudo é eternidade”.
(Yoka Daishi)
A brisa atravessa o muro de pedra,
sopra flores em iguanas e retinas.
Antigamente foi princesa,
lambia sobrancelhas da deusa Saho,
via lágrimas no Olho do olho.
No século I vivia no pulmão da Phonte,
comia terra, benzia pedras e gatos.
Agora mata a sede no orvalho branco.
O EUCALIPTO DE HOKUSAI
No alto eucalipto,
o vaso com essência de capim silvestre.
Quem o esqueceu na altura,
equilibrado na ramagem?
Foi Hokusai, sempre que chove nos dias,
inventa um eucalipto na neblina,
e, lá no cimo da árvore perfumada,
na fina ramagem abandona o vaso.
Se venta, do alto eucalipto cai
um poema com essência d’água.
CERIMÔNIA DE FLORES
“Nunca se esqueça
do gosto de solidão
do orvalho branco”
(Bashô)
Shikô,
um dos Dez Sábios da escola de Bashô,
enquanto elabora – sem intenção – o ikebana,
medita no golfinho que segue a jangada:
lua n’água
empoleirada
A ARTE CAVALHEIRESCA DO ARQUEIRO ZEN
“Calma de primavera –
o monge da montanha
espia através da cerca”.
(Issa)
Kenzo Awa sabe que, nos caracteres chineses,
cada palavra acumula em si mesma
uma espécie de brilho interno:
constelação
que alonga cardumes
de órions contra sirius
DO LIVRO BRANCO DE HATTOTI TOHÔ
“De boca aberta,
contemplando as flores caídas,
a criança é um Buddah”.
(Kubutsu)
Hattori Tohô risca no papel de arroz
um concerto de bruma.
Risca também uma estrada vazia:
a jangada joga o mar
caminho descalço
A DEUSA SAHO
“Nem mesmo seu nome é conhecido:
flores de capim
à beira de um riacho”.
(Chiun)
A deusa Saho sonha com Sôgi.
Sôgi sonha com a deusa Sahô.
Água que os desnuda:
na salgada branca espuma,
nudez vai e volta.
KOAN MARINHO
“Mar de primavera –
o dia todo
lentamente ondula”.
(Buson)
Issa e seu poema sobre a solidão
entram no mar.
Issa se molha,
o poema pula um céu neste silêncio:
azul pra todo lado.
CHA NO YÚ
(O objetivo da cerimônia do chá
é purificar seis sentidos)
Kakemono na sala de chá:
flores de cerejeira no vaso de barro.
Água ferve na chaleira, escorre da folha de bambu.
Audição se purifica.
Quietas
as linhas da mão de mestre Rikiú.
VOLTA DE BARCO
ESCRITO EM JAPONÊS
E DEPOIS TRADUZIDO
Ano hanto no mawari o fune
de mawarimashita
Dei uma volta de barco ao redor
daquela península
BARCOS PARA A GUEIXA DE VOZ BRANCA
yuku fune ya: barcos que partem
nani mo oto nashi: não há barulho algum
ogusa ni: no capim
TUDO TEM NATUREZA BÚDICA
Um templo com tanque musgoso para o escorpião:
aberto o cristal da casca,
inocência escura.
A BICICLETA DE BUDA
Eu tive bicicleta de Buddah:
não afastava ilusões nem procurava a verdade.
Salsugem, sargaços e calmarias
nos pneus e guidom da bicicleta de Buddah.
Nada podia encontrar no céu além de nuvens,
sentava sob a Árvore Sagrada:
ia com a bicicleta de Buddah lá onde
o
vento
faz
imensas
curvas
de
cristal
ANGORÁ
A princesa Shai
– herdeira do império Chiuang –
mexe na constelação
para
segurar
o
angorá
pelos
pêlos
UM LOUVA-DEUS PARA ISSA
No meio do arvoredo um louva-deus se mexeu
a
sombra
também
O FILÓSOFO MO TSI
Enquanto o filósofo Mo tsi tenta fisgar
as carpas se espelhando no vento,
o milagre rabisca qualquer coisa no caderno de brisa.
Súbito uma carpa carregada pelo vento
entra pela única porta do Templo de Shirakawa.
