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sexta-feira, 11 de dezembro de 2009

Resenha de Enzo Potel acerca do Calafate Míope


O poeta Enzo Potel, residente em itajaí, publicou esta resenha no sitio português Orgia Literária. Agradeço aqui sua generosa leitura. Valeu Enzo!

Eis o endereço do sitio:http://orgialiteraria.com/?p=1473

O Calafate Míope, Cristiano Moreira

11 December 2009



O Calafate Míope é um livro de poesia com tom de documentário, e não é à toa que recebe o subtítulo “Cinema Incompleto”. Toda a narratividade que permeia metade da obra em pequenos textos traz essa possibilidade singular ao leitor, ao passo que as páginas opostas recebem as estrofes onde a voz do próprio calafate se faz ouvida. O calafate é o último profissional a passar as mãos na construção de uma embarcação de madeira, antes da pintura. Num trabalho seráfico, o calafate é quem assegura o trabalho iniciado pelo mestre de risco (aquele que vê) e continuado pelo carpinteiro (aquele que faz). A arte de calafetar consiste na impermeabilização do barco, em passar fios de algodão ou estopa nas frestas do costado para evitar a entrada de água. Ela é quem possibilita que o navio volte do oceano, que não conheça as superfícies abissais. É o calafate quem separa o barco do mar. E depois vem o breu, e as cores, a lã de vidro e finalmente motor. E depois disso tudo vêm os olhos de Cristiano Moreira. E os nossos. Talvez os nossos só possam ser os dele emprestados, iluminados num mundo já enganosamente inoxidável de conceitos e progressos, metal e máquinas. Se em Rebojo (ed. Bernúncia, 2005), Cristiano já nos mostra que suas mãos estão no mar, fugindo pela foz do Itajaí-açu, O Calafate Míope é um trabalho mais difícil e mais bem-sucedido, mais íntimo do mistério e mais afastado da palavra. Cristiano constrói o sair, sólido, sonhando o Atlântico, mas com “o olho sempre metido na réstia luminosa que rasga a madeira”. No meio do livro, dois poemas idênticos. É a proa. É hora de dar a volta pelo barco. Agora, os textos ficam à esquerda e as estrofes à direita. Tudo é muito bem estudado, muito bem talhado. E surgem umas ironias deliciosas de quem tem linguagem nas mãos ao invés de impressões digitais, de onde brotam seguramente o jogo de imagens e de sons: “o calafate se prepara para bordar a embarcação”,“este barco aqui parado é uma floresta”, “passa o pescador sob os andaimes”, “salve slave, me disse outro dia um amigo Carlos”. Também esse domínio se maximiza e se minimiza quando necessário: “na cidade perto do rio, um barco solitário perdeu seu dono”, “o roxo da garrafa {de café} combina com as unhas do calafate”, “as unhas com olheiras”, “o mesmo fio segue o barco e as calças”, “meu ofício é não ouvir falar dos barcos que suturo”. O leitor deve se questionar se Cristiano já foi calafate para ter tanto domínio desse cotidiano, ou se houve um trabalho de pesquisa destinado à confecção específica desta obra; mas Cristiano explicou recentemente que durante um período de sua adolescência trabalhou como ajudante de carpinteiro naval, e enxergava em todo esse grupo de trabalhadores uma delicada experiência humana. E estava lá, olhando e deixando-se olhar, absorvendo os esboços de seu segundo livro, ou talvez de muitos outros que virão. A carpintaria de ribeira, essa construção naval específica de barcos de madeira, que se localiza na foz do rio Itajaí-açu, com suas ossadas simétricas – carcaças de baleia organizadas num espaço para uma decomposição ao contrário – acabam de receber um presente pelo suor de um poeta. E que ultrapasse as leituras locais diante da habilidade de Cristiano em conduzir a palavra ao mar. Navegantes e Itajaí acabam de ganhar um presente que ultrapassa as fronteiras da literatura, quando a literatura sai do mapa e volta para os olhos de quem nem se sabe tema de poesia. Em O Calafate Míope, técnica e sentimento estão maravilhosamente encaixados a bombordo e estibordo, criando uma estrutura que singra nas ondas de nossas mãos, de vivência em popa.
por Enzo Potel
O Calafate Míope Cristiano Moreira Papa-Terra 2009

Um comentário:

Marco Vasques disse...

Um calafate incomoda muita gente... dois calafates incomodam, incomodam muito mais...