...

quarta-feira, 26 de setembro de 2012


O gramofone, o colar de pérolas
e o frasco com água benta


Cada um de nós terá tido dessas noites insones, quando se escuta apenas a chuva.
         Penso durante a chuva e na minha decisão de amanhã ir ver, vinte anos depois, se ela ainda vive no sobrado rente ao mar.
         Tudo o que eu tenho na vida cabe numa caixa de sabonete, por isso preciso saber se ela ainda pisa as tábuas da varanda do sobrado onde costumávamos, deitados em redes de embira nova, passar os verões de nossa mocidade.   
Aqueles dias agora parecem frios, como se tivessem sido cavados na pedra. Acordado, mas de pálpebras fechadas, escuto passos sobre as carcomidas tábuas da varanda que estalam. Na verdade, não há tábuas da varanda, porque eu imagino o ruído, e o ruído desenha as tábuas da varanda do sobrado, desenha igualmente cada recanto do sobrado de velha madeira, circundado por ventos apressados.
         Eu não sou nada ou sou um jarro vazio sem aquela que, talvez, ainda viva no sobrado rente ao mar. Eu, sem ela, sou apenas uma dor que desemboca nos ossos. Ela que, há vinte anos, possuía voz tão de gaze como essas mulheres que, no bosque anoitecido, anunciam que os deuses devoram a cabeça dos que se recusam a sonhar. Suas palavras de algodão se dissolviam nos meus tímpanos à maneira de fios de rebuçado na concha da língua. Ela era muito pálida, com certo quebranto nos olhos machucados, um ar de romance e de languidez em toda sua pessoa, e a sua maior beleza estava nos cabelos negros, muito pesados, que deixava cair soltos sobre as costas num desalinho de nudez.   
         Dizia-se que tinha literatura e fazia frases.
         Não suporto mais o excesso de solidão e de silêncio que vincam os meus dias de amargura, por esse motivo é que amanhã irei ver se, vinte anos depois, ela ainda respira no sobrado rente ao mar.
         Um hálito perfumado de capinzal me invade quando chego perto das janelas escancaradas do sobrado enorme, com jardim, com piscina, com a escultura de mármore na entrada.
         A mulher que está no banco de pedra ante o mar, com os cotovelos pousados na mesa de madeira, essa mulher, cansada pela salsugem marinha, morreu ontem, mas como se morreu ainda pode estar com os cotovelos na mesa de madeira? É que estou imaginando que a mulher que morreu ontem está ali com os cotovelos na mesa de madeira e espia o mar, flagra a canoa levando embora a sua respiração.
         Se a canoa retornasse, mas a canoa não retornou.
         Recebo dos homens da agência funerária uma espécie de caixa onde enfiaram as cinzas que foram dela. Remexo as cinzas com o garfo, mas nas cinzas nada de nada: nenhum sopro de voz, nenhum osso, nenhum resquício de memória, nenhuma presença contínua.
          Vou até o mar deitar as cinzas e respiro entre as árvores, porque é só o que posso fazer agora. Ainda não sei porque permiti que queimassem, além de seu corpo, também o gramofone, o colar de pérolas e o frasco com água benta.



Fernando José Karl

Nenhum comentário: