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quarta-feira, 27 de janeiro de 2010

Uma crônica de Marco Vasques

UMA ESTRELA NA SOLIDÃO

Estar próximo das minorias exige abandono de si mesmo. Não basta ver o homem de expressão triste e olhar cabisbaixo passar com o carrinho cheio de papelão, latas e um cachorro, igualmente desolado e triste. O coração e o pensamento têm que navegar com ele até não sermos mais um passante vendo uma paisagem infinda da urbanidade. É preciso ser o homem, estar no lugar dele para não vivermos amorfos de ternura e de comprometimento. Aquela mulher debaixo da marquise carrega muito de nós. Aquele menino no semáforo (sempre vermelho para ele) traduz muito do que somos. E aí surge uma estrela na solidão de nossos dias. Uma notícia: operários de uma empresa de transportes deixam na mão a população. Uma notícia, quando dada de forma unilateral: deforma a imagem. O que era uma coisa vira outra. E não nos encontramos mais no labirinto de enganos e engodos. Nesta semana, os funcionários de uma empresa do transporte coletivo, a Estrela, resolveram não trabalhar pela manhã. A notícia se espalhou pela cidade com tons de crítica aos trabalhadores. A ausência do transporte coletivo altera o nosso habitual. A parada, além de modificar ou alterar nosso trajeto, pode nos levar ao outro, a pensar o outro. Pelo menos deveria, mas o nosso mórbido desejo de repetir-se até não ser mais não nos permite sairmos do egoísmo imediato. Não precisamos de pressa: um dia não seremos. Os trabalhadores da empresa citada cavaram uma estrela na solidão. O motivo do motim é uma verdadeira aula de humanidade. Quem de nós estará disposto a não ir trabalhar para ajudar alguém? Quem sabe da urgência daquele que nos chama? Os funcionários da empresa pararam em solidariedade a um cobrador que foi demitido. O cobrador em questão não era só um cobrador. Era um autêntico cobrador. Um líder. Ele cobrava mais respeito aos direitos trabalhistas. Ele cobrava melhores salários e melhores condições de trabalho. Ele era um vento incômodo na consciência dos guardiões da ordem. Seu destino? Não está contente: rua. Os amigos de profissão perderam uma voz que soprava e que tinha eco, pois quem não vibra se torna um medalhão. A sábia teoria do medalhão, do velho bruxo Machado de Assis, continua em vigor na Bruzundangas de Lima Barreto. Com a paralisação, os funcionários resolveram mostrar que se sentiam representados na voz do já emudecido ex-cobrador. Suspenderam suas atividades num gesto de solidariedade (palavra piegas no mundo pós-moderno, pós-tudo). É preciso desviar o olhar do nosso trajeto, por um dia apenas, e parar para ajudar o homem do carrinho a carregar suas chagas mesmo que seja para carregar o carrinho com os olhos marejados de lágrimas e de impotência.

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