...

quarta-feira, 26 de maio de 2010

Uma crônica de Rubens da Cunha

A FAMÍLIA ADESIVADA

Uma nova moda anda se impondo nas cidades, ou melhor, nos carros: aqueles adesivos que mostram como é a família do dono do carro a outros motoristas e pedestres. Enfim, na era dos reality shows, esta é mais uma mostra de que o público e o privado já não conhecem limites. No começo, eram apenas os bonequinhos tradicionais: a mãe, o pai, os filhinhos. Mas como faz tempo que o mundo não é mais tradicional, surgiram as variantes, tanto no design dos bonequinhos quanto em novas possibilidades menos “certinhas”. O lugar de colar esse retratinho lúdico da família é sempre o mesmo: a traseira dos carros. Mas as possibilidades variam. Comecei a notar isso quando vi um carro com adesivos apenas da mãe e de três crianças. Cadê o pai que não merece um cantinho também? Deve ter fugido, se ausentado, esquecido da família, como é típico em muitos homens. Perdeu sua condição de pai naquele carro. Também já vi apenas o pai e o filho, fiquei imaginando que talvez quem tenha colocado adesivo foi o filho, e lá no carro da mãe esteja ele de novo e a figura da mãe. Minha mente trágica não evitou a possibilidade da morte da mãe. Uma provável viuvez do pai, ou ainda a presença de uma madrasta que não merece adesivinho no carro. Esse é o mal dos adesivos, são muito genéricos. Não apresentam detalhes mais específicos. Depois começaram a surgir os animais: cães e gatos principalmente. Assim, primeiro surgiram algumas famílias completas mais um ou dois animais de estimação. Claro que o tradicional também sofreu suas alterações: já vi mulher com gato, homem com cachorro, casal com cachorro e gato. Vi até papagaio, mas esse era num carro de um avô e de uma avó, provavelmente, pois entre os adultos havia pelo menos oito crianças, mais os cães e gatos e, claro, o papagaio. Aquele carro era uma festa. Dias desses vi uma figura que representava claramente uma mulher mais velha e seus dois gatos. Achei simpático. Alguns casais ainda sem filhos se colocam lá, entre eles um coraçãozinho vermelhinho como convém à representação do amor. Minha mente trágica novamente trabalha contra, prevendo que o primeiro a se descolar ali será o coraçãozinho cheinho de amor. Depois o casalzinho amoroso se desfaz no primeiro acidente que houver. Definitivamente, minha razão é uma estraga prazeres do romantismo meu e alheio. Já vi também um bonequinho solitário, apenas ele. Fiquei imaginando o que leva um sujeito a se colar como solteiro na traseira de um carro, a subverter tanto a essência dessa moda que é mostrar ao mundo seu círculo mais pessoal de relações e colocar-se como autossuficiente para o mundo?Como toda moda, por mais simpática e inofensiva que seja, essa vai durar só algum tempo, (alguém se lembra daquelas manchas, ou buracos de tiro que infestaram carros alguns anos atrás?). Talvez até lá eu consiga ver outras configurações familiares ainda não vistas e também ficar imaginando que para cada família que vejo, tradicional ou não, enquanto estiverem ali devem estar felizes, o que já faz a vida ficar um pouco melhor.

3 comentários:

ítalo puccini disse...

eu gosto dessa capacidade do rubens de olhar para aquilo que tanto olhamos mas que na verdade não vemos.ou para aquilo que tanto vemos mas que na realidade não olhamos.

Protesto disse...

Texto gostoso de ler...

Anônimo disse...

Incrível como pequenas coisas do nosso cotidiano podem ser contadas de forma tão leve. Gosto muito da visão do Rubens sobre as coisas simples da vida.