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quarta-feira, 29 de setembro de 2010

Uma crônica de Rubens da Cunha

A AMIZADE NEVADA

Foi numa ilha, mais ao norte de onde vivo. Quer dizer, seria uma ilha, se há muito os homens, em vez de fazer um aterro, tivessem feito uma ponte para chegar lá. Com o aterro, os homens do passado mataram o conceito de ilha, talvez os homens do futuro o ressuscitem de novo. Alguns dizem ser muito caro, outros dizem que casas afundarão se a natureza voltar a ser o que era, mas isso é outro assunto. O que quero dizer é que nessa ilha, ou nessa ilha que foi um dia, num domingo qualquer, bem cheio de chuva, a amizade nevou. Foi um acontecimento que beira o estranho, que margeia mesmo o fantástico, a amizade de quatro pessoas nevou sobre e dentro de seus corpos. A primavera já tinha chegado. Esperava-se o sol, daqueles que habitam as canções, só que ao norte de onde vivo, a chuva é uma constante, um desabamento que as nuvens entregam às pessoas como uma segunda pele. Nesse domingo não foi diferente. Tudo o que se poderia fazer numa ilha nos foi proibido: andar pela praia, visionar pessoas andando pela praia, invejar surfistas, recolher conchas como se fossem artefatos salvadores, subir em pedras, desvendar a saudade de uma praia, a grandeza de outra. Talvez até semear-se, ou afundar-se na areia, feito caranguejo, numa enseada próxima. Coisas banais, mas que somente o sol tem a chave para libertar. É como se a infância desses atos fosse liberta apenas pelo calor, pelos amarelos e azuis plenos de uma dia seco. A chuva traz o recolhimento, traz redes, cobertores, risos e a comunicação ampla de amigos que se reúnem para comer, beber, e falar de fronteiras, bordas, idas e vindas ao passado, ao futuro, às escolhas. Falam de perdas e acertos, enquanto bebem uma caipirinha cuja receita aprenderam na véspera: a caipirinha nevada. E bebem, e bebem e falam e a neve com sabor de vodca, limão e leite condensado lhes invade garganta, estômago, veias, alma. E nevam-se como se fossem crianças no Alasca, na Groenlândia ou alguma ilha na Antártica. Olham o mar à distância, lamentam-se um tanto diante da impossibilidade de não poder sair de casa, mas é mais para manter o discurso da normalidade, mais para saberem-se comuns, algo que não são, não depois de nevar, extensos, intensos, copo após copo. Vento e chuva acasalavam-se lá fora. Eles acasalavam-se em suas palavras e vinculavam-se ainda mais dentro daquela casa. As horas estendem-se como todas as horas. Porém, dentro deles, algo andava com mais vagar, com mais compadecimento por todos aqueles instantes que logo acabariam. Logo eles teriam que voltar à segunda-feira, às vidas individuais, logo teriam que sair da ilha, e serem continente de novo. É natural, disseram-se. E combinaram outros encontros, outras neves doces servidas em taças. E preencheram-se com algo raro nesses tempos de agora: uma amizade nevada.

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