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quarta-feira, 19 de maio de 2010

Uma crônica de Rubens da Cunha

A PRIMAVERA NO FIM DO TÚNEL

Lá fora, cinzas esfriam a manhã. Na TV, propagandas tentam convencer que o consumo é a salvação da alma. Além, um rádio. Reduz o volume e tenta ouvir melhor o rádio. Alguém raivoso se arvora dono da verdade. Deve cansar ser sempre dono da verdade, por isso vê alguns comunicadores tão cansados. Retorna à TV, a salvação da alma agora é tratamento capilar. Você quer reconstituir seu cabelo de forma natural? Tratamento definitivo. Shampoo Francisco Alves. Quem dá nome de um cantor a um shampoo? Francisco Alves, a voz. Era ele quem cantava “tornei-me um ébrio”? Não, este era o Vicente Celestino. De qualquer forma, era um tempo em que cantores tinham que cantar efetivamente. Olha pela janela. A frieza da manhã continua firme. As digressões continuam também firmes em sua cabeça. Lembra-se da tarde estranha que teve no dia anterior: uma mulher tirou as dentaduras na sua frente. Os dentes na mão. O riso todo vazio na boca. Ele afastou-se para não rir. Vergonha de sua boca toda prenhe de dentes. Lembra-se também da toda dentada Susana Vieira e sua fala numa propaganda sobre as benesses de um cola para dentaduras. Um paradoxo da publicidade. Há um paradoxo também nos dentes: se não se cuida deles apodrecem e caem, os dentes dos vivos são frágeis, já os dentes dos mortos permanecem firmes, grudados nos maxilares, são duradouros os dentes dos mortos. Por que será? A TV continua ligada, os canais continuam vomitando inutilidades: o resultado do futebol, esse incômodo que vai se agravar nos próximos meses. Dunga, o novo vilão da nação brasileira. Tanta paixão destinada ao objeto errado. Se um pouco mais desse apego a uma ideia fosse, por exemplo, destinada às câmeras de vereadores, às assembleias legislativas, às prefeituras, as coisas seriam diferentes. Ri um pouco, agora é ele quem está se arvorando dono da verdade. Cada um que destine sua paixão ao que lhe convier. Na TV, uma modelo passeia por Milão, entrevista brasileiros vencedores naquela cidade, inclusive a mulher de um jogador de futebol. Sem dúvida, uma bela vitória da loira. Cada um com a sua vocação e a sua sorte. Talvez a manhã termine sem chuva. Um pouco de sol à tarde lhe faria bem. Sairia da frente da TV e iria para frente da vida. Talvez encontrasse outras cenas estranhas como a mulher sem dentes, ou uma criação de patos que se alimentam de sopa de aletria, ou alemães dançando numa festa da banana. Sem coragem ainda para desligar a TV. Agora, é um notebook para comer com os olhos. Comer com os olhos é que o mundo está fazendo para conseguir salvar a alma. E ele, como vai salvar a alma? Consumindo? Ligando grátis? Pedindo ajuda? Assistindo a próxima novela? Talvez seja saindo de casa, mesmo que a manhã esteja acinzentando tudo, mesmo que o inverno esteja chegando e expulsando mais uma vez seu parco humor. Afinal, a mulher sem dentes ficará algum tempo na sua mente, nada poderá fazer quanto ao vômito festivo da TV. Terá que atravessar o inverno e esperar a primavera no fim do túnel, mais uma vez.

Um comentário:

Maurélio disse...

Maravilhosa crônica, parabéns.
Abraços