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quarta-feira, 23 de dezembro de 2009

Uma crônica de Marco Vasques



O Itinerário

O sol bateu em suas costas de forma quase delicada. Não fossem a mancha de algumas lágrimas e o vômito existente no colchão, diria que sua noite tinha sido perfeita. Ela mesma acordou com a sensação de que seu caminho seria diferente. Não pegaria o mesmo ônibus e nem olharia nos mesmos olhos de sempre. Fugiria da mesmice instalada em seu cotidiano. Almejou inventar um modo distinto de cortar o pão, porém, quando pegou a faca, uma força a arrebatou dizendo que isso também já era neurose. Ela não poderia mudar todas as coisas da sua vida em um único dia e, sobretudo, se censurou por querer iniciar uma nova vida logo com um simples corte de pão. Abandonou o intento e comeu seu pão como fazia há anos. Foi ao banheiro. Encontrou o bacio cheio de sangue, mas também não se importou. Na pia, o sangue também se espalhara. Tudo parecia dentro da normalidade. Quando colocou seu corpo na rua, uma nova realidade se apresentava. Todas as mulheres que via carregavam um bebê recém-nascido no colo. Quase chorou, pois seu desejo materno se aflorava ao ver uma multidão de crianças ao colo de suas mães. Estranhou apenas não ter encontrado nenhum homem durante todo o trajeto. Só mulheres. As crianças, mesmo sem a vitalidade da visão, a olhavam. Ela mesma quase enlouqueceu com aquela multidão de olhares a sua volta. Aos poucos os olhos foram ganhando outra forma. Uns eram facas que cravavam suas mãos, outros socos no estômago. Encontrou uma multidão de olhos com pedaços de pau na mão a correr em sua direção. Se não fugisse, certamente seria linchada. Na esquina em que se escondera, dois pares de olhos azuis traziam chicotes de fios elétricos. Foram duas fortes chibatadas e ela de pronto sumiu. Não sabia mais onde se esconder. Tentou chegar ao seu apartamento, no entanto, ao colocar os pés na escadaria, percebeu que muitos olhos, com agulhas espetadas na retina, estavam deitados por todos os degraus. Mesmo machucando os pés, subiu. Entrou direto no banheiro. Olhou para o feto que boiava na água do bacio e deu a descarga. Foi até a sala, pegou o telefone e ligou para a delegacia pedindo ajuda, pois seu filho recém-nascido estava se afogando no bacio do banheiro, e a água já estava atingindo seu pescoço.

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