Os olhos do filósofo, assombrados, fogem na neblina
e Mo tsi, cego, procura o caderno de brisa
embaixo do rio, do córrego, do riacho, do arroio,
na copa das árvores, debaixo da pedra,
nos bares, nos bordéis, nos hospitais,
nas barcas, nos copos de conhaque,
na infância, ah, e na infância encontra
o caderno de brisa com os dois olhos de Mo tsi
desenhados pelo milagre.
O AR UNE, O PENSAMENTO SEPARA
1. Qual a maior arma para subjugar Baal zebuh?
– O raciocínio correto.
2. Onde reside a força do filósofo Mo tsi?
– Na paciência de vislumbrar as curvas do bambual.
3. Que é o destemor?
– Indiferença à dor e aos desgostos.
4. Quem é pobre?
– Aquele que é ávido.
ANDANDO POR AÍ COM LEZAMA-BUDDAH
(Opus 1)
Súbito,
adivinhamos que a frase-brisa virá:
sete ervas, sete águas.
Oramos o conjuro,
molhamos na retina
a imagem inconclusa
de um cacto sem saída,
mas molhado na retina.
ANDANDO POR AÍ COM BUDDAH-LEZAMA
(Opus 2)
Angorá nos envolve:
imagem-angorá
traduzida para objeto.
Nos olhos do angorá a luz
vazando
para o íntimo silêncio.
PERGAMINHO
O paraíso é uma gravura chinesa
cercada de peixes miúdos, transparentes.
Contra as nuvens oníricas,
imortais eruditos do folclore chinês dão as boas-vindas
a um recém-chegado
ao domínio celeste:
este solo de oboé do século II.
PARA SER INSCRITO
NO MAUSOLÉU DA PRINCESA SHAI
O silêncio nunca dorme.
JUNTO À ALDEIA PERFUMADA
COM FLORES DE PESSEGUEIRO
“Ah!
foi tudo o que disse –
Monte Yoshino coberto de flores”.
(Teishitsu)
Sôin, à sombra do Monte Yoshino,
observa e ah!
o gafanhoto pula –
aroma fosforescente
cintila um instante.
Tão compenetrado Sôin,
não faz outra coisa durante o dia.
BASHÔ, NO MEIO DA NEVE,
CENSURA VERSOS QUE DEMONSTRAM
ARTESANATO EXCESSIVO
1.
Neve em Kyoto: o pinheiro vergado de nuvens.
O grou, em seu galho,
avista o ombro de Bashô.
Ombro vira galho.
2.
Neva na neve: Bashô vergado de neve.
A neve, sua brancura,
cai no grou
e no ombro de Bashô.
FOLHAS DE BAMBU: BAMBU PARA ONITSURA
No quintal de uma casa japonesa,
Onitsura se esforça
para encontrar a verdade.
Dez anos procurou as nuvens
que se molham no fundo do rio,
antes que as trutas saltem.
Quando desistiu,
Onitsura foi ao horto e ali se iluminou ao ver
as folhas de bambu:
peso do sol
as inclinava
às águas do chão
NOTURNO PARA A QUIETUDE DO PÁSSARO
PISANDO LAGO SECO
PRÓXIMO DE FOLHAS
Noite: cabelos molham a luz
suspensa
no lago
MAKOTO
(Verdade, sinceridade)
Faço uma linha: minha mão desaparece
se
toco
o
papel
WABI
(Solidão)
“Nossa vida no mundo é apenas um grande sonho”.
(Li Po)
O sol no pinheiro
um conta ao outro seu mistério
sem alterar a voz
SHIORI
(Delicadeza)
Buson escutou na Casa de Chá do Luar de Agosto,
que somente as obras sopradas pelo espírito são boas.
Com shi-i (visão própria),
Buson aprendeu que na maré vazante
águas flutuam conchas
sem medo
SATORI
Com o leque branco,
Hokushi
abana
carpas
no
lago
abafado
Alma de Hokushi:
o
leque
branco
* Estes poemas pertencem ao livro "O leque branco", de Fernando José Karl, a ser lançado brevemente pela editora paulista Lumme.