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quarta-feira, 12 de maio de 2010

Uma crônica de Marco Vasques

BONS DIAS II


Bons dias! Aqui as coisas pouco mudaram. Para ser sincero, nada mudou. Os hospitais renovam seus pacientes. Flores nascem e secam todos os dias nos cemitérios. As tragédias são renovadas a cada telejornal. Uma aeronave que cai. Um novo terremoto para se esquecer o Haiti e o Chile. Um vazamento de óleo no mar. Um homem que esquarteja uma amante. Alguns padres que insistem em fornicar com meninos. E o mundo segue no mais absoluto cinismo. A única novidade da semana, digna de relato, é que o mendigo aqui do Córrego Grande, bairro em que moro, passa o dia para cima e para baixo falando um poema de Manuel Bandeira: “Vi ontem um bicho/Na imundice do pátio/Catando comida entre os detritos./Quando achava alguma coisa;/Não examinava nem cheirava:/Engolia com voracidade./O bicho não era um cão,/Não era um gato/Não era um rato./O bicho, meu Deus, era um homem.” Ele mesmo um bicho, que atravessa nossas ruas todos os dias. A voz que canta o poema está a nos mostrar a consolidação do poema. Ele, o mendigo, o próprio poema em carne. Quais corações, além do meu, ele tem dilacerado com sua ironia? Eu tenho dito que aqui as coisas não mudam, não mudam mesmo: mataram Kenefer. Ah! Os sonhos desta menina de sete anos, que foi violentada e enforcada, escorrerem pelas paredes de meu quarto. Eles evocam pinturas, todas contemporâneas. Sim. Aqui tudo é contemporâneo. Até as pinturas imaginadas ou sonhadas têm que ser contemporâneas. Todos os artistas se intitulam contemporâneos. As mortes e os medos são contemporâneos. Os assassinos, em seus depoimentos, culpam os curadores, pode? Sim. Um crime contemporâneo tem que ter um curador-cúmplice. E não pensem que se trata de uma metáfora, não é metáfora: os sonhos de Kenefer Maria de Jesus Magalhães continuam a escorrer pelas paredes de meu quarto e não se desgrudam dos meus sonhos. Piso, com os pés nus, em alguns deles. Num desses sonhos areias adentram nos meus olhos. Nada enxergo. É o sonho me livrando do sonho. Ilusão. Os sonhos de Kenefer e a voz do andarilho não me deixam e me jogam para o abismo.

4 comentários:

Unknown disse...

meu deus, Marco, tu conseguiu unir num texto algo da fábula de hoje em dia, do que temos feito, do que temos procurado fazer, do que temos esquecido de ouvir...
esse texto de fato é que me jogou no abismo da minha inútil contemporaneidade.

Priscila Lopes disse...

Eu não sou contemporânea. Eu sou do século XIX. E vou te dizer, (o cinismo) não mudou muita coisa!

Priscilalopes.com

Marco Vasques disse...

Que bom! É sempre bom saber que temos uma extemporânea (ahahah).

Márcia Vilarinho disse...

O cinismo do mundo faz o ser humano ser seu próprio avesso, arremetendo-nos ao sonho contemporâneo manchando nossas paredes internas sem que mutirão algum até agora tenha conseguido repintar o quadro dantesco que se nos apresenta. Continuemos, no entanto, porque somados acredito sermos muitos. uno-me a você. Abraços