Vive nos trópicos. Nada de gelo. Não gosta sequer das decorações bregas e fora de contexto espalhadas pela cidade. Não tem roupa vermelha e branca. Não carrega o saco cheio de presentes. Anda mesmo é de saco cheio da hipocrisia iluminada do natal. Ele não nasceu para presentear. Nasceu com um olho doente. O olho esquerdo. Esse olho vive a cidade de outro modo. Um olho que nasceu para dar luz aos cantos obscuros da cidade.
Não desce chaminé. Gosta mais das pernas, sempre abertas, das meninas da Hercílio Luz. Sempre que passa por ali rouba um olhar, um toque e suspira umas mentiras nas pernas dessa gente do submundo que ele tanto ama. Amasia-se com facilidade com essas moças da vida. Ele é uma espécie de avesso à moda natalina. Gosta mesmo das tristezas, das cicatrizes e das insuficiências da carne. Ele odeia pessoas felizes e que sorriem por tudo e nada.
Vive observando a filosofia dos velhinhos que jogam seu dominó diariamente na Praça XV. Acha mesmo que ali está o retorno à infância. O lúdico aparece sempre revestido de cicatrizes nas retinas e nas mãos trêmulas a dar o próximo lance de vida. E como a vida passa ali. Sabe muito dos bares também. Aos domingos costuma frequentar o Bar do Fifa e ver com tristeza as portas cerradas do Mercadinho Ana Paula. Costuma beber bastante para aliviar a dor de estar no mundo e a dor de ser confundido com um bicho inútil e fútil como o Papai Noel.
Pensa mesmo no absurdo de exercer seu olho direito no dia 25 de dezembro. De repente todo mundo se lembra dele. E depois tudo se esvai. E lá vai ele, durante todo o ano, conservar a tristeza do olho esquerdo pelos cantinhos não iluminados da cidade. Durante todo o ano ele vê o mundo pelos olhares dos vagabundos, travestis, favelados, prostitutas, mendigos, crianças abandonadas, cães perdidos, loucos e bêbados. É dessa gente ordinária que vem sua luz. Seu natal é esse carrossel de vidas fraturadas.
Sabe porque diabos Édipo arrancou os olhos. É nessa escuridão que vive o olho esquerdo do Papai Noel. Onde não há botas, roupas, luzes artificiais, cantigas, sorrisos por princípio e toda sorte de máscaras que se cria nesta época do ano.
Não entende como toda essa gente pode festejar e comprar presentes aos montes sob a tristeza da letra de Assis Valente. Incrédulo, sob as luzes escuras do terminal Rita Maria, come com os mendigos e diz a si mesmo: “Eu pensei que todo mundo/fosse filho de Papai Noel.” Depois arranca o olho direito e enterra sob a escultura do Paulo de Siqueira que exala a ferrugem de nossa hipocrisia.
Marco Vasques
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