Vou à varanda. Nessa noite os rascantes
grunhidos das iguanas estão insuportáveis. Vou à varanda, eu disse. Quem me
espionasse de binóculo, digamos do açougue, da farmácia ou do bar fedorento da
esquina, veria um homem, calmo e soturno, largando o livro e indo à varanda.
Por um momento a
chuva dessa noite me envolve a ponto de me convencer a vestir o casaco de couro
e descer até a rua, predisposto a saciar uma súbita fome de assistir a um filme
qualquer da novelle vague francesa.
Assisto a um filme
de Truffaut, depois volto para casa e escrevo: É
meia-noite. A chuva está batendo nas janelas. Não era meia-noite. Não estava
chovendo.
Também escrevo: Betânia
apareceu, enroscando-se em mim igual a uma serpente de cipó e tão nua como se
fosse a um bacanal de Calígula, aquele romano demente que falava latim e que
nomeou cônsul seu cavalo. Acontece que Betânia não apareceu, nem estava
enroscada igual uma serpente de cipó e nua não estava como se fosse a um
bacanal de Calígula. Daí concluo que
escrever serve para nada, ou melhor, para dizer o nada, e que nada é impossível a quem escreve ficção.
À sombra do abajur, sou acossado por algumas cavilações
filosóficas, entre as quais destaco: “Como um padrão
neural se torna a imagem da chuva em meu cérebro é uma questão que a neurobiologia
ainda não elucidou. E não só a imagem da chuva, mas as imagens do homem
calmo e soturno, do livro, da varanda, de Betânia, da serpente, do cipó, do
bacanal, de Calígula romano e demente, do latim, do cônsul, do cavalo: de que
modo essas imagens se formam em meu cérebro?”
Naturalmente gastei invernos
edificando essa Betânia que vive nas caves de meu cérebro; Betânia que, por
existir apenas na minha memória, é distinta da outra, que nesse instante
respira – carne e
osso – em algum lugar remoto do oriente, respira e por isso se confunde
com a que carrego na parte interna da minha caixa craniana.
Porque no se le recibe fuera si
no sale de dentro, porque desejo tatuar o nada na minha retina
exausta é que escrevo, ao sabor do acaso, as frases dessa breve narrativa. E
pode existir algo mais fecundo que o acaso?
Sou, até onde sei, servo da origo
et fons (da origem e da fonte) e nunca escravo de artifícios, embora saiba
que a língua portuguesa que uso para escrever as mal traçadas linhas desse episódio
gratuito, seja uma língua de banzos, uma língua escura e bela.
Em suma: o que eu pretendo narrar aqui será certamente menos
copioso que certa enciclopédia chinesa que abrange mil seiscentos e vinte e
oito tomos de duzentas páginas in-oitavo.
Por que ainda
continuo a escrever essas notas fugidias, esses andamentos de peixe ao redor
das barcas? Às vezes, quando já não posso fazer outra coisa a não ser
folhear um romance ruim, é nesse instante que eu gostaria de ser um exímio
escritor que grafasse nas páginas áridas as frases de um livro intitulado A
noite acaba feito gim.
E o que eu, exímio escritor, grafaria nas páginas áridas
desse livro? Ainda não sei, talvez contasse nelas a ópera bufa de minha inútil
existência, quem sabe revelasse nelas – sem gratuitas retóricas nem palavras ilegíveis – o veio de uma água que
saciasse os tímpanos sequiosos com certa música – antiga e profunda – que os baldes da memória
puxassem das profundezas primitivas.
O ato de escrever – ou o exercício de combinar palavras que alarmem de aventura quem
as ouça ou leia – padece de misteriosas interrupções e brutais engasgos, de
lúgubres e arbitrários eclipses. A exemplo do vento, toda escritura é uma obra
em estado invisível, que só se torna visível se tivermos tempo de lê-la. A
palavra escrita é algo duradouro e morto; já a palavra oral possui algo de
alado e sagrado, como sugeriu Platão.
Por que eu, o autor
confesso de A noite acaba feito gim, escrevo?Para ser lido sem pressa, à
sombra do mar ou à sombra do vendaval; dentro do escritório ou no sofá da sala
de estar; num vagão de trem ou deitado numa rede de embira nova.
Fernando José Karl
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