TERGIVERSAÇÕES
É manhã. Feriado lá fora. Está no quarto andar, ao Norte da Cidade dos Príncipes, longe da realeza, longe até da realidade. A Serra do Mar está ao fundo em sua contínua opulência. Talvez o sol continue. Lembra-se dos últimos dias. A festa da democracia foi duradoura esse ano. Democracia seria impedir que os demônios da baixaria tomassem conta dos horários eleitorais, sites, da sua pobre caixa de e-mail que andou abarrotada no último mês e provavelmente continuará por um bom tempo, já que derrotados e ganhadores continuarão suas tentativas de convencerem a todos que são os donos inquestionáveis da verdade. Este ano, as ruas até ficaram mais limpas, excetuando-se uns cavaletes assustadores, já que as fotos photoshopadas dos ilustres candidatos a Presidência são um bom exemplo de poluição visual. Ir votar no dia 31 de outubro e ver as fotos dos candidatos seria uma espécie de Halloween dos trópicos? Eles não pareciam estar olhando as pessoas e perguntando: doces ou travessuras? O pior desse pós-festa da democracia é aguentar os trocadilhos infames que estão nascendo a partir do nome da presidente eleita: “Dilmais”, “bom Dilma”, perpetrado pelos que votaram nela, já os opositores vieram com a piadinha infame de que no dia das bruxas se elegeu uma. Infelizmente, falta de criatividade não é privilégio de uma minoria. É feriado, segue tergiversando... ele foi lá e cumpriu o seu dever cívico de cidadão respeitado que ganha dez mil cruzeiros por mês. Não é saudosista, mas tá fazendo falta um Raul Seixas na vida musical desse País. A letras “manuais de instrução” tem pouco poder de alteração da ordem, excetuando-se o corpo que deve descer até o chão, depois de um passinho pra frente e dois passinhos pra trás. Ao seu lado, duas gatas dormem. Gatas gatas, não gatas mulheres, pois ele é menino de família. Se bem que ter duas gatas mulheres adormecidas no sofá resultaria numa família bem interessante. Deixa as fantasias polígamas de lado. Olha os bichos dormindo, não elegem presidentes, não tecem nem fiam, no entanto, jamais se viu tamanha vida. Tem dias, sobretudo as segundas, que deseja muito ser um animal. Não ter que enfrentar diariamente as velhas perguntas que movem o humano: de onde viemos, para onde vamos, quem somos. Perguntas sem respostas, por mais que as igrejas queiram impor as respostas goela abaixo. São séculos conseguindo isso, via inquisição, ou via um milagre qualquer devidamente televisionado, enquanto um pastor grita esconjuros. Não quer saber de polêmicas, tem sua vida, tem seu emprego, segue a lei, não tem dívidas insolúveis, mas vez ou outra pensa como o Filho deve estar querendo voltar para quebrar uns templos por aí, como já fez da primeira vez que esteve por aqui. A vida segue, ainda não choveu, ou seja, a verdade popular de que em todo feriado de finados chove pode não se concretizar. E segue, numa segunda-feira enforcada, numa terça-feira vazia de pessoa viva que não visita cemitérios, e numa quarta-feira em que tudo retornará ao seu eixo. Assim espera, enquanto as gatas dormem e o pulso ainda pulsa.
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