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Hokusai (1760-1839)
Meu nome é Egeu Karwostoniek e sou filólogo erudito. Só vi o mar em filmes antigos. Não, com certeza não foi em minha honra que esse mar – que se vê nos mapas e lanha as pedras do litoral grego –, se denomina Egeu.
Minha memória se enfraqueceu pelo muito sofrimento. Não sei que língua falo, nem onde moro, nem se algum dia cheguei a existir. O único que sei é que me chamo Egeu, porque está escrito na tatuagem que fiz na nuca. Se no bar Bürgerkeller me flagram a sorrir, não se iludam: é a foice da morte que me faz cócegas.
Em cada um de nós há cousas do arco-da-velha; sabe-se, igualmente, que o papel aceita tudo o que nele se grafa. O que reforça o consolo e cai como bálsamo no cotidiano aviltante é que, apesar das agruras, ainda não perdi o costume de ser esse voluptuoso espectador da mediocridade humana – eu o mais medíocre de todos –, de encarnar o analista implacável das almas entorpecidas pelo hábito, das almas sem acesso a qualquer forma de regeneração moral.
No meu brasão está escrito com letras de gelo: és pó e ao pó voltarás. Com essa premissa constante, nas noites deito minha cabeça no travesseiro e grito a plenos pulmões como naquela pintura de Münch. De nada adianta eu possuir casarão com piscina e buganvílias dependuradas, com cactos rentes ao muro, de nada adianta, mesmo, a prataria, a cristaleira, a minha polpuda conta bancária com mais de 10 milhões de dólares, nem essa BMW que eu guardo na garagem, porque, sabem todos, eu, Egeu Karwostoniek, o que mais desejo é o mar.
No grande aquário que tenho crio enguias: grossas como punhos. Quando estou com raiva de alguma coisa, capturo uma delas, que se estorce no arpão. Tenho um aquário, como já disse, e nunca fui varão consular, nunca fui nada – nem coroinha em missa pagã – costumo, de madrugada, escutar dentro de minha cabeça uma voz insonora que diz:
“Escute: olhe para mim: preciso tanto que me escute com a mesma atenção ansiosa com que ficas atenta aos apelos de um bolero no rádio nas noites chuvosas”.
Sempre quis, não nego, ser o delfim eleito da deusa; por isso me lavo nas lavas vulcânicas dela que, a cada cada vez, torna-se mais vazia. Depois que fiz um comentário respeitoso acerca da deusa Ânvara, foi-me ordenado que eu purgasse a língua e não voltasse a pronunciar jamais tal injúria. Para quem pratica o Zen, palavras como “sagrado” ou “deusa” constituem armadilhas.
O que eu, Egeu Karwostoniek, sou? Filólogo erudito e, nas horas vagas, um copo de de neve no forno quente: a essência da vida sente-se, não se pensa: se esta manhã venta outra vez, rasguem as escrituras, as mantras, os koans, quebrem as estátuas do senhor Buddha, porque o senhor Buddha disse, certo domingo, sentado sob uma árvore no parque de Sarnath: “Se vós, discípulos amados, não destruírem minhas estátuas, eu as destruirei por vocês”.
Eu aproximo o tímpano à árida folha de papel, na ávida tentativa de escutar aquela outra música que as palavras guardam em seu relicário tormentoso. Há um caldo de sombra em cada palavra que pronunciamos e que, sob a aparência de ser fria, nada mais é que uma presença insidiosa do desejo: esse cerne da magia. Apenas aquele que conseguir curar a surdez do assassino reabilita-se diante da música virgem; música essa que salva, do esquecimento, os fios do sonho.
Eu, com obstinado rigor, não venero nunca as palavras, prefiro convidá-las para o concílio natural das formas – e as torço e retorço como um ferrageiro lírico – e sugiro às palavras (nunca imponho) que elas sigam, com seus visgos e epifanias, as vias do fogo e as cintilações do acaso. As palavras: sereias visíveis: devemos escutá-las, da mesma maneira que Ulisses – que nunca existiu – as escutou, agarrado ao mastro da mais intensa vigília, sem ceder a seus caprichos de sereias e desvios de palavras.
Fui convidado a um congresso de lingüística em Bucaramanga, mas pego por engano um avião errado – da Air Cálamo – e só noto isso no momento do desembarque, pois dormi durante o percurso inteiro. O aeroporto onde pousa o avião da Air Cálamo é circundado com muitas palmeiras ao vento e perto do mar.
