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quarta-feira, 6 de janeiro de 2010

Uma crônica de Marco Vasques




A Valsa

O corpo era uma partitura de cicatrizes. A mínima sonoridade que violasse uma delas era repelida com abafados socos na própria carne. Foi assim que começou a se decompor. Os amigos nunca notaram sua decomposição permanente. Aos olhos de todos passava, por uma pessoa perfeitamente inteira. Ele mesmo só descobriu que não existia mais, que não mais deixava pegadas por onde passava quando sentou na sala do cinema. Ali o encontro com a sua inexistência foi quase brutal. Dormiu durante todo o filme e acordou chorando. Quando saiu da sala todos festejavam com largos risos. Intrigado com o evento, passou na bilheteria e comprou mais um ingresso. Ao entrar, a tela estava cinza. Sentou e só saiu quando, no fim da sessão, uma senhora, ao se dirigir à saída, esbarrou em uma de suas pernas. Chorou novamente e prometeu que voltaria nos próximos dias até enxergar o motivo de todos os risos. Durante um mês ele era presença oficial em todas as sessões. Com a insatisfação de sempre, resolveu que se mudaria para uma das salas do cinema, abandonaria a vida social para se dedicar exclusivamente àquele fenômeno. Passados alguns anos ele resolveu que deveria levar a película para casa. Planejou o roubo cuidadosamente e, quando chegou em sua casa, se sentiu um pouco aliviado. Mas o fenômeno ainda perturbava a sua cabeça. Para seu espanto, nos primeiros dias de recolhimento começou a perceber vozes intermináveis, gritos e pedidos para que sua casa fosse aberta. Logo viu que não poderia sustentar o calor e a gritaria instalada ao redor de sua residência, então abriu todas as janelas, todas as portas e a multidão entrou. A fila iniciava na porta de seu quarto e se prolongava por toda a quadra. Com o tempo o bairro era uma linha de pessoas querendo adentrar seu quarto. A película, extenuada, já não tinha mais cor e vontade de ser assistida, mesmo assim, multidões penetravam seu quarto. Perdeu o controle de tudo e, mais uma vez, durante uma sessão sádica de uma mulher que desejava os mais lascivos e ditadores prazeres, relembrou a valsa que nunca dançara. Teve a mais nítida visão sobre si mesmo. Comparou seu corpo a uma estátua de praça. Seu corpo, cicatrizado embora, não vertia mais sangue nem secreções, seu corpo era uma estátua de rua sujeita à intempérie do tempo, a pedradas de crianças e mendigos e aos furtos sádicos dos ladrões de quinquilharias. Mais uma vez lembrou da valsa que nunca dançara e ouviu uma voz que professava que ele nunca dançou, foi dançado. Quando morreu, acharam em seu guarda-roupa dúzias de vestidos de casamento, todos intactos.

2 comentários:

Linda Graal disse...

intrigante! confesso que preciso de outras leituras...rs

Marco Vasques disse...

Que bom que você passou por aqui,estava com saudades, muitas!