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quarta-feira, 13 de janeiro de 2010

Uma crônica de Marco Vasques

AUTO-RETRATO

Ao pegar a cédula na mão, teve a impressão de que algo estranho e íntimo alterava seu corpo. A primeira cédula, fruto do seu trabalho, fez com que uma inquietação se apossasse dele. Pensou em correr à floricultura e comprar begônias vermelhas à namorada, depois, trocou as begônias por gérberas amarelas e, num impulso mais atrevido, cogitou a idéia de comprar orquídeas. Foi quando o remorso tomou suas idéias. E minha mãe? Ela que me criara com tanto sacrifício? Por que não comprar flores a ela? E vovó? Devia a ela, também, o tributo de estar ao mundo e de conquistar o primeiro fruto de seu labor. Com a cédula na mão passou a vagar pela cidade e, a cada esquina, a cada nova rua cruzada, o mundo estava à sua mão, era só estender a cédula a qualquer comerciante que teria o que desejasse. Sentou no banco da praça, no centro da cidade. Pensou em dar a cédula ao primeiro passante, mas desistiu. Um pedinte se oferece para receber, porém ele finge que não é com ele e sai. Cruzava por toda espécie de pessoas e parecia insensível a tantos berros de socorro, contudo, uma menina de pernas abertas para o céu, a cabeça enterrada ao chão, totalmente nua, o impressionou. Aproximou-se dela com a curiosidade inerente às crianças. Apertou seus joelhos. Ela permaneceu imóvel. Passou as mãos nas coxas. Ela também não se manifestou. Enfiou uma das mãos em sua vagina e, para seu espanto, ao tirar a mão (a mão esquerda), encontrou um retrato de seu rosto pintado com cimento e barro. Assustado com tudo aquilo, entrou no primeiro bordel que encontrou, escolheu a prostituta que mais lhe agradava: uma menina de pernas para o céu e com a cabeça enterrada no azulejo. Entrou nela e nunca mais saiu.

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