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sexta-feira, 12 de fevereiro de 2010

Uma crônica de Marco Vasques

O corpo de Ahzeturis

Lateja o peito, e tonto ele sai sob o sol de uma tarde que nada lhe diz. Comido pelo silêncio da vertigem, vivência da pele, caminha rumo ao encontro. Do corpo nada sabia. Nem sabia se o guarda-roupa servira ao corpo, ou se os corpos serviam aos guarda-roupas. Portanto, para ele a nudez ainda era um mistério, e nada poderia ser dito para cortar o efeito das vestes empalhadas pelas ruas. Pensou em um ditado oriental, sem ao menos entender por que seu pensamento se dirigia para o outro lado do mundo. Ficou retumbando em sua cabeça: a casa é o túmulo dos vivos. Voltou o olhar à terra e viu que tudo é uma questão de tempo. Viu uma esperança quando desejou que seus fios de cabelo fossem usados para fabricar flautas, o crânio pudesse ser útil na fabricação de um instrumento de percussão, no entanto tinham que aproveitar os olhos para que crianças inocentes brincassem com um pouco de brilho, de vidros e sonhos. Dos ossos desejava apenas que fossem bem utilizados, e uma idéia lhe agradou: fazer deles um faqueiro, onde figurassem garfos, facas e colheres. Desejou que todos aqueles que, antropófagos, engoliram sem piedade sua simplicidade, sua liberdade, todos aqueles que se afogaram de tanto beber seu sangue, a esses desejou que fosse dado cada talher fabricado com seus ossos. Com a pele poderiam fazer o que quisessem, mas o mais acertado seria fazer dela algumas páginas para poemas, pois as linhas já estavam prontas, todas esculpidas por canivetes e facas. A humanidade se envergonharia de tanta dor, nenhum poeta teria coragem de rabiscar uma só palavra sobre a pele tão escrita. O sangue poderia ser usado para fabricar alguns quadros. Bosch, Magritte, Dali e Picasso saberiam como usá-lo. Só jogar na tela. Tanta dor circular, algumas gerações carregadas nas veias, não precisa de muito trato artístico. Pollock talvez fosse o que mais entendesse tal gravidade de vermelho. Uma gravidade de arrebol em dia de funeral. Vermelho em Bach. Vermelho soturno e surdo nos dedos de Beethoven. As unhas poderiam ser entregues a algum artista de bairro, desses que sabem fazer belos mosaicos em fachadas de prédios. As tripas mereceriam, talvez, ser transformadas em um saxofone. Assim Ahzeturis rumava ao encontro de sua decomposição. Desejou, ainda, que seu estômago se transformasse em bola de futebol e estivesse a serviço da alegria, logo Ahzeturis, que nunca conhecera esse sentimento. Mesmo assim desejava proliferar o desconhecido sentimento entre os homens, sobretudo entre as crianças. Continuou andando por cinco dias até completar toda a saga e ter distribuído, de forma utilitária, tudo que era físico. Então, quando chegou na boca, não soube o que fazer com o verbo. Sentou num trilho antigo, na mais absoluta solidão, e chorou. Contam que depois disso Ahzeturis nunca mais foi encontrado. Alguns estudiosos da literatura, por exemplo, dizem tê-lo encontrado, em forma de sombra, nos textos de Thomas Mann, Gogol, Paul Éluard e Dostoievski. E Ahzeturis, que nunca chamou a atenção em vida, hoje é escopo de pesquisas históricas, pois todos querem saber por que o corpo de Ahzeturis jamais foi encontrado.




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