O Morto
Ao chegar em casa passou a revisar todos os quartos. As paredes sempre intactas na sua brancura a anunciar a solidão e o desespero. Uma casa gigantesca construída para todos os homens de seu sangue. Passou a mão no bolso esquerdo da calça de linho e tirou uma moeda onde mandou desenhar sua prole. Uma prole imensa. A moeda, de prata, continha o rosto de uma moça por ele idealizada. Mais abaixo havia alguns rostos infantis. Uma verdadeira árvore genealógica. Andou durante trinta anos com a família no bolso. Cansado de esperar por eles, jogou a moeda em um canto e saiu. Em sua imaginação berrou contra toda a família. Uma espera de trinta anos e eles não se movimentavam. Só andavam se ele os carregasse. Estava cansado. Após explorar todos os cantos da casa, como fazia diariamente, voltou ao local em que havia deixado os seus. Para seu espanto, nada encontrou. De imediato visualizou um seqüestro, alguém ligaria em pouco tempo pedindo o resgate. Soltariam um dos menores para provar que realmente se tratava de coisa séria. Então surgiu a idéia de que todos, pelo fato de ser seu aniversário, resolveram fazer uma surpresa. No momento em que acendesse a luz da cozinha eles estariam todos sorridentes à sua espera. Sim. Estão todos lá preparando uma surpresa, cogitou ele. Confiante que se tratava disso, foi direto para o banheiro, tomou banho e se vestiu esmeradamente, como nunca. Se olhou no espelho e sorriu. Hoje seria seu grande dia, um dia em que todos se vitalizariam para homenagear todo seu esforço, toda sua dedicação. Entrou na cozinha com muito cuidado. Ninguém o esperava. Desesperou-se. Tratou logo de procurar o senhor que, há trinta anos atrás, moldara os rostos no metal. Após uma obsessiva maratona, recebeu a notícia de que o senhor estava morto, no entanto, para seu alívio, encontrou sua esposa e, ao conversar com ela, descobriu que sua oficina estava intacta. Com uma longa explicação do caso, a velha, mesmo com a convicção de que se tratava de mais um louco perdido no mundo, permitiu que ele chafurdasse os moldes do ferreiro. Ele passou o dia na oficina a olhar uma multidão de famílias moldadas nos mais diversos tipos de metais. Uma família, cravada numa placa de ferro, era toda ferrugem. Outra, cuidadosamente filigranada em ouro, tinha um aspecto nobre, uma nobreza aristocrática. Não encontrou um vestígio de seus semelhantes. Passados alguns dias, ele, em sua imensa casa, sentado à frente da televisão, ouvia o noticiário de um navio que afundara no Canal da Mancha. Nenhum sobrevivente. Quando o repórter, já no fim da notícia, listou alguns pertences recuperados pela equipe de salvamento, citou com ênfase inusitada o fato de ter encontrado, no bolso esquerdo de uma calça de linho, uma moeda que estampava toda uma família, que, certamente, jazia no fundo do mar.
Ao chegar em casa passou a revisar todos os quartos. As paredes sempre intactas na sua brancura a anunciar a solidão e o desespero. Uma casa gigantesca construída para todos os homens de seu sangue. Passou a mão no bolso esquerdo da calça de linho e tirou uma moeda onde mandou desenhar sua prole. Uma prole imensa. A moeda, de prata, continha o rosto de uma moça por ele idealizada. Mais abaixo havia alguns rostos infantis. Uma verdadeira árvore genealógica. Andou durante trinta anos com a família no bolso. Cansado de esperar por eles, jogou a moeda em um canto e saiu. Em sua imaginação berrou contra toda a família. Uma espera de trinta anos e eles não se movimentavam. Só andavam se ele os carregasse. Estava cansado. Após explorar todos os cantos da casa, como fazia diariamente, voltou ao local em que havia deixado os seus. Para seu espanto, nada encontrou. De imediato visualizou um seqüestro, alguém ligaria em pouco tempo pedindo o resgate. Soltariam um dos menores para provar que realmente se tratava de coisa séria. Então surgiu a idéia de que todos, pelo fato de ser seu aniversário, resolveram fazer uma surpresa. No momento em que acendesse a luz da cozinha eles estariam todos sorridentes à sua espera. Sim. Estão todos lá preparando uma surpresa, cogitou ele. Confiante que se tratava disso, foi direto para o banheiro, tomou banho e se vestiu esmeradamente, como nunca. Se olhou no espelho e sorriu. Hoje seria seu grande dia, um dia em que todos se vitalizariam para homenagear todo seu esforço, toda sua dedicação. Entrou na cozinha com muito cuidado. Ninguém o esperava. Desesperou-se. Tratou logo de procurar o senhor que, há trinta anos atrás, moldara os rostos no metal. Após uma obsessiva maratona, recebeu a notícia de que o senhor estava morto, no entanto, para seu alívio, encontrou sua esposa e, ao conversar com ela, descobriu que sua oficina estava intacta. Com uma longa explicação do caso, a velha, mesmo com a convicção de que se tratava de mais um louco perdido no mundo, permitiu que ele chafurdasse os moldes do ferreiro. Ele passou o dia na oficina a olhar uma multidão de famílias moldadas nos mais diversos tipos de metais. Uma família, cravada numa placa de ferro, era toda ferrugem. Outra, cuidadosamente filigranada em ouro, tinha um aspecto nobre, uma nobreza aristocrática. Não encontrou um vestígio de seus semelhantes. Passados alguns dias, ele, em sua imensa casa, sentado à frente da televisão, ouvia o noticiário de um navio que afundara no Canal da Mancha. Nenhum sobrevivente. Quando o repórter, já no fim da notícia, listou alguns pertences recuperados pela equipe de salvamento, citou com ênfase inusitada o fato de ter encontrado, no bolso esquerdo de uma calça de linho, uma moeda que estampava toda uma família, que, certamente, jazia no fundo do mar.
2 comentários:
o essencial é mesmo ter linguagem: e isso tens, Marco
Karl
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