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terça-feira, 15 de maio de 2012


A CONFISSÃO DE CAVAAL BUTOR

Agora que ele estava principiando
a confessar
na bruma seu semblante e melodia.

Carlos Drummond de Andrade



A palavra foi criada por guerreiros e caçadores
e é muito anterior à ciência:
a palavra pesada abafa o pensamento leve.

Em nenhum lugar perguntam por Cavaal Butor,
e só Cavaal Butor sabe que é privilégio dos cadáveres
nunca mais escutar a chuva nas calhas, a música de câmara:
nunca mais ver o azul de Matisse, a noite vasta:
nunca mais tocar a pele do pão, a nudez da banhista:
nunca mais cheirar os clamores da concha, o delírio azul marinho:
nunca mais sentir na língua o sal, o açúcar.

Cavaal Butor confessa: eu sempre quis, antes de morrer,
ser o cheiro da cachaça em garrafa translúcida,
ser um porto, uma sombra, uma moringa d'água,
ser a tranquila contemplação do objeto natural.

Não quero perdão: 
tudo o que eu quero 
é não ser banquete para as larvas,
tudo o que quero 
é que lavas catequizem larvas,
tudo o que eu quero é, 
mesmo com asa quebrada, escapar da cova rasa,
tudo o que eu quero 
é saber que ardil devo usar 
para imaginar o novo corpo
onde se esboça a lucilação diversa e outra música.


Fernando José Karl

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