Não obstante eu ser poliglota, não consigo fazer-me entender pelo gerente do Hotel Bay no qual me hospedo. Sei que se chama Bay porque li na placa. Não sei em que lugar estou – Bucaramanga que não é: um dos funcionários do hotel me conduz ao quarto no quinto andar. Pergunto que vilarejo é aquele em que me encontro e ele me responde:
“Aqui é a Villa de Gegenwelt. O senhor morreu durante o sono. O avião em que viajava caiu no mar, sem nenhum sobrevivente”.
Eu ainda insisto:
“Mas como então o avião desembarcou no aeroporto?”
E ele:
“Tudo isto é apenas um sonho seu”.
Em alemão, Gegenwelt significa antimundo e, sendo antimundo, é o mesmo que dizer que Gegenwelt é um lugar imaginário, mas um imaginário que irrompe em contradição ao fluxo absoluto de todas as coisas; fluxo esse que, sem qualquer sombra de dúvida, sempre nos arrasta à cova fria do aterro dos incuráveis ou cemitério.
Entretanto, para preencher essa consciência vazia e transformar esse locus onde me encontro em consciência inscrita no intuitivo, é indiferente que eu forme uma imagem dessa Villa de Gegenwelt ou olhe uma Villa de Gegenwelt em carne e osso. Sem crer numa só palavra do que me diz o funcionário do hotel, me resigno a pernoitar por aqui mesmo. Leio Sophia de Mello Breyner Andresen, depois de tomar uma boa ducha:
"Sou o único homem a bordo do meu barco. Os outros são os monstros que não falam, tigres e ursos que amarrei aos remos, e o meu desprezo reina sobre o mar. E há momentos que são quase esquecimento numa doçura imensa de regresso. O meu desejo é o rastro que ficou das aves. E nunca acordo deste sonho e nunca durmo".
Antes de ser engolfado pelas névoas do sono, me apalpo e é com assombro que percebo que minha pele é da mesma matéria do sonho. Se estou mesmo morto, logo concluo: sou menos que o cu de um besouro.
Durmo, segundo o dito bíblico, três dias e três noites seguidas.
Quando retorno a mim, após a ressurreição da carne no terceiro dia, me encontro deitado e imóvel no meio de uma cama, sem outro pensamento que não seja o de respirar, a grandes sorvos, tudo o que se pareça com oxigênio, ou, em outras palavras, o que mais preciso agora é de ar, sim, todo o ar que houver nesse quarto do Hotel Bay.
E isso de ter perdido a vida aconteceu sem que eu tivesse a mínima escolha. Se, de fato, ainda permaneço vivo, porque tudo o que vejo e toco é apenas um sonho meu, que mal poderia haver em ir até o fundo deste sonho?
Não é sede o que eu tenho – o que eu tenho é nervos e, porque sou romântico e ninguém é de ferro, guardo alguma neve de romance russo na alma. Não é sede o que eu tenho, senão ânsia de deitar num refrescado recanto com arruído de folhas, nessa proteção de uma pouca de mata, e deixar a cabeça retomar o que é seu, e pensar com tino o que tenho para suceder, o relembrar alguma coisa que o sol andou a frigir, alguma coisa num quase perdoar-se nem sabe aonde de tão distante.
Levanto da cama, tomo um banho e me dirijo ao refeitório do hotel Bay e provo, no desjejum, do café e do melão. A impossibilidade de entendimento entre mim e as pessoas, nesse lugarejo ainda desconhecido, continua, mesmo já sendo o dia seguinte.
Todo o pensar e o conhecer, num antimundo imaginário, tem como função estancar o fluxus heraclitiano. E porque do antimundo imaginário se deduz o seu oposto – o mundo em que vivemos – é que se pode desvendar o impensável inaudito do processo vital. Inaudito: que nunca se ouviu; extraordinário, incrível. É como se também pensássemos que o mercúrio dos alquimistas (ou unicórnio) afogasse em si todos os oponentes sólidos que encontrasse pela frente: pedra, chuva, rinoceronte, louça, e todos os outros objetos que compõem a tessitura do que vemos.
Aquilo que flui nas coisas não tolera os órgãos que propiciam nossa vida: coração, pulmões, cérebro – por isso os destrói sem piedade. Abre-se de repente a terrível câmara da verdade: só através do ato de fingir é que escapamos dessa arquitetura da destruição que se chama Corpo.
A verdade última do fluxo das coisas não tolera nossos gânglios, ossos, veias coronárias, laringe, enfim, tudo o que dá viço ao nosso Corpo. A verdade última considera um erro a rês e a rosa, um erro o vento e a pedra, um erro a sombra e a luz, mas nunca pode ser um erro, para a verdade última, o uso da Palavra: esse bibelô de inanidade sonora qaundo jaz em estado de dicionário. O uso da Palavra é que possibilita à Palavra respirar.
Pode haver algo mais fecundo que o acaso?
