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domingo, 4 de julho de 2010

Homenagem a Roberto Piva


Por Marco Vasques



Morre, em São Paulo, o poeta Roberto Piva

Roberto Piva é uma das figuras centrais da poesia brasileira. Em torno de 1960 um grupo de poetas amigos (Claudio Willer, Rodrigo de Haro, Bicelli, Sérgio Lima, De Franceschi e Roberto Piva) se reunia para ler poemas, ouvir música… Esse grupo provocou uma releitura do modernismo, a reafirmação do surrealismo e, sobretudo, introduziu a beat generation nas rodas literárias brasileiras. Roberto Piva, que faleceu ontem, sábado 03/07/2010, foi uma das figuras mais importante desse grupo. Ele acabara de ter sua obra completa reunida e publicada pela editora Globo em três volumes: Um estrangeiro na legião (2005), Mala na mão & asas pretas (2006) e Estranhos sinais de Saturno (2008). Após uma negociação iniciada pelo amigo e poeta Claudio Willer chego à residência de Roberto Piva, no bairro Santa Cecília, São Paulo, para entrevistá-lo. Já na entrada ele mostra um carimbo com o gavião de penacho. E diz: “O Oswald de Andrade, no Manifesto da poesia pau-brasil, disse que esquecemos o gavião de penacho, eu não esqueci, aqui está o meu”. Fala certeira! Mesmo lutando com o mal de Parkinson, Roberto Piva continuava um poeta agressivo ao bundismo que tomou conta da poesia brasileira. Ele não suportava os poetas preguiçosos. Nesta entrevista ele nos fala um pouco sobre sua trajetória, sobre poesia, xamanismo, literatura, política. Resta-nos agora celebrar o poeta lendo, discutindo e escrevendo sobre seu trabalho. Wilson Bueno, Saramago e, agora, Roberto Piva. O mundo fica menos. Reproduzo o meu último encontro com Piva. Foi numa manhã agradável de novembro de 2008 nossa última troca. O diálogo abaixo foi publicado na revista Agulha e no caderno IDEIAS do jornal A Notícia.


Fale um pouco sobre o grupo dos anos 1960. Você, Rodrigo de Haro, Claudio Willer...

Nós éramos um grupo de amigos. O nosso grande trunfo era a leitura. Líamos muito. O Oswald de Andrade, no “Manifesto da poesia pau-brasil”, diz que esquecemos o gavião de penachos. Eu não esqueci, fiz um carimbo em que coloco o gavião de penacho. Eu não esqueci. Voltando ao encontro que tivemos naquela década, posso dizer que foi um encontro muito proveitoso, muito rico em farras, em leituras, em trocas de experiências, de bibliografias, de discos. Eu, por exemplo, ouvia muito jazz, ainda ouço. Então trocávamos todo tipo de informação. Aproveitávamos o saber do outro. Esse é um grupo, podemos dizer assim, que enriqueceu pela troca, pelo apreço ao outro e pelo apreço exacerbado à vida. Vivíamos intensamente. Foi uma belíssima junção de pessoas de espírito de escrever diferente, mas que congregaram a partilha da poesia.

Vocês fizeram uma releitura do modernismo brasileiro e trouxeram o surrealismo para o centro da discussão poética.

O surrealismo está presente em toda a minha obra. A linha mestra da minha poesia passa pelo surrealismo, contudo não podemos esquecer do futurismo italiano e do futurismo português, sobretudo Fernando Pessoa, Sá-Carneiro e Almada Negreiros.

Seus dois primeiros livros, Paranóia e Piazza, já apontam um poeta maduro. O mesmo ocorre com o Willer de Jardins das provocações e do Rodrigo de Haro de Amigo da labareda. Contudo, nos últimos anos é que vocês vêm recebendo uma melhor acolhida da crítica e das gerações de novos poetas.

Octavio Paz já disse que a poesia é uma arte minoritária. E nesse sentido a força do que escrevíamos atingiu porque tem dinamite própria. Nunca fizemos concessões. Tínhamos como referência, além dos surrealistas que você já apontou, a Beat Generation que nos marcou profundamente tanto pela poesia ácida e voraz quanto pela atitude em relação ao mundo da experiência.


