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quinta-feira, 10 de maio de 2012


Vou à varanda. Nessa noite os rascantes grunhidos das iguanas estão insuportáveis. Vou à varanda, eu disse. Quem me espionasse de binóculo, digamos do açougue, da farmácia ou do bar fedorento da esquina, veria um homem, calmo e soturno, largando o livro e indo à varanda.
         Por um momento a chuva dessa noite me envolve a ponto de me convencer a vestir o casaco de couro e descer até a rua, predisposto a saciar uma súbita fome de assistir a um filme qualquer da novelle vague francesa.
         Assisto a um filme de Truffaut, depois volto para casa e escrevo: É meia-noite. A chuva está batendo nas janelas. Não era meia-noite. Não estava chovendo.
         Também escrevo: Betânia apareceu, enroscando-se em mim igual a uma serpente de cipó e tão nua como se fosse a um bacanal de Calígula, aquele romano demente que falava latim e que nomeou cônsul seu cavalo. Acontece que Betânia não apareceu, nem estava enroscada igual uma serpente de cipó e nua não estava como se fosse a um bacanal de Calígula. Daí concluo que  escrever serve para nada, ou melhor, para dizer o nada, e que nada é impossível a quem escreve ficção.
         À sombra do abajur, sou acossado por algumas cavilações filosóficas, entre as quais destaco: “Como um padrão neural se torna a imagem da chuva em meu cérebro é uma questão que a neurobiologia ainda não elucidou. E não só a imagem da chuva, mas as imagens do homem calmo e soturno, do livro, da varanda, de Betânia, da serpente, do cipó, do bacanal, de Calígula romano e demente, do latim, do cônsul, do cavalo: de que modo essas imagens se formam em meu cérebro?”
         Naturalmente gastei invernos edificando essa Betânia que vive nas caves de meu cérebro; Betânia que, por existir apenas na minha memória, é distinta da outra, que nesse instante respira – carne e osso – em algum lugar remoto do oriente, respira e por isso se confunde com a que carrego na parte interna da minha caixa craniana.
         Porque no se le recibe fuera si no sale de dentro, porque desejo tatuar o nada na minha retina exausta é que escrevo, ao sabor do acaso, as frases dessa breve narrativa. E pode existir algo mais fecundo que o acaso?
         Sou, até onde sei, servo da origo et fons (da origem e da fonte) e nunca escravo de artifícios, embora saiba que a língua portuguesa que uso para escrever as mal traçadas linhas desse episódio gratuito, seja uma língua de banzos, uma língua escura e bela. 
         Em suma: o que eu pretendo narrar aqui será certamente menos copioso que certa enciclopédia chinesa que abrange mil seiscentos e vinte e oito tomos de duzentas páginas in-oitavo.
         Por que ainda continuo a escrever essas notas fugidias, esses andamentos de peixe ao redor das barcas? Às vezes, quando já não posso fazer outra coisa a não ser folhear um romance ruim, é nesse instante que eu gostaria de ser um exímio escritor que grafasse nas páginas áridas as frases de um livro intitulado A noite acaba feito gim.
         E o que eu, exímio escritor, grafaria nas páginas áridas desse livro? Ainda não sei, talvez contasse nelas a ópera bufa de minha inútil existência, quem sabe revelasse nelas sem gratuitas retóricas nem palavras ilegíveis o veio de uma água que saciasse os tímpanos sequiosos com certa música – antiga e profunda – que os baldes da memória puxassem das profundezas primitivas.
         O ato de escrever – ou o exercício de combinar palavras que alarmem de aventura quem as ouça ou leia – padece de misteriosas interrupções e brutais engasgos, de lúgubres e arbitrários eclipses. A exemplo do vento, toda escritura é uma obra em estado invisível, que só se torna visível se tivermos tempo de lê-la. A palavra escrita é algo duradouro e morto; já a palavra oral possui algo de alado e sagrado, como sugeriu Platão.
         Por que eu, o autor confesso de A noite acaba feito gim, escrevo?Para ser lido sem pressa, à sombra do mar ou à sombra do vendaval; dentro do escritório ou no sofá da sala de estar; num vagão de trem ou deitado numa rede de embira nova. 


Fernando José Karl

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