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quarta-feira, 28 de abril de 2010

Uma crônica de Rubens da Cunha

MARIQUINHA, 90 ANOS

Minha avó chega aos 90 anos. Dona Maria, Mariquinha para quase todos que a conhecem. Se o corpo está frágil, a mente ainda é lúcida e atenta. Não apenas a mente, mas o espírito continua firme, denso, moldado nesses noventa anos de experiência. Ela é uma dessas mulheres longevas, vindas do povo, vindas dessa massa de anônimos que compuseram a base real do nosso país. Não é filha de família nobre ou rica. Sua nobreza e riqueza foram construídas em outras esferas, foram mais talhadas pelo suor do que pela herança, pela firmeza nas convicções do que pela tradição. A vastidão de uma vida pode ser medida pelo comprometimento que a pessoa tem com essa vida. Minha avó sempre caminhou pisando firme o chão que a sustenta e deixando em todos nós marcas perenes do comprometimento que ela tem com a vida. Mesmo depois que sofreu um acidente cardiovascular, mesmo depois de seu corpo só responder com a metade dos movimentos, a firmeza dos passos e das palavras permaneceu. Quem chega aos noventa anos, chega com o peso da vida nas costas. Para aguentar esse peso, é preciso ter se preparado todo o tempo, alimentando-se na esperança, na fé, no fazer diário da vida, na aceitação contínua das perdas e ganhos. É ter a certeza de que os ganhos são reais e nos acompanham sempre, já às perdas devem ser destinadas ao esquecimento, ao perdão, ao passado. É preciso ter firmeza. A firmeza de minha avó vem de sua ligação com a terra, com as plantas e bichos, com o trabalho incessante para dar à família a melhor das condições: não financeira, mas a condição da dignidade, da certeza de que estamos seguindo o melhor exemplo a ser seguido: o de uma vida honrada. A longevidade de minha avó não atravessou somente o século 20, não apenas viu as mudanças radicais que ocorreram no mundo desde que ela nasceu, naquele outono de 1920, mas atravessa todos os dias seus filhos, netos e bisnetos. Uma prole numerosa que gira em torno dela, de seus ensinamentos, de seu comando, às vezes teimoso, mas sempre portador do melhor caminho. A velhice é uma espécie de retorno ao tempo livre da infância, quase como um avesso, um espelho dos primeiros anos de vida, um desapego às responsabilidades, quando já não existem às obrigações de cuidar e manter tudo a sua volta, depois que tudo foi devidamente e incessantemente cuidado. Assim, a longa vida da Dona Mariquinha nos mantém ligados, não apenas como descendentes, mas por algo que vai além, e que forma a essência da palavra família. Hoje, todos temos nossas vidas, nossas estradas estão sendo trilhadas e, se soubemos por onde estamos indo, muito devemos à presença em cada um de nós, desse sol chamado Maria Ferreira de Souza. A nossa gratidão é retornar para ela um pouco da luz que nos deu. A minha luz segue transformada em palavra: parabéns vó e obrigado por tudo.

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