...

sexta-feira, 18 de maio de 2012


Não é diamante nem safira, senão ferro, duro ferro, a alma do velho Lycurgo, forjada com amargo vinagre.
         Arquejando por causa dos pulmões, que a fumaça constante do cachimbo arruinou, o velho Lycurgo vive no toco, roendo um chifre. Fala por falar, engasga com a saliva, quase não dorme. Ele escutou em algum lugar que só os indivíduos rachados possuem aberturas para o além. No entanto, o velho Lycurgo não consegue crer no além nem confia em nada.
         O jardim, que ele rega todas as manhãs, está coberto de folhas secas e vasos quebrados. Ele só rega, não varre, por isso tudo fica sujo.
         Assim que alcança a porta da cozinha, o velho Lycurgo decide ferver chaleira com água. O vinil de um tango gira na vitrola Elwo. A chaleira continua a ferver. Ele deita-se na espreguiçadeira, acende o cachimbo, enquanto espera.
         De frio dói o mamilo murcho de sua mulher doente na cama. Há cinco anos ela sofre de cancro. O velho Lycurgo apanha a chaleira com água fervente e derrama em cima da enferma. Escuta-se um urro selvagem: a voz dela entra pelos ossos dele; para estancar a dor, ela rola na cama, morde o travesseiro, bate com a cabeça na parede, contudo a dor só aumenta, pois a pele está muito esfolada na altura na clavícula, que é onde se instalou o cancro.
         Depois do ato insano, em desespero o velho Lycurgo vai para a rua e dobra a esquina, diminui o passo até parar, encosta-se a uma parede e morre de saudade de Soraia – esse o nome dela – estendida na cama, agonizante, porque a água fervida dói pra danar, mas não mata.
         Soraia, mesmo com a grave queimadura, enxuga as lágrimas e corre até a esquina, ajoelha e ampara a cabeça do velho Lycurgo que, agora morto, não rói mais o chifre.
         Soraia fica ali, vendo desaparecer, do velho Lycurgo, o casco do navio, depois a proa, os mastros, tudo, enfim.

Fernando José Karl

Nenhum comentário: