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quarta-feira, 3 de fevereiro de 2010

Uma crônica de Marco Vasques


O HOMEM E SEUS ABISMOS

“O amor que eu dei não foi o mesmo que eu vi acabar”
(Ana Carolina)

A possessão é fascista. Hitler só atingiu o seu nível de loucura porque supunha que era o emissário do povo alemão e a ele possuía. Mas a possessão para alcançar a margem do outro, para usurpar o movimento alheio só ocorre por conta de um consentimento declarado, velado ou roubado. Não há nada mais obsessivo e fascista que querer guiar o outro pelas nossas cores. Um equilibrista diria que é mais fácil se equilibrar nas chamas de uma fogueira da Idade Média que estabelecer o limite do consentimento, do abandono consentido ou mesmo do roubo de uma aprovação. O escritor britânico Eric Arthur Blair, mais conhecido por George Orwell, em A revolução dos bichos, já nos coloca diante das dificuldades de estabelecer fronteira. O homem não tem propensão cartesiana, embora se vanglorie por dominar a razão. Somos poço de contradições e desejos indefinidos. Uns quilômetros de incertezas é o que somos. Em qual lado estamos? Estamos dentro de nós ou estamos fora, no outro? O que do outro queremos? Queremos o outro ou nos queremos no outro? Queremos que outro seja um outro que imaginamos? Ou ainda desejamos ser o outro e justamente por isso o desejamos? Um homem é uma imensidão, um labirinto. O poeta português Sá-Carneiro já sabia que existe um Teseu dentro de cada homem, pois em um de seus poemas nos diz “Perdi-me dentro de mim/Porque eu era labirinto.” E é neste labirinto que nos guiamos pela terra, mas estamos sem a espada e o Fio de Ariadne, isto é, não temos salvação. O homem é um abismo de deuses e demônios, amores e ódios. Alguns homens vivem dormentes. Outros vivem em estado de fogo, fagulha, vertigem. Talvez estejamos mesmo condenados a rolar por sobre nós mesmos até findarmos. Uma espécie de Sísifo carregando as palavras para a mesma direção: o branco certeiro do esquecimento. E ainda que um universo de abismos, a vida, esta flecha sem direção no espaço, nos submete a possessões incalculáveis. Assim vivemos possuídos e perseguidos pelo tão propalado sucesso, pelo amor ideal e perfeito, pela constância, pelo olhares acusativos determinando nossos desejos, pelos preconceitos, pela intolerância e obcecados por não vermos o outro. Roberto, depois de me falar tudo isto, coça o nariz e diz: Marco, eu não suporto mais os maquinomens que sorriem por decreto. Saímos depois de ouvir “Uma louca tempestade” e “Vestido estampado” na voz de Ana Carolina. Ficamos o resto do dia em silêncio.
Quadro O Grito de Edward Munch

3 comentários:

Profº. Cristiano Moreira disse...

"A apresentação do trágico depende, principalmente, que o formidável (Ungeheuer),como o Deus e o homem se acasalam, e como, todo limite abolido, a potência pânica da natureza e o mais íntimo do homem se tornam Um na ira, seja concebido
pelo fato de que a unificação ilimitada se purifica por meio de uma separação
ilimitada"

me ocorre postar esta cita de Hölderling, sobre abolição dos limites.

abraço marco.

Marco Vasques disse...

Bem, de certo modo tem muito a ver com o que escrevi. Um uno múltiplo que carregamos que nos ilumina ao mesmo tempo que ofusca as sendas.

Rubens da Cunha disse...

resposta torta e bela, mas resposta :)