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quinta-feira, 18 de agosto de 2011

Edward Steichen, 1931



Dedico esta narrativa à Izi, quando ela ainda dizia "casoro".


Voava, sim, em pequeno sonhava que voava, abria em leque as clavículas, enchia a boca de chuva e principiava a flutuar, porque eu havia me tornado mais leve que o algodão. Era assim que acontecia o pré-voo: estava sereno entre as pessoas, no quintal, súbito me desinteressava da conversa e mil asas batiam sob minha blusa encardida: era impossível resistir: daí meus pés lentamente saíam do chão e tudo era tão real que, ainda hoje, lembro das coisas vistas lá de cima: e o que eu via mesmo?

Via o telhado inteiro do casarão avarandado onde eu morava perto do mar; via os caramanchões formando um túnel vegetal por cima dos portões ferrugentos de uma igreja; via as fachadas brancas dos casarões sob as altas paineiras; via um cavalo negro todo coberto de capim alto: via as taquareiras que balouçavam, estalavam, gemiam ao vento, vergando suas copas com uma graça flexível; via a chuva lavar tudo; via os pescadores em suas canoas a jogar búzios; via um muro velho, no quintal de uma casa indefinível; via a moça carregando um triste cacho de bananas verdes; via o meu pensamento enfiar-se pela guelra dos peixes pra aprender a singrar com eles pelas frias águas da enseada; via o sono daqueles que se embalavam nas redes de embira nova; e, para aproveitar que agora era dono de um reino só meu – o reino do ar – eu singrava para aqui e para ali feito uma folha de bétula no inverno; depois, como se nada tivesse acontecido, eu descia com a leveza de uma pluma – a língua da alma é a pluma – no mesmo quintal de onde havia alçado voo.

Devo ter crescido muito rápido porque, durante anos, não tornei a voar, e os meus sonhos ficaram escuros. Para que fiquem claros de novo, abandono o nariz no ar e arejo os olhos para dentro de meu crânio, só assim percebo que o não-sabido é bem mais poderoso que todos os desígnios conscientes e, sentado numa poltrona gasta, na varanda do casarão perto do mar, coloco um vinil riscado na vitrola, leio a “Arte Poética”, de Horácio, que resume o que deve ser qualquer livro ou pintura ou sinfonia ou o que seja: “Uma bela desordem precedida do furor poético”.


Fernando José Karl

Um comentário:

KAJUB disse...

Nostálgico... lindo!
Parabéns pelo blog!
Abraço.