...

quarta-feira, 5 de maio de 2010

Um texto de Marco Vasques



AHZERITURIS

O beijo tocou sua mão, secular. Ahzerituris não sabia e nem podia se livrar daquele primeiro beijo que gerou a sucessão de muitos outros. Sua linguagem começou pelas mãos, quando recebeu o primeiro beijo, ainda no útero materno. A própria mão já não era mais identificada como mão, mas o beijo de Ahzerituris. Uma bola de fogo a tocar corneta entre seus dedos, braços, e, depois, por todo o corpo. Como desejou se despir daquela miríade de beijos, uns mais sufocantes que outros. Seu corpo, agora, era uma ânfora de guardar beijos. Mesmo que não quisesse, e por mais força que fizesse, lá estava Ahzerituris: no altar, levando o beijo abominável do padre babão e tarado. Ahzerituris, que nunca frequentou qualquer reunião religiosa - em seu planeta isso era perfeitamente normal e saudável -, sempre ao badalar do ângelus já sabia de sua desgraça. Nas segundas e terças- feiras o beijo era colhido no altar, nas cerimônias de casamento. Assim Ahzerituris ia se metamorfoseando em ósculo. Estava nas enfermarias, no metrô, no ônibus, avião, maternidades, escolas, repartições públicas e privadas, motéis, praias, bosques, praças, escritos antigos e modernos, manuais para iniciantes... Enfim, quando percebeu que perdera toda a sua humanidade e que não passava de um gesto mecânico, insípido e de decoração social, Ahzerituris, que de homem sensível se tornara bibelô de salão de festa, esculpiu em mármore a imagem de um beijo terno e desapareceu do planeta Aicos, onde sua personificação já se havia pulverizado pelo excesso de uso e pela mecânica cotidiana. Contam os arboniois, povo do planeta de Arbono, que Ahzerituris se transformou na mais bela puta do planeta Terra, contudo desistiu deste planeta também e esculpiu, agora em ferro, um beijo com bafo de ferrugem acariciando uma parede de concreto.

Nenhum comentário: