Silêncio Branco
A voz e o corpo, mudos, pronunciam o silêncio. A morte é mesmo um silêncio que fala. Como se pintássemos um desenho preto sobre outro desenho preto. Algo se perde e se aloca em algum espaço, sobre outra camada: multiplicação da epiderme. As mortes se acumulam assim: escuro que é clarão, clareira. Quase fogueira. Início de dor e memória. Vela em permanente luz até o silêncio nos tocar. Quem, quando criança, não atirou uma pedra certeira num pássaro? Era a ave cair ao chão e o silêncio estarrecedor se estabelecia. Ficávamos mudos de cantos. Em que lugar andarão os cantos e as vozes de nossos mortos? Sei de um pai e uma mãe que morderam a escuridão do filho. Plantaram canto e voz à beira do asfalto. Ele, o filho, foi atropelado quando praticava seu esporte dileto, o ciclismo. Sem chances de reação. Um monte de ferro que agride a carne. Não conheço o pai, a mãe e muito menos o morto. Mas tenho uma ficção sobre a vida que restou. Uma ficção real. Se é que alguém pode conceber a dicotomia. O fato é que o pai e mãe do garoto fizeram um “protesto-estético-público” no local da morte do filho. Quem nunca viu umas cruzes solitárias à beira do asfalto? Certo dia deparei-me com cinco cruzes cravadas numa curva. Três minúsculas e duas maiores. A solidão e o silêncio da cena mordem a medula: somos túmulos vivos. O “protesto-estético-público” feito pela família espanta (o espanto a que se referia Platão) e enternece. É impossível passar incólume à imagem duma bicicleta branca dependurada num poste igualmente branco. Branco sobre branco. Ao pé do poste, flores, fotos, umas frases (que não me arrisquei a ler), uma faixa preta amarrada ao pé do poste. Um túmulo completo ao lado do asfalto. Aquele silêncio branco da bicicleta, sem suas pedaladas, moldurada pelo azul-céu dos dias de verão, é de uma força aterradora. Aquele trajeto faz lembrar os versos do W. H. Auden “Já não me importam as estrelas: fique o céu todo apagado./Empacotem e embrulhem a lua; seja o sol desmantelado./Esvaziem os oceanos, do mundo sejam as florestas varridas./Porque agora, para mim, nada resta de bom nesta vida.” E o que resta na ossatura daquela paisagem: uma poética, o grito-silêncio que a imagem provoca, o silêncio vermelho, o branco sobreposto ao branco e a difícil arte de carregar as vozes na memória da pele. Tudo isso faz pensar aquela bicicleta branca voando, estática, ao longo do asfalto céu afora.
Marco Vasques
A voz e o corpo, mudos, pronunciam o silêncio. A morte é mesmo um silêncio que fala. Como se pintássemos um desenho preto sobre outro desenho preto. Algo se perde e se aloca em algum espaço, sobre outra camada: multiplicação da epiderme. As mortes se acumulam assim: escuro que é clarão, clareira. Quase fogueira. Início de dor e memória. Vela em permanente luz até o silêncio nos tocar. Quem, quando criança, não atirou uma pedra certeira num pássaro? Era a ave cair ao chão e o silêncio estarrecedor se estabelecia. Ficávamos mudos de cantos. Em que lugar andarão os cantos e as vozes de nossos mortos? Sei de um pai e uma mãe que morderam a escuridão do filho. Plantaram canto e voz à beira do asfalto. Ele, o filho, foi atropelado quando praticava seu esporte dileto, o ciclismo. Sem chances de reação. Um monte de ferro que agride a carne. Não conheço o pai, a mãe e muito menos o morto. Mas tenho uma ficção sobre a vida que restou. Uma ficção real. Se é que alguém pode conceber a dicotomia. O fato é que o pai e mãe do garoto fizeram um “protesto-estético-público” no local da morte do filho. Quem nunca viu umas cruzes solitárias à beira do asfalto? Certo dia deparei-me com cinco cruzes cravadas numa curva. Três minúsculas e duas maiores. A solidão e o silêncio da cena mordem a medula: somos túmulos vivos. O “protesto-estético-público” feito pela família espanta (o espanto a que se referia Platão) e enternece. É impossível passar incólume à imagem duma bicicleta branca dependurada num poste igualmente branco. Branco sobre branco. Ao pé do poste, flores, fotos, umas frases (que não me arrisquei a ler), uma faixa preta amarrada ao pé do poste. Um túmulo completo ao lado do asfalto. Aquele silêncio branco da bicicleta, sem suas pedaladas, moldurada pelo azul-céu dos dias de verão, é de uma força aterradora. Aquele trajeto faz lembrar os versos do W. H. Auden “Já não me importam as estrelas: fique o céu todo apagado./Empacotem e embrulhem a lua; seja o sol desmantelado./Esvaziem os oceanos, do mundo sejam as florestas varridas./Porque agora, para mim, nada resta de bom nesta vida.” E o que resta na ossatura daquela paisagem: uma poética, o grito-silêncio que a imagem provoca, o silêncio vermelho, o branco sobreposto ao branco e a difícil arte de carregar as vozes na memória da pele. Tudo isso faz pensar aquela bicicleta branca voando, estática, ao longo do asfalto céu afora.
Marco Vasques
2 comentários:
vai parecer troca de elogios, gostei muito, essas cenas impactantes resultam sempre em bons textos... me diz bem onde fica esse 'túmulo' quero passar por lá para dar uma olhada
Fica na principal de quem vai para Daniela, Jurerê e Canasvieiras. É um absurdo a cena: um ato poético aterrador.
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