Não é diamante nem safira, senão ferro, duro ferro, a alma do velho Lycurgo, forjada com
amargo vinagre.
Arquejando por causa dos pulmões, que a
fumaça constante do cachimbo arruinou, o velho Lycurgo vive no toco, roendo um
chifre. Fala por falar, engasga com a saliva, quase não dorme. Ele escutou em
algum lugar que só os indivíduos rachados possuem aberturas para o além. No
entanto, o velho Lycurgo não consegue crer no além nem confia em nada.
O jardim, que ele rega todas as manhãs,
está coberto de folhas secas e vasos quebrados. Ele só rega, não varre, por
isso tudo fica sujo.
Assim que alcança a porta da cozinha, o
velho Lycurgo decide ferver chaleira com água. O vinil de um tango gira na
vitrola Elwo. A chaleira continua a ferver. Ele deita-se na espreguiçadeira,
acende o cachimbo, enquanto espera.
De frio dói o mamilo murcho de sua
mulher doente na cama. Há cinco anos ela sofre de cancro. O velho Lycurgo
apanha a chaleira com água fervente e derrama em cima da enferma. Escuta-se um
urro selvagem: a voz dela entra pelos ossos dele; para estancar a dor, ela rola
na cama, morde o travesseiro, bate com a cabeça na parede, contudo a dor só
aumenta, pois a pele está muito esfolada na altura na clavícula, que é onde se
instalou o cancro.
Depois do ato insano, em desespero o
velho Lycurgo vai para a rua e dobra a esquina, diminui o passo até parar,
encosta-se a uma parede e morre de saudade de Soraia – esse o nome dela – estendida na cama,
agonizante, porque a água fervida dói pra danar, mas não mata.
Soraia, mesmo com a
grave queimadura, enxuga as lágrimas e corre até a esquina, ajoelha e ampara a
cabeça do velho Lycurgo que, agora morto, não rói mais o chifre.
Soraia fica ali,
vendo desaparecer, do velho Lycurgo, o casco do navio, depois a proa, os
mastros, tudo, enfim.
Fernando José
Karl
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