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quinta-feira, 12 de agosto de 2010

As manhãs do Peloponeso não devem ser mais belas que as manhãs da rua do Castanheiro. As coníferas, o rádio alto no sobrado da esquina, uma construção de grade de madeira e, no quintal, aquele enorme vaso, plantas de folhas longas. No corredor do sobrado desembocam quartos cheios de treva e, na sala de leitura, eu visto uma camisa de algodão enquanto espero que passe o enterro da menina Luciana, filha do açougueiro Otto.

Quem a conheceu recorda que sorvia até o fim o cheiro da flor de laranjeira e, nos dias de calor, descansava à sombra da cisterna. Depois pendurava roupas no varal, andava entre árvores. A filha do açougueiro Otto trazia o espírito curioso atento ao cotidiano de louças, vassouras, e nunca
compreenderia, por exemplo, a Mecânica dos Fluidos, de Bertrand Russell, ou as frases cortantes de Wittgenstein, em seu Tractatus.

Esta imagem da menina Luciana data de 1952, quando ocorre sua morte com apenas 16 anos.

A última vez que a encontrei, no beco dos Goyas, eu havia puxado um fumo louco junto ao portal da igreja de São Ignácio.

Aquela tarde, nos muquifos de sempre, também sorvi a espuma dourada de algumas cervejas Eisenbahn, e, de vez em quando, olhava para a lâmina que cortaria o virginal pescoço da filha do açougueiro Otto.


Fernando José Karl

2 comentários:

Priscila Lopes disse...

Karl, se você estiver em Floripa, apareça no meu lançamento segunda-feira no Café Cultura do centro, às 19h. Aproveite, se possível, e leve uns exemplares do Cantares Catarinas que até agora não tive acesso; estou ansiosa para ver o conjunto.

Anônimo disse...

Fernando,
Só agora reparei que era Luciana e não Lucana. Por uns momentos pensei que Lucana tivesse um longo histórico de reencarnações. Deve ter sido a maré desse fumo muiot louco.
bj