Não é o poeta quem diz a palavra que, sendo mistério, é distante. Renunciar ao antigo modo como usava a palavra entristece o poeta? Pois esta renúncia é o poder mais elevado da palavra. E o que dizia o antigo modo de usar a palavra? Que algo pudesse existir sem ela. E o que diz o modo novo? Diz que nenhuma coisa é onde falta, falha, quebra a palavra. E coisa, o que é? Aquilo que, de alguma maneira, é. Nessa acepção, até deus é uma coisa. É difícil encontrar a palavra para a essência da linguagem. Somente quando se encontra a palavra para a coisa, a coisa é coisa. Não será essa coisa, o que e como ela é, algo em nome de seu nome? O poeta não diz, e, reverente, escuta a palavra dizer-se. O poeta só não renuncia ao mistério da palavra, esta jóia delicada e preciosa, que não pertence a este mundo nem ao outro.
O eu é uma ficção. Porque não suportamos a dinâmica dos acontecimentos autônomos, inventamos um autor para as ações: o eu é essa invenção. Mas o ato de pensar, baixo este céu que me arrebata, é que me permite dizer eu.
Esse lugarejo, que a partir de agora chamarei Villa de Gegenwelt, algumas pessoas – quiçá 22 – tecem loas, sem cessar, ao campo do Outro (ou campo da Palavra). As outras pessoas – talvez 5 mil – desprezam a Palavra e, por isso, se decompõem no fedor de uma agonia mais ou menos lenta que corrói e liquefaz suas entranhas. Com os crânios raspados, cobertos de crostas purulentas, os 5 mil entram e saem de uma igreja de tijolos brancos, ferem joelhos e rezam sem cessar – à procura do deus, que existe mesmo quando não há, porque não haver deus é um deus também –, rezam, com as cabeças sobre um pescoço descarnado, reduzidos a uma espécie de máscara triste.
Os 5 mil não querem saber que a Palavra é essa fina matéria de toda certeza – a Palavra, que também é um cristal, mas sonoro – e que dela se extrái o mais puro óleo do leque de pavoa, e que o ar que resulta do abano desse leque pode expurgar da Villa de Gegenwelt todo grão de insânia.
Os que respiram nesse lugar são inconsistentes – pois não somos todos precários? – por esse motivo deviam pressentir que tudo o que pensam e imaginam jamais vai conseguir tornar-se objeto da consciência, a não ser através de uma Ideia (Vorstellung) que a representa. Para reforçar meu pensamento, gasto os olhos na página de um livro de Hermann Hesse:
"Nosso deus se chama Abraxas e é deus e demônio a um só tempo. Sintetiza em si o mundo luminoso e o obscuro. Abraxas nada tem a opor a qualquer de teus pensamentos e a qualquer de teus sonhos. Não te esqueças disso. Mas abandonar-te-á quando chegares a ser normal e irrepreensível. Abandonar-te-á em busca de outro cadinho onde possa cozer seus pensamentos".
A língua viva da Villa de Gegenwelt; a língua dessa terra – ilha, continente? – não se assemelha a nenhuma das que eu, como filólogo, conheço a fundo ou superficialmente. Até onde for possível, tentarei penetrar a linguagem desse lugar imerso no mais trevoso enigma.
Para me subtrair a todas as amarguras de estar aqui na Villa de Gegenwelt, que ainda não sei onde fica, eu me elevo à contemplação puramente objetiva das pessoas que aqui respiram e também dos objetos que posso ver, tocar, escutar – uma céu, uma xícara, um adágio –, criando assim a ilusão de que apenas eles estão presentes e não eu. Aí, despojado do eu sofredor, me torno – como sujeito puro do conhecimento – completamente uno com aquelas pessoas e objetos, e, assim como a minha miséria lhes é estranha, do mesmo modo será estranha, por estes momentos, a mim. Somente o mundo da representação perdura: o mundo como pulsão (objeto jamais fixável feito de pura luz invisível) desapareceu.
Diante da sacralidade aterradora da noite e dos astros, intuo que o princípio do prazer se encontra do lado do fictício, e é esse princípio de prazer que faz com que seus habitantes busquem o retorno de um signo envolto num “mel de excelente qualidade”. E não se esquecem de aguardar, em todas as coisas, o silêncio que antecede o vento nas ervas.
Consigo resgatar, em meio a uns pedaços de ópera bufa, o mais fino acorde de cristal contra o desencantamento do mundo, contra o senso burguês de economia, contra o sal amargo que nos oferecem os donos do poder, contra a rotina monótona que entorpece as forças da consciência.
É preciso quebrar o poder dos destinos naturais.
Fernando José Karl
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