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domingo, 5 de setembro de 2010

O último dia de Al Capone

E ter coração já não é metade do caminho?

Guimarães Rosa



Poucos depois, num Domingo de Ramos, morreu Al Capone com os testículos estraçalhados no ventilador. O que foram fazer ali? Chora, leitor, se tens lágrimas, por esse Al Capone e seus testículos perdidos. Os mafiosos quando envelhecem, mansos e peludos, com as bolotas nas virilhas, só pensam em nabo e onde colocar o nabo.

Como todo mafioso termina só – o nabo acaba sendo de quem convive com o nabo, – diria Lucrecius, na Roma antiga.

Al Capone não morreu súdito nem vencido. O esforço que, nas últimas semanas, fazia para abrir a torneira não durava muito; a dentadura despencou outra vez no lavabo; o rosto conservou porventura uma expressão pálida de tísico.

Escrevo aqui o fim de Al Capone – o scarface (cara de cicatriz) –, que adoeceu, também, por causa do prego que enfiou no pé; ganiu infinitamente. Antes de findar a agonia, que não foi curta, Al Capone pôs coroa gelada na cabeça, – coroa que, na realidade, era apenas uma tosca bacia de alumínio, dessas usadas para guardar roupa. No seu último dia de vida, Al Capone ainda tentou pegar o vento, pegou em nada, levantou nada e só ele pensava que a bacia de alumínio em sua cabeça era uma coroa imperial, de ouro maciço e cristais do oriente.

Amanheceu morto na rua, com o silêncio de uma sereia enterrado no tímpano, o que é muito mais terrível – o silêncio dela. Antes houvesse escutado as cantatas de Bach.

Eis, para sempre morto, o Al Capone que chega, neste milésimo de segundo, às regiões infernais.

O carrasco Göring, escolhido por Satanás para cuidar de Al Capone, não quis nem conversa com ele e, atendendo à letra fria da lei do geena (Do grego géenna,és: “lugar de tortura”), ou porque estava encharcado de rum, desferiu machadadas a todos os lados: Al Capone foi se desviando, Göring fincava o machado no ar, Al Capone fugia em direção ao nada, ao inferno – inferno este que o dogma sujou –, e que é, em vida, já ter a alma morta. O carrasco Göring continua desferindo machadadas que zunem no exíguo espaço do calabouço onde Al Capone não tem um minuto de sossego.

Göring dorme apenas 1 hora por dia. Al Capone aproveita e dorme também. Quando Göring acorda é aquela correria atrás de Al Capone que já se tornou mestre na arte de se desviar de machadadas. Mas Göring está envelhecendo a olhos vistos. Para ele não murmuram as sombras do amor. O pesado machado machuca-lhe as mãos delicadas de diabo. Göring sente sono, um sono imenso, deita no catre, depois de ter encostado o machado na parede. Göring, hoje, não vai dormir apenas 1 hora. Göring nunca mais vai acordar – o coração apodreceu.

E, Al Capone, sem caber em si de tanta alegria, respira pela primeira vez no inferno, livre de seu algoz, este Göring morto para sempre. Al Capone, exausto de tanto de não dormir, caiu em sono profundo e sonhou que estava deitado num sofá – à direita a mesinha de chá, à esquerda o rádio – na parede à direita havia um quadro de Rembrandt – nele, o mestre holandês pintou a luz da manhã que, não sendo Deus nem nada, é apenas a presença da luz – palavra esta criada, segundo o Dicionário Houaiss, no ano de 1041 a.C.


Fernando José Karl

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