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terça-feira, 26 de abril de 2011

A solidão - Esse Cão de Guarda - Crônica de Rubens da Cunha

O que fazer quando a noite se instala e a solidão também não arreda o pé? Mais: não arreda o corpo todo. A solidão é um cão de guarda nessas noites de outono. Às vezes, eu queria ser aquele sujeito que envenena os animais da vizinhança. Eu queria envenenar a solidão. Dar pra ela um pedaço de linguiça cheio de chumbinho, de veneno de rato bem concentrado, bem amarrado na praga também, que é para garantir. Eu queria ver o corpo da solidão estrebuchar, os tremores acontecerem, os olhos murcharem e ela morrer, bem silenciosa, bem frágil, na minha porta. Isso eu queria, mas não sou o vizinho maldoso, sou o dono da solidão, tenho por ela cuidados de pai. Está comigo a tanto tempo que nem sei. Desde o tempo em que tinha a forma de cachorro e se chamava Tege, lá nos dentros de Araquari. Ser cachorro foi a primeira forma da solidão que me acompanha. Depois ela foi mudando. Foi uma monareta. Depois foi o ônibus da empresa Guaratuba. Esse ônibus eu pegava na BR-101 para ir estudar contabilidade. A solidão ajudava-me nos fechamentos dos balancetes de mentirinha, depois vinha caminhando comigo até o ponto. Ela também não entendia porque eu nunca conseguia fechar o balanço contábil na primeira tentativa, vai ver era porque eu lia “A Paixão Segundo GH” entre um lançamento e outro. A solidão lia comigo também, e me dizia “o inferno é meu máximo”, “eu quero o que eu te amo”. A solidão é fiel, mais até que a tristeza. Acompanhou-me no primeiro emprego. Eu quase em Pirabeiraba, mais balanços, mais fechamentos, mais acompanhamentos de produção, mais burocracia e a solidão ali, ora me ajudando a contar peças, ora recitando um verso muito simples e terno de Cora Coralina. Depois a solidão me levou a outro emprego e a uma faculdade. A solidão entendia tudo de comércio exterior, tentou me explicar, mas eu nada sabia dos trâmites marítimos, aéreos e terrestres das mercadorias. Eu não sabia o que a solidão me falava, mas eu ouvia e ouvia, porque entre uma regra do direito internacional e uma noção de economia, a solidão me dizia uns livros, umas canções que eu guardava e colecionava e devorava. Mais outro emprego, caminhões, fretes, chegadas e partidas e eu cada vez mais enraizado, cada vez mais dentro de mim gritando por alguma mudança. Como eu disse, a solidão é tão ou mais fiel que a tristeza, mas eu não estava mais acreditando nisso, eu estava mais era ouvindo a tristeza. A solidão, que não é boba, se transformou numa sala de aula no departamento de letras da faculdade e me fez ir lá visitá-la, me fez retornar aos tempos de aluno. Eu gostei, estou sendo aluno até hoje. Agora, a solidão está na minha porta novamente, transformada novamente em cachorro. Tem momentos que me irrita, queria tanto que ela saísse de perto de mim, que se fizesse um pouco mais à distância. Mas devo tanto à solidão, devo tanto a essa sua fidelidade canina. Ela há de me perdoar o clichê, assim como lhe perdoo a insistência em ficar comigo, mas entendo: eu sou a solidão da minha solidão.


Rubens da Cunha

2 comentários:

Experiências de Arte-educação disse...

Rubens, Parabéns pela crônica. Um abraço e um beijo.

mara paulina arruda disse...

Rubens, tua crônica sobre a solidão é linda.Um cão de guarda é uma comparação muito interessante. Um abraço e um beijo.