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quarta-feira, 30 de dezembro de 2009

Uma crônica de Rubens da Cunha

Crônica publicada no jornal A Notícia no dia 30/12/2009

O RISO DAS GAIVOTAS


O sol esmaga a manhã, mas custa a vencer a camada de névoa sobre o mar. Duas gaivotas descansam na praia do Gravatá. Silenciosas, brincam com as ondas, beliscam pequenos peixes, voam e pousam pacíficas de si, nada mais fazem senão serem gaivotas. Olhando-as à distância, parece tão fácil também ser gaivota, também nada mais fazer senão cumprir o instinto. Lá no alto, urubus brincam de serem nuvens, doces nuvens negras. Nas suas costas de homem nenhuma asa, nenhum voo efetivo se molda. O mar gelado lhe aflige as canelas. Tenta um mergulho, tenta outro, sente frio num dia muito quente. As gaivotas observam. Aquele olhar oblíquo, aquele bico empinado seria um riso de deboche? Andam uma em direção a outra, estariam comentando sobre esse espantalho humano que veio “banhar-se” em suas águas. Sai da água, dá pequenos pulos para secar-se. As gaivotas observam. Pequenos insetos rastejam assustados sobre as pedras. Parecem também feitos de riso. A névoa sobre o mar se dissipa aos poucos. Vê ao longe a outra praia cheia de gente, cheia de iguais. Deveria estar lá, confraternizando, conhecendo gente nova, vendo e sendo visto, e não aqui, sozinho, sendo observado e sofrendo o deboche de insetos e de duas gaivotas. Assusta-se, num canto da praia um lagarto. Chegar de manhã numa praia deserta parece chamar muita atenção dos habitantes do lugar. Estrangeiro aqui, como nunca foi em outro lugar. Incapaz de comunicar-se. Mas sabe também que naquela praia badalada ele também é um estrangeiro, ele também é uma excrescência do lugar. Seja entre os bichos da praia do Gravatá, seja entre os humanos da outra praia, sempre será o de fora, não o que visita, mas aquele que invade, que transtorna o cotidiano, que desmantela o ciclo natural das coisas. A manhã avança. A névoa não existe mais. Pelo menos aquela que estava sobre o mar. As gaivotas continuam gaivotas. O lagarto desapareceu entre as rochas. Encontra numa pedra marcas com cicatrizes de tempos remotos. Homens sentaram ali e amolaram suas ferramentas. Talvez fossem homens mais próximos das gaivotas, sem datas, sem horários e obrigações, que não fossem exatamente as obrigações da gaivota: comer e reproduzir. Entre uma coisa e outra, sobreviver a uma intempérie, a um predador. Nada como agora em que quase tudo se resume a sobreviver ao olhar do outro. A cumprir o jogo da aparência. Está tão preso a isso, que o olhar dos bichos desse lugar parece que está cobrando justamente o que sempre lhe cobraram: parecer ter, parecer ser, parecer. Ilhado, pensa em ficar. Ri de sua ingenuidade. Na verdade, acompanha o riso das gaivotas e do lagarto que resolveu aparecer para se despedir. Os urubus continuam nas alturas. Ele retornará ao asfalto, à vida comezinha de sempre. O sol terminou o esmagamento da manhã. Mergulha de novo. Talvez pudesse ir a nado até o outro lado. Desiste. O Ano-novo se aproxima. Não seria bom para aparência um suicídio por essas horas. As gaivotas continuam rindo. Ele esboça um riso de retorno e retorna pelo mesmo caminho em que chegou à praia do Gravatá.

Um comentário:

Marco Vasques disse...

Eu conheço este homem. Acho que sou um pouco dele também. Abração. Vasques