No livro Ciclone você diz que “os poetas têm que deixar de ser brocha para ser bruxos”. Qual o real significado desse trocadilho?

É a minha rechaça ao racionalismo absoluto que se instituiu na poesia brasileira. Tem poeta que disputa o título de mais racional, pode? Veja o que o Pasolini nos diz sobre isso:

Grido, nel cielo dove dondolò la mia culla:
Nessuno dei problemi degli anni cinquanta
Mi importa più! Tradisco i lividi
Moralisti che hanno fatto del socialismo um cattolicesimo
Ugualmente noioso! Ah, ah, la provincia impegnata!
Ah, ah, la gara a essere uno più poeta razionale dell’altro!
La droga, per professori poveri, dell’ideologia!
Abiuro dal Ridicolo decennio.

Ou seja:

Grito no céu onde embalou o meu berço:
Nenhum dos problemas dos anos cinqüenta
Me importa mais! Traio os lívidos
Moralistas que fizeram do socialismo um catolicismo
Igualmente tedioso! Ah, ah, a província empenhada!
Ah, ah, a competição para ser o poeta mais racional que o outro!
A droga para os professores pobres da ideologia!
Renego o ridículo do decênio.

Sou aquele que bebeu em Rimbaud, Artaud e Blake. Quero dizer que bebi do delírio do verbo de cada um para estremecer a estrutura da minha própria poesia. George Bataille também alerta sobre o lugar de onde vem a verdadeira poesia: “a verdadeira poesia se encontra fora das leis”.

Podemos voltar à questão dos poetas bruxos X brochas?

Nós, por exemplo, somos bruxos e não brochas. Você falava há pouco sobre o nosso grupo. Aquele foi um momento muito forte da poesia e da literatura. Os bruxos estão soltos aí.

Embora o misticismo esteja presente em outros livros seus, é em Ciclone que o Piva místico mais se revela.

Ciclone é um livro que me impressionou porque, depois que eu publiquei, começaram a existir ciclones em algumas partes do Brasil. Parece que a poesia se fez profecia e saiu do livro para devastar a terra. Essa desordem chegou mesmo a me apavorar. Mas você tem razão, porque nesse livro está o pacto da minha experiência com o xamanismo. Eu estudei muito o xamanismo e vivenciei experiências xamânicas. Eu fiz parte de grupo junguianos. Eles, inspirados em mim, organizaram a Fundação Paz Geia, da Carminha Levy. Fiz parte de outros grupos também e ainda fundei um grupo só para mim. No meu último livro Estranhos Sinais de Saturno, eu começo com a seguinte epígrafe: “Xamãs de todo o mundo, espalhem-se”.

Como você definiria um bom poeta? O que um bom poema tem que ter?


Um bom poema só vai ser bom se aliar emoção à poesia vivida. O Vinícius de Moraes já dizia que “nenhuma concessão à poesia não vivida”. “A poesia é subversão do corpo”, diz Octavio Paz. Então um bom poeta é aquele que ilumina a vida via verbo.

Sua poética reflete essa visão da poesia vivida. Há de algum modo a busca por trazer para o poema a primeira pessoa singular, o “eu” poético.

A poesia na primeira pessoa do singular é uma influência do Whitman, do surrealismo e da Beat Generation. Eu tinha uma tia que morava nos Estados Unidos. Então eu mandava uma carta com o nome de alguns livros e ela me enviava. Eu pedia também discos do Miles Davis, do Coltrane. O surrealismo é de uma importância fundamental para o nosso grupo. O surrealismo é tão importante para história da literatura que o Octavio Paz, antes de ganhar o Nobel, declarou na ONU que o século não será conhecido como o século do marxismo, mas como o do surrealismo.

Graciliano Ramos disse que todo escritor acaba escrevendo sobre si mesmo. É assim com você?

Claro, essa era a visão do Nietzsche também. Todo mundo no fundo está escrevendo sua própria biografia. Vai e volta e ele acaba caindo no imenso poço que é a existência. Minha obra é, sim, o meu espelho.

Por que tanta bronca com o socialismo?

Sou monarquista desde 1958.

Mas o que o incomoda tanto no socialismo?

