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quarta-feira, 4 de agosto de 2010

Uma crônica de Rubens da Cunha

JOÃO E MARIA

A manhã fria de um inverno qualquer. O silêncio dentro do carro acompanha João e Maria. Amavam-se, é certo. Quase gêmeos. Alma gêmea é certo. Mas algo se rompeu dentro dela, e como eram iguais algo imediatamente se rompeu dentro dele também. E assim estão: rompidos, mas juntos. Falta-lhes coragem para o último golpe, aquele em que a dor é maior, por mais libertadora que seja. Nos olhos se vê claramente as esperanças de que os rompimentos cicatrizarão. Maria espera que João cicatrize primeiro, pois sabe que, se ele se curar, ela será curada também. João está se esforçando. Tentou esquecer, tentou planejar o futuro, tentou reverter a dor. Mandou flores, chocolates, levou Maria a um restaurante tailandês, tirou dias de folga, foram para a serra, cavalgaram, riram diante de uma cachoeira chamada Véu-de-Noiva, lembraram-se de Maria de branco na igreja. João estava também tão branco que quase desmaiou. Rememoraram o passado, a vida que tiveram, tudo o que construíram. João perguntou a Maria se tudo isso tinha melhorado o rompimento. Ela quis mentir, mas sabia que se mentisse ele saberia, pois nele o rompimento também não teria melhorado. Quando voltaram da viagem a dor permaneceu. Os gestos ficaram mais confusos, mais constrangedores. Maria também se esforçou. Sabia que era a mais culpada, pois nela é que havia começado o rompimento. Nela deu-se o primeiro passo para esse momento estranho, esse abismo de silêncio e morte que se instaurou nas suas vidas. Como encher esse abismo com a carne amorosa de antes? Como reconstituir o tecido, as células, as moléculas do que eram? Maria pregou um sorriso na cara, adestrou as mãos para carinhos mais firmes na cara e nos baixos de João. Encostou-se mais a ele na tentativa de serem gêmeos de novo. Por uns dias, os exercícios de remendar o rompimento pareciam estar dando certo, parecia que tudo seria natural de novo, leve e rápido como sempre foi. Quase telepático como sempre foi. Mas João, apesar de entender os esforços de Maria, estava cada vez mais resignado. Na verdade, começou até a ficar afoito com a ideia de ser só novamente, de não ter que pensar sempre duplamente. Talvez com um pouco de coragem fosse ele quem desse o último golpe e dissesse é hora de acabar, prender a respiração, contar até três, e romper. Talvez pudessem aguentar a dor, talvez pudessem sobreviver rompidos, pois como estavam pouco estavam vivendo. A coragem antevista não veio. Não se fez corpo no corpo de João. Maria também não deu espaço a ideia de viver sem ele. Estão juntos, talvez um filho, pensaram, um cão, um gato, um peixe, uma tartaruga ou iguana, qualquer coisa outra que fosse viva. Nada se efetivava firme e possível. Nada se fazia matéria para encher o abismo do rompimento. Numa manhã fria de um inverno qualquer, João e Maria dentro do carro, já sabem o que fazer, já sabem como remendar o que se rompeu. Numa curva qualquer, os corpos e as almas silenciosas de João e Maria voltaram a ser uma coisa só e preencheram o abismo.

Um comentário:

Tania R C Nunes disse...

Rubens, sua crônica é espetacular, as palavras e o movimento que elas imprimem ao sentimento que relatam é excepcional!!!
Bjs,
Tania