Das maneiras de (r)ir-se ao outro lado.
A vida é costura de moveres, cujo colear beira a ossatura
destemperada da terra. A vida é sempre mais de um lado,
a vida costurada e acostumada a tantas travessias.
Seu alinhavado não respeita traços retos,
tampouco pontos fixos. Apenas rir-se, ou seja,
atirar-se no rio como folha de seringueira
para brincar com a guaivira. Balé no meio do rio,
escultura de minúsculos toques, relances
de cristais sob meu olho. Olhamos. Claro que olhamos!
Rir-se é atravessar o Açu esse Itajaí corrente
que prende a gente nas idéias navegantes.
Rir-se é saber habitar dois mundos: vários aliás, aqui dentro.
Bem cedo a lua cheia, deixa a maré torrada
e a rampa da balsa inclinada. Pra cima, só o mestre lá no alto,
o “capitão”, o “arrais”. Cada lua e horário novo ensaio, novo turno.
A água do rio bailarina talentosa e voluptuosa seduz e gira
veloz depois da chuva e do rebojo. Dança no meio do rio
com muitas pernas ao mesmo tempo. Águas que choram
sob o sol e dançam com a chuva. Água de lágrimas escondidas
sob essa chuva que deixa a travessia mais cinza talvez, não menos bela.
A água veloz só perde pra pressa das gentes
quando chegam, aqui ou lá. Passam rápido os passarinhos
como um livro folheado ao vento.
Mas de qual lado estamos lendo este poema?
De qual lado estamos lendo essa travessia, esta navegação?
Com qual lado escrevo, em qual dos dois lados vivo?
Margem esquerda ou direita? Se na travessia temos lado ainda não,
vivemos alguns momentos em suspensão, flutuando nesta cidade dentro.
Dentro do ferry boat estamos no meio, atravessando
o rio Itajaí-açu, atravessando o dia, uma saudade, uma pressa
atravessando o tempo, o olhar olhando os barcos.
Atravessar o rio é como ler, é sempre o meio.
Atravessar o rio também possui fantasmas, imagens, lembranças.
Aqui, dentro desse meio, leio. Leio rostos como devo ser lido
Também por outros olhos. Leio as cores em movimento no andar
das pessoas e principalmente, leio e ouço as duas cidades.
Navios atravessam minha janela todos os dias. Nomes de mulheres
de todos os lugares do mundo passam por essa janela:
Ingrid, Oreanda, Harriet e Astrid. Outros tantos nomes, mas não importa.
O rio é esta imensa porta, uma soleira ondulante
levando histórias de chegadas e partidas. Aumento o volume da memória
e ouço há mais de trinta anos o som deste barco de lado a outro do rio.
Quantas idas e vindas sobre a balsa de aço. A mudança do poente
a cada estação, o rio de ouro, caminho amarelo do sonho.
Quando criança fazia várias travessias para ver o desenho na água, nada mais.
No alto do ferry boat eu e o dia resistindo contra a noite, contra a chegada.
A memória é onda que o pescador conhece. Memória navega
em cabotagem ao redor do tempo, do corpo.
Memória é como atravessar no ferry boat, de margem à margem do rio,
é criança vagando por entre as imagens do rio.
Cristiano Moreira
3 comentários:
Cristiano,
Bom saber que as tantas travessias não roubam de ti de ti este olhar criança
Beijo meu
do lado de cá da margem!
Marlene
Que poema lindo Cristiano Moreira. Um abraço daqui de Chapecó.
a vertigem do cristal que busca sua sombra onde serpentes abandonaram peles
belo texto
karl
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