A CONFISSÃO DE
CAVAAL BUTOR
Agora que ele estava principiando
a confessar
na bruma seu semblante e melodia.
Carlos Drummond de Andrade
A palavra foi
criada por guerreiros e caçadores
e é muito anterior
à ciência:
a palavra pesada
abafa o pensamento leve.
Em nenhum lugar
perguntam por Cavaal Butor,
e só Cavaal Butor sabe que é
privilégio dos cadáveres
nunca mais escutar
a chuva nas calhas, a música de câmara:
nunca mais ver o
azul de Matisse, a noite vasta:
nunca mais tocar a
pele do pão, a nudez da banhista:
nunca mais cheirar
os clamores da concha, o delírio azul marinho:
nunca mais sentir
na língua o sal, o açúcar.
Cavaal Butor
confessa: eu sempre quis, antes de morrer,
ser o cheiro da
cachaça em garrafa translúcida,
ser um porto, uma
sombra, uma moringa d'água,
ser a tranquila
contemplação do objeto natural.
Não quero perdão:
tudo o que eu quero
é não ser banquete para as larvas,
tudo o que quero
é que lavas catequizem larvas,
tudo o que eu quero
é,
mesmo com asa quebrada, escapar da cova rasa,
tudo o que eu quero
é saber que ardil devo usar
para imaginar o novo corpo
onde se esboça a
lucilação diversa e outra música.
Fernando José Karl
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