Incomoda o fato de ele ter se transformado num catolicismo tedioso, repetindo Pasolini. Como isso não me atrai nem um pouco, eu pesquiso outras realidades políticas.

O que o atrai tanto no monarquismo?

Na monarquia me atrai a extrema hierarquização da cúpula, porque ela permite a maior anarquia das bases.

A editora Globo acaba de reunir a sua obra completa em três volumes. Como você recebe a acolhida?

Eu mereço. Afinal de contas estou na batalha, na guerrilha poética, faz muitas décadas. Eu recebo a acolhida como uma consequência natural do meu trabalho.

Você ainda se comunica com muitos poetas daquele grupo de 1960?


Eu falo muito com o Claudio Willer e com o conde de Haro, por telefone. Temos muitas lembranças daquela época. Eu conheci pessoas brilhantes naquele período, pessoas excepcionais. Uns morreram. Outros desapareceram. Nós estamos firmes.

Se você tivesse que escrever uma carta a um jovem poeta à maneira de Rilke, o que diria a ele?

Tenho muita coisa a dizer, seria necessário muito tempo. Simplificando: leiam Blake, Álvaro de Campos, os futuristas, os surrealistas, Artaud bastante Artaud. Porque Artaud seguiu à risca a proposição do Rimbaud de que um poeta se torna vidente. Ele foi um verdadeiro bruxo, um vidente. Ele fez um longo e sistemático desregramento de todos os sentidos.

Quais os novos poetas que você lê e recomenda?

A poesia brasileira é muito promissora e múltipla. Posso falar apenas por aqueles que acompanho. Sérgio Cohn, Danilo Monteiro...

Você gostaria de dizer algo mais?

Quero agradecer a tua vinda aqui a São Paulo. O teu Estado vive uns momentos difíceis, catastróficos [enchente de novembro de 2008, em Santa Catarina]. Espero que o povo catarinense possa se reerguer e que depois mergulhe na poesia. Estou grato pelo teu interesse pela minha poesia. Espero que possamos nos encontrar outras vezes. Eu estou fora de forma, pois o mal de Parkinson me afeta mais em alguns dias do que em outros.
POEMAS DE ROBERTO PIVA

I

As mãos invisíveis dedilham a canção sinistra
vibrando as fibras nervosas da medula
Os dentes mastigam o sem fim de peripaques nostálgicos
enquanto o mistério corre pela rua em chamas.
Aonde andará o poeta de pijama que escorrega e cai,
enquanto distraído sonha um mundo de estrelas?
Já não há céu, nem solo firme. Silencie-me! Silencie-me!
Sigo as labaredas memoráveis dos dias de luto e melancolia.
Quero a forma perfeita, o beijo, o cheiro do Apolo ruivo.
Sei da impossibilidade das horas, da complementaridade ilusória.
Olho o monte de esterco apodrecendo na vidraça entreaberta.
Janelas, penhascos, arranhásseis e corpos voadores de pedra.
Se a noite persegue minha vida, deposito monstros no aquário.
Os peixes caminham no asfalto e as mulheres usam gravatas.
Minha alma, meu desejo, minha imobilidade. Apenas eu!
Danço a quimera dos solitários e o presságio dos carecas.
Um poema, um segmento refratário. Não sei de mim.
As idéias são espasmos, e as palavras, coisa inútil.
Seria senil e insano se acreditasse no amanhã.
Vivo esse segundo que se arrasta, devorando-me.
II
O estrangeiro da legião de insetos
arrancou o grito de cólera e loucura
da boca arreganhada, não percebida,
do paranóico que mora nos ciclones
A bailarina, uma mulher pálida,
engole o último pedaço de vidro
arrebentado com a explosão atômica
de meus sonhos avulsos transtornados.
O erotismo atrapalhado do anão
que não mais se agüenta neste intervalo
de memórias e areias, noite e chamas.
Diminuindo cada vez mais, bactéria.
O uivo caminhando sobre a ponte imóvel.
O castelo e o muro dedilhados no quadro azul.
Sinto a introdução e o posfácio deste rio
que golpeia as paredes com mãos nuas.
O mínimo. O minúsculo. O quase nada.
Dedilhai as últimas notas vagas
que recordam a imagem deformada
do psicótico que caminha sobre o fio dental.

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